Editorial Acerca das Reformas em Curso na Universidade
Por Jorge Olímpio Bento (Autor).
Em Revista Portuguesa de Ciências do Desporto v. 7, n 3, 2007.
Resumo
1. “Tudo se encontra em estado de mudança. Nada fica como está. Nós não buscamos a permanência” – eis um axioma que provém da antiguidade clássica e continua pleno de vigor na actualidade. O tempo – todo o tempo – impõe reflexões, reformas e mudanças em todas as esferas da vida. Por isso mesmo o espaço universitário, sendo por definição um campo varrido pelo vento refrescante da abertura e renovação das ideias, não deve deixar-se atrair pela mistura sedutora de astúcia e cinismo com que o imobilismo critica, rejeita e desencoraja toda e qualquer transformação. As instituições, tal como as pessoas, não podem nem devem ser sempre iguais. É no tempo e nos tempos que se forjam, desenvolvem e são provadas. Por não estarem nunca conclusas e terminadas, carecem de mudar e de se transformar, de evoluir e melhorar. É esse o seu destino, é essa a missão que as justifica, aprimora e exalta. São transformadoras na medida em que se transformam. Nesta conformidade eu desejo que a UP não seja sempre igual, que nunca se dê por concluída e satisfeita, que se coloque continuamente desafios e metas, visando uma forma nova e superior. Desejo que não se acomode – e, muito menos, perca - neste tempo! Para tanto é forçoso que eu deseje também que, nesta hora e antes de tudo, a UP reflicta acerca da sua missão, daquilo que já é e do mais que quer ser, das ‘coisas’ intangíveis e da medida dos valores humanos e universais em que se revê. Que, em primeiro lugar, fale dos fins que a determinam, da missão e incumbência que lhe toca cumprir, dos quadros que visa formar. Só depois é pertinente falar dos instrumentos e meios. Edifícios, laboratórios, acervos bibliográficos, estruturação, ordenamentos jurídicos etc. são importantes, mas são fugazes, não duram para sempre. Duradoira é a herança recebida e que deve ser reforçada, reavivada e transmitida: o apego a princípios e valores, ao saber e à racionalidade, à reflexão e ao debate, ao uso do pensamento e da razão, ao cultivo da liberdade e da ética, à rejeição do fácil e falso, das ideias feitas, das ideologias, dos slogans e das palavras de ordem, da manipulação e alienação, do populismo e demagogia. 2. Ademais deve iluminar a nossa reflexão o postulado magistral de Ortega y Gasset (1888-1935): “Eu sou eu e a minha circunstância. Se a não salvo a ela, não me salvo a mim”. Esta não será uma boa circunstância para nós, se a não tornarmos boa para a Universidade, se a não fizermos conforme aos nossos desejos. Logo a Universidade será boa ou má consoante a modelarem os seus professores, estudantes e funcionários. Eu quero continuar a ter a convicção profunda de que uns e outros não recuarão diante do empreendimento que lhes é confiado, não consentirão que enferruje e feneça nas suas mãos o instrumento de aprimoramento espiritual, racional, cívico, estético e cultural dos cidadãos, que a Universidade consubstancia. Não ficarão quedos e mudos perante uma circunstância que não está a ser boa para a Universidade. Não se acomodarão perante a tentativa tresloucada de malbaratar o património intelectual e moral, nacional e internacionalmente amealhado por esta instituição. Não é defensável conceber a Universidade à margem do tempo, isolada e referenciada a si mesma, indiferente à sociedade, aos seus problemas e necessidades. Mas é, igualmente, inaceitável domesticá-la e subordiná-la às corporações e aos interesses que tomaram conta do mundo. Ela deve ser pensada à luz da excelência académica e da relevância social, enquanto instituição com elevado sentido de performance em todos os seus domínios e fins, ao serviço das causas da Humanidade, do país, da cidade e região. 3. Há algo inevitável e de inegável importância para a melhoria do papel da Universidade: a necessidade de renovar permanentemente os processos de ensino e aprendizagem, as modalidades e finalidades da formação e os caminhos da sua missão, sob pena de nos mumificarmos. A ênfase renovadora deve cuidar de aumentar o prestígio da tradição e da herança secular e não contribuir para o destruir e sepultar. Todavia essa reforma só é possível se não estivermos constantemente a debater-nos com a angústia de provermos à manutenção das instituições. Podem tentar apoucar-nos com a redução dos orçamentos e com a campanha difamatória movida com um aparelho mediático conivente e arregimentado. Mas não terão força suficiente para nos estrangular na garganta o grito de protesto, nascido na consciência das obrigações para com a nossa dignidade. A Universidade tem uma longa história de farol da liberdade, ocupada e incumbida de clarear caminhos; não será agora que vai capitular e tornar-se cúmplice da escuridão e da passividade. Contando com a nossa lucidez e coragem, ela é capaz de prodígios divinos. Há no mundo, por certo, milhares de Universidades; algumas usufruem de excelente reputação. Mas muitas centenas delas têm à sua disposição recursos financeiros superiores, de longe, aos da UP e quedam-se numa posição muito inferior à nossa nos diversos rankings internacionais. Olho para trás, vejo os números do crescimento na pós-graduação e produção científica, assim como na procura por estudantes estrangeiros e não posso deixar de admirar a notável ascensão da UP nas duas últimas décadas. Claro que se pode melhorar ainda mais, mas esta constatação e vontade não justificam o criticismo e o negativismo de algumas apreciações. 4. O estado de alma da UP face à actual conjuntura não é, bem o sei, igual em todas as áreas. As diferenças são notórias e não podem ser iludidas. Como se sabe, a formação específica de cada um de nós é propensa a enraizar e privilegiar determinados modelos, princípios, valores, saberes, convicções, crenças e mitos. Por isso mesmo as diversas formações são parcelares e relativas; nenhuma confere um olhar abrangente do mundo e uma visão integral dos problemas, antes apela à complementaridade de umas com as outras. Por exemplo, a formação de engenheiro e o modelo inglês são importantes; mas não podem ser exclusivas e exaustivas, até porque nem a adesão ao ‘paradigma’ da gestão está a produzir um mundo melhor, nem as universidades inglesas (e outros serviços públicos do país de Sua Majestade) passaram a viver num mar de rosas, após a entrada em vigor do modelo neoliberal. Como quer que seja, isto dá para perceber o facto de a UP não ter tomado posições públicas nos últimos anos; de não ter, por exemplo, reagido ao modo funesto da implementação indígena do Processo de Bolonha. O Processo foi manifestamente pervertido. É provável que isto não perturbe as áreas afins à tecnologia e aquelas que contam com uma Ordem para regular o exercício profissional. Mas é altamente prejudicial para as outras. Não é agradável de dizer, mas é necessário afirmar que a UP não tem, nos últimos anos, primado pela coragem. Pelo contrário, a omissão e mesmo o oportunismo e a cobardia têm dado sinais de vida. Não obstante o apelo do Magnífico Reitor a comentários acerca da LRJIES-Lei do Regime Jurídico das Instituições de Ensino Superior, a imensa maioria da UP optou pelo silêncio e acomodamento, talvez com medo de afrontar o Ministério e de não apanhar algumas migalhas sobrantes da mesa da capital, ou receosa de abrir o jogo de intenções e acções em relação ao futuro. Seja como for, agora não se sabe o que a maioria das Faculdades pensa acerca do ordenamento jurídico da UP e era bom que se soubesse, que uns não estivessem de peito aberto e outros a jogar à defesa, com cartas desconhecidas. Não é aceitável que, em nome do combate a basismos e populismos de que enfermava a anterior legislação das Universidades, a actual LRJIES tenha consagrado um basismo bem maior e mais gravoso: agora o Conselho Geral, que escolhe o Reitor, é eleito por voto quase universal. Mais ainda, se assim o entenderem as grandes unidades orgânicas ligadas às áreas tecnológicas, a maioria das unidades orgânicas fica arredada da participação na condução dos destinos da Universidade. Ora isto não acontece por acaso ou por distracção do legislador! 5. Estamos obrigados a um exigente exercício de responsabilidade, que implica precisamente o contrário de um jogo de leviana competição por supremacias da irracionalidade. Isto reclama transparência nas intenções e frontalidade nos gestos e palavras. Por isso afirmo sem rodeios e concessões: aquilo que é aplicável nalgumas partes pode fragilizar as outras e afectar o todo. Ora isto recomenda ponderação e equilíbrio nas decisões. Se importar para a sua configuração o paradigma hoje vigente no país e no mundo – “os ricos cada vez mais ricos e os pobres cada vez mais pobres” –, a UP debilitará a sua estrutura, minará a sua unidade, a sua independência, a sua autonomia, a sua missão e a sua imagem e projecção. E, não por último, prestará um péssimo serviço - para não dizer traição - à cidade e à região. Não pode ser ignorada a possibilidade, bem evidente, de a maior universidade do país, por força de reorganizações insanas, se converter numa pequena universidade, sem dimensão nem relevância para competir internacionalmente. Os rankings existentes mostram que quanto mais diminuta é a universidade menos ‘chances’ ela tem de vir a integrá-los. E, deste modo, vê-se desmentido um dos argumentos cimeiros do reformismo. Enfim os interesses, visões e conveniências de algumas áreas, departamentos, institutos e docentes não devem determinar o superior interesse da UP, nem sobrepor-se a ele. O que hoje se destruir não será fácil de reconstruir amanhã. 6. Devo à UP a honra culminante de uma vida de obreiro obscuro. Por mais que eu durasse, nenhuma outra teria o fulgor que esta me concedeu, de sair da noite para o dia, da penumbra para a luz, do nevoeiro para o sol, do anonimato opaco para a cidadania esclarecida. Estou, pois, imensamente grato à UP. E, por isso mesmo e em nome dela, ouso afirmar que a sociedade em que vivemos está ainda demasiadamente aquém da medida humana, aquém do que precisa vir a ser. Também por isto atrevo-me a dizer que as mudanças que estão a ser imprimidas, pelo governo e pelos arautos do neoliberalismo, às universidades e a outras instituições públicas não se revêem na medida humana, mas tão somente numa medida de gestão perversa, ou seja, numa visão distorcida que promove os meios e instrumentos à categoria de fins. A Universidade não vive do recolhimento e da renúncia ao mundo. Tem valores próprios, mas não é aceitável que se enclausure neles. É imperioso que esteja no mundo ao lado de outros protagonistas e que participe de modo responsável e empenhado da realidade. Com todos os outros parceiros e, quando necessário, contra eles. Porque é essa a sua vocação suprema e a maneira superior de cumprir a sua inalienável obrigação. Assim não é curial ‘reformar’ a Universidade para a sujeitar ao serviço de interesses espúrios; precisa, sim, de ser melhor formatada como centro comprometido com as causas primeiras da sociedade e Humanidade. Não deve servir mais ninguém. Em suma, merece empenhamento entusiasta e apoio activo tudo quanto sublinhe, enfatize, alimente, fortaleça e engrandeça a missão humanista e cultural da Universidade; e deverá contar com a nossa antipatia, igualmente activa, tudo quanto a iluda, diminua, debilite e enfraqueça. 7. Que lugar está reservado para a ciência? Respondo, servindo-me de uma citação de António Bracinha Vieira: “Um lugar bastante decadente porque a chamada Logociência, que era admirável, que nos mostrava os confins do universo, a evolução do homem, a origem da linguagem, o comportamento dos animais, que estava cheia de enigmas, deixou de ter investimento, como hoje se diz. Então o que se desenvolve? A tecnociência. A biotecnologia. As ciências que vão reforçar a indústria e aumentar os lucros das grandes sociedades. A sociedade que pode subsidiar a ciência, subsidia aquela que lhe vai dar vantagem. É um círculo vicioso, que vai cortar a ciência da verdadeira fonte que a alimenta – alargar o horizonte de conhecimentos”.2 O mesmo autor constata um regresso da barbárie, a junção “do pior dos primatas com o pior das térmitas”, o avanço da manipulação fácil e da passividade crítica, a emergência do indivíduo incaracterístico, frio, ávido, timorata, um escravo terrivelmente degradado, sem princípios e sem escrúpulos, a derrota dos gregos pelos bárbaros “sem pensamento, sem ética, sem estética, sem horizonte, sem projecto, sem reflexão”. E acusa que, por já estarem no estádio da linguagem enfraquecida, temos doutorados e professores “que dizem parvoíces”. “E como não sabem falar também não sabem pensar. E então há uma queda do nível da razão, toda essa irracionalidade emerge e é premiada pela sociedade, pela Absurdidade”. A gravidade da acusação vai mais longe: o incaracterístico “tornou-se a norma e está bastante invisível, ou seja, as pessoas convivem com ele e já o abrigam, não o vêem. Julgo que o papel da filosofia é justamente dar a ver aquilo que é visível mas que as pessoas normalmente não vêem ou não querem ver, não podem, não conseguem”. Pois é, mas a filosofia e tudo quanto lhe é correlato estão postergados, sofrem o exílio e o ostracismo. Sim, “que dizer – alerta Daniel Sampaio – do apagamento progressivo da Filosofia ou da menorização das humanidades, para já não falar da ideia agora na moda de que às escolas compete servir as empresas?” Responde o mesmo autor: “A esperança está, como sempre, nas novas gerações. Oxalá estejam atentas e ainda a tempo de evitar a barbárie”.3 8. É isto que me encoraja, num exercício de cinismo e humor negro, a tecer elogios ao vento que passa. Há quem tenha saudades do passado. Eu, ao invés, tenho saudades do futuro. De um futuro que colha os frutos deste aliciante presente. Em tempos idos não se usava camisinha para fazer amor. O resultado está à vista; e não me estou a referir à transmissão e proliferação de doenças infecto-contagiosas. Penso sim na existência – que bem podia ter sido evitada - de alguns personagens que andam por aí, em funções de chefia e decisão, a atazanar-nos a vida de uma maneira que ninguém imaginaria até há pouco, tendo em conta aquilo que propalavam aos quatro ventos e as filiações ideológicas que ardilosamente ainda ousam afirmar para iludir os ingénuos e incautos. Resta-nos a esperança de que eles doravante façam uso cuidado do preservativo – ou então que enveredem por outros caminhos – para ver se os actores do futuro têm outra matriz genética e, sobretudo, ética. Mais, a língua portuguesa no passado era muito rígida e taxativa. Chamava-se mentiroso a um indivíduo por faltar à verdade. Agora o nosso idioma é muito mais flexível; está em franca evolução, tornou-se mais dúctil e proteico. Os mentirosos já não o são mais; apenas têm opiniões diferentes e apresentam versões não coincidentes com as dos outros, quando muito dizem inverdades ou coisas que nunca aconteceram. Por isso chamar mentiroso a um aldrabão é hoje sinal de agressividade e rudeza, falta grave de civismo, de educação, de boas maneiras. A traição também mudou de significado. Agora os traidores não traem; antes revelam abertura e flexibilidade, espírito de inovação, reforma, mudança e adaptação aos desafios desta era. Do mesmo modo os autores de barganhas passaram a ser gente sagaz, viva, esperta. A honra era uma obrigação; hoje não, porquanto é inquestionável. A honorabilidade que, no passado, tinha que ser conquistada e exibida, agora é um direito natural que não pode ser posto em causa. Tal como o carácter. Antes era um bem escasso que nem todos logravam alcançar; agora é uma das maiores dádivas da demo-cracia4 nos últimos tempos; é algo generosamente distribuído a rodos, todos o têm, de tal maneira que já não se pergunta por ele, mesmo quando se ausenta constantemente do espaço público. Também as qualidades da honradez, integridade e decência perderam o significado e a dimensão que tinham. Além de não haver vantagem em falar nelas, exibi-las e reclamá-las, elas deixaram de ser notáveis e de conferir respeitabilidade a quem as ostenta. Pelo contrário, os seus cultores são uns grandes tansos, trouxas e idiotas. Antes havia conhecimento a menos e desejava-se saber mais. Aprendia-se com esforço, disciplina, rigor e dificuldade; exigia-se muito e era custoso e árduo. Hoje há saber acumulado, mas sumiu a necessidade de aprender tanto e de despender energias com esse fim. Por isso veio em boa hora o Processo de Bolonha, para fixar o que é útil e o que é dispensável e obrigar as Universidades a não ‘desperdiçar’ recursos com assuntos inconvenientes ao mercado. Em vez de ‘humanistas’ passamos a ter ‘profissionais’ técnicos sem qualquer teor intelectual do que têm a dizer ou fazer, idiotas avessos à dor e ao fastio de reflectir e aptos a aceitar e seguir, sem pensar, o primeiro condutor que surgir. O perfil dos novos quadros deve ser vazio de sonhos, ideais, utopias, causas humanas e universais. Como disse Max Weber, numa antevisão deste tempo, chegou a hora dos “especialistas sem espírito, sensualistas sem coração”. Mais ainda, continua o vaticínio, “esta nulidade imagina haver atingido um nível de civilização nunca dantes alcançado”. Vamos formar (?!) gente incapaz de fazer perguntas, de se interrogar, de ter rebates e inquietações, dúvidas e perplexidades da consciência e da alma, de levantar questões, de fundar argumentos e convicções, de reagir às manipulações e perversões, de se indignar perante os agravos infligidos à sua e universal humanidade. O futuro vai ser, pois, fácil e cómodo, sem as angústias e ansiedades do presente, tranquilo, ledo e quedo como no melhor dos mundos. Não admira, portanto, que no tocante a saudade me volte para o horizonte vindouro e queira esquecer o passado que tanto trabalho e canseiras me deu. 1 Este texto comporta, no essencial, uma mensagem enviada aos membros do Senado da Universidade do Porto, em 9.10.2007, acrescida de outros considerandos. 2 VIEIRA, António Bracinha: Somos todos escravos do Incaracterístico. In: Pública, 18.11.2007. 3 SAMPAIO, Daniel: A barbárie. In: Pública, 25.11.2007. 4 Democracia é o governo do povo, segundo a etimologia grega do termo. Aqui a palavra surge separada para evidenciar o poder do demo.