Resumo

Nunca como hoje a sociedade foi tão moldada pelo conhecimento. Era pois de esperar que vivêssemos num ambiente propício ao triunfo e harmonia da ética e da razão. Só que o progresso científico e tecnológico não leva automaticamente no seu bojo e passo o aprimoramento da consciência. Parece até gerar o contrário, não se estranhando que a crise e a miséria, antes de serem económicas e físicas, sejam de (des)ordem moral e social; que irrompam portanto da fragilidade dos costumes, princípios e valores. Também assim foi no passado e será no futuro. Grandes instituições e impérios ficam pelo caminho, vitimados sempre pela doença da imoralidade. Se olharmos à nossa volta, sem necessidade de compulsar a história, não faltarão exemplos a confirmar esta tese. Empresas e potentados, com nome sobejamente conhecido à escala nacional e mundial, conhecem dificuldade e falência, cuja origem provém em menor ou maior grau de maleitas morais. É esta igualmente a origem da profunda desilusão com os dias de cerração que estamos a viver. Fomos – os da minha idade e acima dela – educados na família e instruídos na escola a tomar o esforço e suor do corpo como alimento da alma. A erguer a honra e o sentido do dever como bandeiras da vida. A aproveitar o presente para construir o futuro. A submeter o momento imediato ao interesse superior do médio e longo prazo. A saber esperar para colher os frutos maduros do amanhã. Fomos ensinados a ver a sinceridade e verticalidade das palavras e atitudes como bitolas da conduta. A disciplina, o trabalho, o afinco e o sacrifício como meios do sucesso. A verdade, frontalidade, autenticidade, honestidade, seriedade e nobreza como marcas do carácter. A paixão e amor à profissão como deveres irrecusáveis. A entrega a causas e utopias como obrigação superior. A elevarmo-nos na procura de ideais e a fugirmos de actos vis, rasteiros e banais. A olhar com admiração e veneração os probos, justos e honestos; e com desdém e reprovação os trafulhas, aldrabões, hipócritas, safados e oportunistas. Fomos sensibilizados para a dor da transcendência e advertidos contra o comodismo da mediocridade. Fomos socializados no respeito do bem, no apreço da virtude, na rejeição do mal, no receio do pecado e no medo do castigo, isto é, numa consciência de que muita coisa era proibida. Mas fomos também formados num contexto político de ausência e repressão dos direitos e, em reacção, aderimos com entusiasmo à cultura ideológica da sua reivindicação. Sem darmos por isso era quase envergonhados que falávamos dos deveres, até deixarmos de os invocar. Ora aquilo que não tem palavras tende a desaparecer e deixa mesmo de existir. Hoje vemos o universo da educação e formação esboroar-se como um baralho de cartas. Constatamos atónitos que a batalha pelo homem como pessoa moral é muito difícil de ganhar e carece de ser retomada em todas as épocas e lugares e por todos os meios. Sentimo-nos tomados de desânimo, impotência e pessimismo face ao crescendo de uma pseudo-ética ausente de tudo quanto implique respeito de compromissos e mandamentos. Admite-se o vale tudo e o sucesso a todo o custo, até mesmo com o atropelo dos mais elementares valores cívicos e morais. Agora tudo é permitido. Como se deveres e direitos não fossem as duas faces da moeda da vida. Esta sensação generalizou-se e o diagnóstico está feito, sem que isso implique uma mobilização geral para remediar o mal. Mas há uma aguda consciência da situação e regista-se a tentativa de acordar as forças latentes em diferentes domínios, acreditando que podem daí irradiar efeitos regeneradores do contexto mais geral. É assim que a União Europeia e outras instâncias decidem apelar ao desporto e acender a chama das virtualidades que ele encerra. Convocam-no para se posicionar inequivocamente ao lado da educação, para vir em seu socorro neste ano 2004 de Jogos Olímpicos e de Campeonato Europeu de Futebol. O mesmo é dizer que a ideia que temos do desporto, apesar de sujeita a maus tratos, agravos e vilipêndios, continua aí como bandeira levantada ao vento das angústias e desassossegos. Mais, em simultâneo com a profunda desilusão com o devir social, a crença no desporto e no seu papel de regeneração continua em alta e a sua cotação é superior à dos seus parceiros sociais. Mas… poderá o desporto corresponder a tão relevante desafio? Não está ele afectado pela falta de credibilidade moral que atinge a sociedade de que faz parte integrante? Será uma reserva de virtude e moralidade, isolada do exterior por um cordão sanitário? Não tem também uma quota-parte da falta de educação, de ética e civismo que mina a sociedade? Não é também ele um feudo dos “heróis”, descritos de modo magistral por Hegel, aos quais é lícito aquilo que não é permitido ao homem comum, inclusive o uso da violência e até da prepotência? Por ser um espaço normativo balizado por regras e exigências éticas e morais na procura do sucesso, o desporto pode dar uma resposta positiva ao repto que lhe é lançado. Para tanto carece de olhar para ele próprio no todo e na parte e reconhecer que também nele lavram a mentira, a desonra e iniquidade, a batota e inverdade. Que medram nele faltas de educação e de boas maneiras, de gestos e palavras edificantes. Que ele é uma instituição humana. Que no bom e no mau é obra humana, é um produto da nossa liberdade para inventar e escolher e da capacidade de acção que a anima e concretiza. E que por isso pode ser melhorado, se todos os que nele laboram se virem como uma instituição com responsabilidades e imperativos sociais e morais. Se se comprometerem a fazer do desporto um projecto ético para a sociedade. Da janela do desporto podemos olhar todo o mundo, ver e entender as suas debilidades e afectações, diagnosticar os males e prescrever algumas terapias. No palco do desporto travamos também o combate da resistência civilizacional, da criação ou supressão da vida moral, assumimos a nossa parte na defesa de uma versão da civilização inspirada em valores de acentuado pendor humanista. Também reflectimos e agimos nele em nome do florescimento do livre pensamento, de homens livres, aptos a distinguir e escolher entre o bem e o mal e a responder sem ódio e sem medo. Por isso seguimos em frente, mesmo que levados apenas pela obrigação e pela esperança. Eis uma razão bastante para não ficarmos parados à espera do que acontece. Para não nos conformarmos à tristitia e almejarmos a laetitia, ou seja, a passagem de um estado envergonhado e menor para uma perfeição alegre e maior. PS: As circunstâncias pedem a inclusão de duas notas marginais ao teor da reflexão deste editorial. A primeira releva da dor; a segunda da esperança. 1. A biografia da FCDEF-UP é ainda curta. Mas alguns dos seus filhos e obreiros já ficaram pelo caminho. Desta vez foi o Carlos Moutinho que se viu impedido de avançar. Deixou-nos antes, muito antes do tempo, como sempre. Para nos lembrar que uns têm a sina de semear e sonhar a vida; e outros de a colher. Também por isso continuará connosco. Porque nós temos memória e gratidão. 2. É com alvoroço que a Faculdade se prepara para receber, entre 27 de Setembro e 1 de Outubro, o X Congresso de Ciências do Desporto dos Países de Língua Portuguesa. O tema lembra-nos os desafios da renovação e evoca a esperança de um futuro tão radioso como o passado deste movimento. Por isso saboreamos já a alegria do reencontro.