Resumo

Na sua edição de 1 de Dezembro de 2002 o jornal espanhol El País trazia esta notícia, a respeito de um ciclo de conferências acerca do tema Deporte y dopaje en el siglo XXI: “Los científicos se reúnen em Madrid y muestran su pesimismo sobre las possibilidades reales de la lucha contra el fraude.” No corpo da notícia é referido o seguinte: “La historia de la lucha antidopaje es la historia de la pérdida de la ingenuidad del deporte, paralela siempre a la historia de la sociedad en que se desarrolla el deporte, la historia económica también. Todo ello se refleja en la evolución de las listas de substancias prohibidas, que muestran también la ineficacia de la lucha: la prohibición nunca se adelantaba al uso, sino que iba por detrás.” E mais adiante acrescenta: “Pero, por primera vez, las autoridades deportivas han querido adelantarse al uso y en la lista del Comité Olímpico Internacional (COI) que entrará en vigor en 2003 figura un elemento que aún nadie conoce, que nadie utiliza, un concepto del que todos hablan y al que todos temen: el dopaje genético, el protagonista, según los especialistas, del siglo XXI. El pasado se quedará en un juego de niños.” Esta medida do COI vem ao encontro das tentações e tentativas de produzir atletas de elite com o recurso a manipulações genéticas e antecipa-se à previsão de que “dentro de 10 o 20 años, la terapia génica será normal y el ‘doping’ genético generalizado.” De resto é já hoje possível injectar ADN no músculo, se bem que o controle dos efeitos ainda seja incipiente. Noutra página do mesmo periódico o conhecido fisiologista Bengt Saltin é particularmente claro: “El dopaje es una trampa a la que se recurre para ganar, no para aguantar. (...) De todas formas, todos los ganadores son deportistas com talento. Y eso sólo lo dan los genes, no lo olvidemos.” E constata que muitos resultados, verificados no ciclismo e no esqui de fundo, são absolutamente improváveis sem a intervenção do doping. Inquirido sobre se o mesmo acontece no futebol responde: “No sé mucho, pero recuerdo que hace unos años estuve en el despacho de un médico de un equipo y allí había de todo: anabolizantes, estimulantes...” E, confrontado com a alegação da gente do futebol de que neste não faz sentido o doping, dado que o jogo é mais uma questão técnica e táctica do que física, responde de forma lapidar: “Eso es falso. En un partido de fútbol hay que correr mucho y saltar mucho y sprintar y arrancar. La táctica y la técnica necesitan también cuerpos fuertes y rápidos. La EPO les va de maravilla.” Esta notícia e as opiniões nela expressas trouxeramme à memória uma entrevista concedida por Richard Pound, Director da AMA-Agência Mundial Antidopagem, ao jornal Público, de 2002.11.07, em que o inquirido era particularmente peremptório: “Muitos médicos e treinadores forçam o uso de dopantes.” Em face da dureza destas revelações lembrei-me de vir aqui glosar um tema que já de outras vezes me tem ocupado. Venho falar de modelos de homem inspiradores do ideal do homo sportivus e daquilo que ele encerra e por detrás dele se esconde. Realmente, se olharmos com acuidade para o outro lado do desporto, para lá da coreografia de gestos balizados pelo código de regras e pelo reportório técnico-táctico, vemos nele um texto onde se condensa e oferece a leitura da complexidade e variedade de aspectos que perfazem a vida dos homens e da sociedade. O caso do doping ilustra isto muito bem. 1. Como é sabido, o agir humano não dispensa a inspiração, a orientação e a supervisão de referências cristalizadas em arquétipos e modelos de pensamento e comportamento. Nas distintas actividades da vida (educação, ciência, desporto etc.) pensamos e actuamos com base em modelos de homem. Neles investimos ideais e desejos, conferindo-lhes uma força e função de utopia que nos desafia a superar e melhorar a realidade existente. Desejamos fazer-nos e fazer o homem por afeição a grandezas e princípios culturais e civilizacionais inscritos em tais modelos. Por outras palavras, nós não nos acomodamos a ser feitos e comandados pela nossa natureza; somos produto de um segundo nascimento que nos é dado pela cultura. Esta é a nossa segunda natureza e ela toma como objecto da sua curiosidade e ocupação a natureza primeira, original e biológica. Deste modo o homem não age movido tão somente pelas forças, impulsos e instintos oriundos da fonte primária. E do mesmo modo o corpo humano deixa de ser apenas natureza primeira e torna-se num grande campo experimental dos desejos, das visões, das esperanças, das expectativas mais elevadas e das fantasias mais prodigiosas. Os exércitos conquistadores, impulsionados pela ciência, pela tecnologia e por outros instrumentos e corporações de interesses em moda, focalizam a sua atenção no corpo e este deixa de ser tolerado como algo natural fruto do destino e do acaso. A tentativa de manipular o corpo, de o tornar disponível para os fins e desejos eleitos, faz parte de um projecto, estabelecido pela modernidade, visando o domínio total da natureza. A segunda natureza do homem quer dispor da primeira a seu bel-prazer, quer torná-la cada vez menos natural, mais elaborada e ‘produzida’. E assim a primeira natureza desaparece progressivamente. E isto não se aplica apenas à natureza que nos é exterior e envolve, com implicações na dita crise ecológica; também o homem perde crescentemente a sua marca de essência natural, tornando por isso difícil a definição da relação entre natureza e cultura, entre o natural e artificial. Ou seja, se a técnica pretende substituir cada vez mais a natureza original, então as fronteiras entre o artificial e o natural começam a desaparecer; e se quase tudo tende para o artificial, fica comprometida a própria relação entre a primeira e a segunda natureza e com isso a antropologia perde em parte o seu objecto. É nas malhas deste enredo que acontece o diálogo entre o real e o virtual, que se desenrola o processo civilizatório, que se funda o projecto da educação e que se tece a condição humana. Desde os primórdios da humanidade, o mito prometeico do progresso, da transformação e melhoria da natureza subjaz à civilização e ilumina a sua caminhada com o fogo da técnica, da cultura, da ciência e... também do desporto. 2. O homo sportivus foi e pode ser visto como projecção da ideia de um homem novo, resultante da congregação de vários predicados. No fundo é um homo pluralis ou, se se preferir, um conglomerado de pretensões elaborado com base em combinações variadas de determinados traços e características de modelos gerais de homem. Deste modo assume-se como um projecto que integra e expressa traços, tendências e aspectos que são particularmente significativos para a condição humana e para o seu conceito nos dias de hoje. O mesmo é dizer que naquele ideal se reflecte o espírito do tempo, com as suas ambivalências, contingências, alternativas, oposições e contradições. Ou seja, no homo sportivus revelam-se dimensões belas e exaltantes da vida e do homem, como também manchas e sombras que nos falam de penumbra e escuridão, do uso problemático e indevido da liberdade. Por outras palavras, naquele ideal conflui uma pluralidade de modelos de homem e alguns deles dão muito que fazer à nossa inquietação e angústia. Em todo o caso no homo sportivus configura-se o homo performator, o homem que às formas originais e antigas acrescenta formas novas e que assim se alcandora de modo persistente, sistemático e contínuo a níveis superiores de forma, de rendimento e performance. É neste entendimento que enraíza o conceito da formação e que a procura e obtenção de rendimento representam algo genuinamente humano e relevam a dignidade e honra do homem. Não sem razão, devido à dificuldade do empreendimento, afirmou Goethe que a coisa mais digna de que se ocupa o homem é a forma humana; é dar a si mesmo uma forma digna e consentânea com a consciência daquilo que pode e deve ser, seguindo a exortação de Píndaro: Sê quem és! O homem desportivo é expressão daquele modelo e conceito, da observância e cumprimento de um mandamento que convida o homem a fazer-se a si próprio e à sua individualidade através dos seus rendimentos. Nele mora uma ânsia de transcendência que exclui o deixar andar e o dar-se por contente e satisfeito com o estado alcançado e que o leva nas asas do desassossego para novos desafios e metas, para novos patamares, avanços, acrescentos e progressos. Certamente este ímpeto anima e atiça outros modelos de homem vigentes na ciência, nas artes, nas letras etc.; mas talvez em nenhum outro seja tão visível e palpitante como no modelo do homo sportivus. Todavia este modelo não atende apenas a parâmetros quantitativos; incorpora igualmente exigências qualitativas ligadas ao aprimoramento e aperfeiçoamento do homem. Como se sabe, o lançamento do desporto moderno, assumido pela restauração do antigo projecto olímpico, insere-se num movimento reformista da educação apostado em contribuir para a perfeição e completude do homem. Esse movimento parte da tomada de consciência das nossas imperfeições, insuficiências e fragmentações e contrapõe a isso a concretização da ideia da perfectibilidade por todos os meios e campos de formação e realização do homem. Ou seja, o homo sportivus reivindica um estatuto de correcção e compensação e vê-se generosamente investido na função de modelo de oposição (ou combate) ao homem imperfeito, moldado por fraquezas, mazelas e defeitos nos mais distintos planos. Por isso o lema olímpico (Citius, Altius, Fortius!) exorta o desportista a voar em direcção à perfeição, seguindo a rota da harmonia entre natureza e cultura, fazendo de cada menos um mais, eliminando o supérfluo para que a beleza atinja o seu máximo esplendor no casamento feliz da ética com a estética. Como escreveu Urbano Tavares Rodrigues, ao lançarmos o dardo importa que ele vá longe, mas é preciso também que o gesto seja belo. 3. A esse ideal de ética e estética, com o qual é concebido e medido em muitos ensaios o atleta olímpico, estão associadas pretensões no domínio do transcendente, do extraordinário e do sobre-humano que colocam o campeão desportivo ao nível das estrelas e bem próximo da divinização. Não admira assim que nele jorre abundante a fonte dos mitos (e também da alienação). Mais ainda, o ideal do homo sportivus encerra o sentido da superação e da excelência da existência humana, saltando por cima de todas as bitolas que nos prendem à terra. A tal ponto que os desportistas de elite são estilizados como deuses, porquanto os seus feitos heróicos não conseguem ser devidamente entendidos, exaltados e valorados se forem apenas referenciados a modelos de um homem terreno e carnal. É precisamente neste ponto que a ambivalência e a contradição se introduzem. Com efeito o ideal de perfeição é tão acentuado que aponta para além dos limites humanos naturais e leva forçosamente a equiparar o homem a uma máquina. E isto não se queda ao nível da conjectura. Com o treino e a intervenção de outros meios quer ver-se realizado um grande milagre de criação, qual seja o de configurar o homem e o seu corpo como uma máquina, de conseguir que o corpo do homo sportivus funcione tão rigorosa e perfeitamente como o relógio mais fiável saído da linha de produção de uma renomada marca suíça. Ademais o corpo-máquina do atleta deve funcionar em altas rotações como se fosse um motor equipado com um turbo de elevada cilindragem; e se não conseguir isso a partir de si mesmo então entra em acção o doping para fornecer a matéria prima necessária. Eis-nos assim na presença de um modelo instrumental e mecanicista de homem que se entranha no modelo do homo sportivus e que, por vezes, parece exercer sobre ele um domínio exclusivo. Ao fim e ao cabo vê-se definhar a olhos vistos o princípio de Protágoras, de que o homem é a medida de todas as coisas, sendo o seu lugar ocupado por uma máxima chocante que desponta da realidade com força de imposição: a máquina é a medida de todas as coisas humanas. Isto é, a ideia e a ambição, tão perigosamente apresentadas no Renascimento por Vesálio, Da Vinci e outros, de conceber e construir o corpo humano como uma máquina e de o subtrair ao livre arbítrio das forças da natureza encontram finalmente nos nossos dias aceitação e concretização. E já não levam à fogueira da Inquisição; pelo contrário, há até quem lhes devote reconhecimento. 4. Nesta conformidade a pergunta de Kant – o que é que o homem pode e deve fazer da sua natureza? – adquire hoje enorme actualidade e relevância, tanto mais que, a partir de conhecimentos da Biologia, da Genética e de outras áreas da Medicina, bem como de instrumentos técnicos, se constitui e alimenta a tentação de tocar na substância da vida, à luz de utopias voltadas para o seu aperfeiçoamento. Correspondendo a pedidos feitos pelas mais diversas finalidades: pragmáticas, utilitárias e existenciais. E aqui emerge mais uma vez a questão do uso correcto da liberdade, sabendo-se da dificuldade em elaborar receitas e balizas para isso e para evitar a sua perversão. Independentemente de valorações, o conceito de autodeterminação, tão caro a Kant e outros filósofos iluministas, parece estar agora a alcançar pleno significado, já que o homem quer definir-se e produzir-se de maneira nova. Com o recurso a diversas tecnologias abrem-se as portas a processos que fundiriam a produção do homem com a da máquina, misturando os dois num mesmo produto. Assim sendo, os tempos vindouros serão profícuos para os que se entregam à projecção de novos e alternativos modelos de homem. E pode-se imaginar um futuro risonho aos especialistas de design que se ocupem do corpo, até porque a moda cuidará certamente de criar e explorar na pessoa a necessidade de se equipar com vários corpos, de os usar, exibir e substituir de acordo com as recomendações das circunstâncias. Esta evolução promete não desprezar os apelos a um ‘interessante’, lucrativo e atractivo investimento no homo sportivus, até porque este sempre consubstanciou o projecto e o intuito de intervenção da segunda natureza, entendida como prótese para compensar os défices e como meio e desafio para melhorar as expressões e rendimentos da primeira. Como vimos e sabemos, no desporto em geral encontra já aplicação e concretização a ideia de aperfeiçoamento e no desporto de alto rendimento abre-se um vasto campo de manipulação variada da primeira natureza, procurando associar cada vez mais intensamente o homo sportivus e o homo technicus. Por exemplo, o corpo dopado comprova sobremaneira esta associação e a dimensão atingida pela componente científica e técnica. 5. Num tempo de enorme crença na ciência e na tecnologia e de grandes avanços na possibilidade de reprodução técnica do homem, o homo sportivus parece sentir-se confortavelmente deitado na cama e nos braços do modelo do homo technicus. Até onde isto nos levará? Talvez passemos a escolher e encomendar por catálogo os jovens talentos desportivos, fabricados a pedido segundo preferências e indicações do material genético, trocando os pais naturais por uma nova paternidade dada por genes que os predestinem a ser campeões. Mas... será assim finalmente conseguido o homem novo tão enfatizado e exaltado no tradicional ideário do homo sportivus? Serão os campeões assim gerados objecto da nossa admiração e encantamento? Merecerão os hinos dos cantores, os versos e odes dos poetas, os quadros dos pintores e os bronzes e mármores dos escultores? Serão a encarnação das nossas paixões mais vivas e dos nossos sonhos mais sublimes e exaltantes? Serão o orgulho máximo e a realização suprema da nossa condição? Peter Schjerling (El País, 2002.12.01), chefe do departamento de biologia molecular do Centro de Investigação do Músculo de Copenhaga e com créditos firmados na matéria, considera que a dopagem genética poderia ser levada a cabo agora mesmo, porém com um risco extremo para o atleta, decorrente do facto de os genes artificiais não serem fáceis de controlar e por conseguinte o seu bom funcionamento ser uma lotaria. Está ciente de que esse tipo de dopagem se generalizará dentro de alguns anos, logo que a terapia genética seja um procedimento normal. Ademais o uso e abuso de tal doping será favorecido pelo facto de ser extremamente difícil de detectar, uma vez que os genes artificiais produzem proteínas idênticas às proteínas normais do corpo humano. Não obstante isso o cientista encontra motivos de sobra para dúvidas e cepticismos. Por um lado, porque, sendo tão pequeno o grau de controle, o resultado é muito aleatório, o que o leva a advertir para o exagero das expectativas: “Não é possível construir um super-atleta. As técnicas podem mudar o músculo e melhorar um pouco o rendimento. Podem fazer o músculo maior ou mais forte, mas não muito. Tem que se mudar o resto do sistema, tendões e o resto, porque, se não for assim, rompe-se o equilíbrio fisiológico.” Por outro lado, confrontado com a hipótese de dentro de algumas décadas as técnicas genéticas chegarem a um desenvolvimento que não comporte riscos para a saúde, mesmo assim o emérito cientista encara como detestável a possibilidade de tal dopagem. E conclui: “Mas pode ser que no futuro a questão seja percebida de outra forma. Em todo o caso não gostaria de contribuir para a criação de um super-atleta.” 6. A este propósito talvez valha a pena lembrar que Hannah Arendt, no seu livro A Condição Humana, adverte os cientistas para a sua falta de carácter e para a sua ingenuidade e sobretudo para o facto de habitarem um mundo no qual as palavras perderam o poder. Segundo ela a irreflexão parece ser uma das principais características do nosso tempo e por isso convida-nos a reflectir sobre o que estamos a fazer. Convida-nos “a uma análise das capacidades humanas gerais decorrentes da condição humana, e que são permanentes, isto é, que não podem ser irremediavelmente perdidas enquanto não mudar a própria condição humana.” Creio que foi de certa maneira também a este propósito que a nossa Faculdade homenageou, em 2002.12.09, os Professores Nuno Grande e José Ferreira da Silva, há pouco tempo jubilados. Quisemos assinalar publicamente que os dois ilustres mestres exerceram na Faculdade um ministério que deixou marcas indeléveis no subido apreço e profundo reconhecimento de todos nós. Sempre estiveram ao nosso lado empenhados na defesa e promoção da causa da nossa Faculdade. Por isso na obra, que hoje se vê e manifesta local, nacional e internacionalmente, eles estão presentes não por deferência nossa, mas pelos méritos que nos foi possível aprender entre os muitos que eles tinham para nos transmitir. Deles recebemos lições magistrais de conhecimento e ciência e não menos sublimes e convincentes demonstrações de cultivo das virtudes da nobreza, da verticalidade, da honradez e da firmeza das convicções, de apego a princípios e valores éticos e a condutas e hábitos cívicos e morais. Sim, na configuração da nossa consciência académica ficou inscrito o seu testemunho inolvidável de que as virtudes da cidadania e as causas da humanidade não se traficam nem submetem ao jogo dos interesses, oportunismos, conveniências e proventos das circunstâncias. De que é em nome dessas causas e virtudes que devemos assumir o nosso papel entre todos os sujeitos da feitura da realidade da vida e do mundo. Foi com estes professores que a nossa Faculdade meteu pés ao caminho de se fazer e foi com a sua supervisão participante, com o seu estímulo e encorajamento permanentes e com a sua confiança e optimismo transbordantes que nos tornámos actores com corpo visível e voz audível no palco de representação da missão da Universidade. Agora que eles se retiram e nos deixam com o estatuto de emancipação e de maioridade que nos outorgaram é que mais sentimos responsabilizante e desafiante a sua presença, porque na carta de alforria fica sempre registada a patente de quem a concede. Esta é, pois, uma hora de balanço e desafio em que revivemos a paixão do começo e o entusiasmo de que se alimentou a trajectória que nos trouxe até aqui. Em que tomamos como certo e inexorável que, se perdermos a memória daquele tempo e dos seus sentimentos e afectos mobilizadores, há-de fenecer em nós a vontade de empreender, de assumir e respeitar compromissos, de inovar, de criar coisas novas, de nos recriarmos e reinventarmos. Que começaremos a andar para trás e que a acomodação, o demissionismo, a rotina e a mediania tomarão conta do nosso dia a dia e das nossas vidas. Ao recordar e invocar os nomes muito queridos dos Professores Nuno Grande e Ferreira da Silva, estaremos sempre a relembrar a paixão e o entusiasmo do começo e a recriar a determinação e as forças do fazer, do avançar, do vencer. Porque o melhor que aprendemos e sabemos tem o seu certificado de origem. E disso há-de esta casa guardar sempre memória, com o sabor doce da saudade e da gratidão. Bem hajam! Igualmente iluminados pelo sentido cívico e pela obrigação de exaltar o mérito de quem cumpre o trajecto da vida de modo limpo e exemplar, promovemos a realização de uma homenagem à atleta Rosa Mota, por ocasião da passagem de 20 anos sobre a data (1982.09.12) da conquista da sua primeira medalha de ouro nos Campeonatos Europeus de Atletismo em Atenas. A solenidade teve lugar no Casino da Póvoa, em 2002.10.09. Metacorpo, corpo sem corpo e além dele, Rosa não corre na Terra. Voa no espaço e corta a meta no Céu como astro e ícone da sublimação. Rosa não tem peso; é atleta alado do nosso sonho e aspiração. Não enfrenta a gravidade; Rosa é uma fulguração. Rosa da nossa essência e transcendência. Rosa da fé e da esperança. Do riso e da bonança. Do nosso querer e exaltação. Rosa sinfonia da nossa condição. Estrela brilhante na escuridão. Rosa inteira, sem a mácula do azedume e das desculpas da falta de ambição. Rosa sem espinhos e esgares de crispação. Rosa de sorrisos nas palavras da boca e nos gestos da mão. Rosa dos afectos e da nossa gratidão. Rosa florida na labuta do sangue e do coração. Rosa da humildade e da alegria. Do canto e da poesia. Rosa do povo e da democracia. Rosa esculpida na pedra da vida. Rosa de ouro, de prata e marfim. Rosa de todos e de mim. Rosa dos ventos, dos mares e da distância; Rosa padrão da nossa errância. Rosa de Atenas. Rosa de Seul. Rosa simpatia de todos os lugares. Rosa admiração de todos os olhares. Rosa da Humanidade e da nossa cidade. Rosa universal, do mundo e de Portugal. Rosa de Setembro, mas intemporal. De carne e osso, mas imaterial. Rosa prodigiosa e única, mas natural. Rosa laboriosa e generosa, sem igual. Para sempre Rosa!