Resumo

1. Há, no dizer do escritor uruguaio Eduardo Galeano, uma tradição universal de divórcio da cabeça com o resto do corpo, desprezando aquilo que não serve para pensar. É ela que afecta a relação de muitos intelectuais de direita e de esquerda com o desporto e nomeadamente com o futebol. Os de direita dizem que o futebol é a prova de que o povo pensa com os pés. Os de esquerda atribuem ao futebol a culpa de que o povo não pense. Muitos desses intelectuais afirmam amar a humanidade, mas desprezam as gentes, sobretudo as mais simples. Acercam-se com interesse de temas populares, mas têm alergia no tocante ao futebol por ser uma actividade cada vez com mais espectadores e com menos protagonistas. Claro que isto é verdade, mas o mesmo se passa no cinema, no teatro, na dança e noutras formas de cultura e arte, sem que suscitem idêntica reacção. Não, não me revejo neles. Sinto-me muito bem no convívio com o desporto e com os seus actores. Tenho apreço por eles e considero relevante o seu papel. Tomo o desporto como uma oportunidade para o encontro simples com a nossa própria humanidade. Como um local onde o homem cultiva as forças impulsivas e irracionais da sua natureza e se move por emoções, paixões e ideais. Onde o Id, isto é, o reservatório de pulsões simples e primitivas e tudo quanto de infantil, bestial, alógico e sensual pasta no inconsciente, sai da clandestinidade e penetra no consciente para celebrar a paz até que surja a próxima guerra com o Ego. Onde podemos alcançar a serenidade e fazer as pazes entre tudo o que está dentro de nós. Sim, o desporto serve para cuidar do corpo e para limpar e aquietar a alma. Mais, não tenho qualquer rebuço em afirmar que pertenço ao número dos que rejubilam com as vitórias e sofrem com as derrotas desportivas. Que aplaudo e valoro os feitos dos atletas, porquanto jogam, correm e transpiram não apenas por eles, mas sobretudo para darem expressão viva aos nossos sonhos, desejos, aspirações, ilusões e desenganos. É sobretudo pelos outros que eles lutam, sofrem, ganham e perdem. E por isso são credores do nosso respeito, estima e afecto. No meu entender e sentir, uma partida de futebol, por exemplo, é pretexto para as mais diversas finalidades e instrumentalizações. Dela irradiam externalidades inimagináveis por mentes tacanhas, havendo nela, pelo menos, dois jogos simultâneos: o dos atletas e o dos adeptos. Dito de outro modo, o desempenho dos atletas é ocasião para os adeptos jogarem a outras coisas; um segundo jogo, bem mais sério e complexo, sobrepõe-se ao primeiro, legitimando-o e outorgando-lhe importância. 2. Vejo o desporto como um lugar pedagógico por excelência. Uma fonte inesgotável de humildade e de moralização do nosso percurso e passagem. É uma oportunidade de nos desocultarmos, de retirarmos os véus que nos encobrem e afastam, para nos conhecermos e revelarmos uns aos outros em toda a autenticidade. E assim celebrarmos uma verdadeira liturgia do relacionamento. Certamente que ele torna evidentes as nossas fraquezas, insuficiências e contradições. Mas, por isso mesmo, funda e reforça também a convicção de que o caminho mais longo é o homem como pessoa moral. É para ele que vale verdadeiramente a pena trabalhar, recusando, porém, modelos idealistas e noções apriorísticas da perfeição humana que muito pouco ou nada têm a ver com a natureza do homem. O desporto faz parte da luta contra a ideologia da impotência que nos sussurra que na vida não há nada para fazer, que não podemos fazer nada por nós, que não somos sujeitos principais da nossa construção, que nos devemos omitir e entregar nos braços de um destino de derrotados e vencidos da existência. Lembra-nos o mandamento de persistirmos na humanização da terra, de maneira modesta e realista. Sem metas e ilusões desmedidas, mas esgotando o campo do possível por entre os apertos que amarram a condição humana à natureza do homem. Portanto rio-me quando leio e ouço comentários, rotulando de alienação esta identificação. Rio-me porque não vale a pena zangarmo-nos com a nossa própria natureza e impotência e porque a tão desejada condição humana não se alcança com palavras. Rio-me ainda da ignorância atrevida de gente cheia de prosápia, a revelar quão pouco sabe da vida e dos homens. E a provar que a sua intelectualidade não vai além do formalismo inócuo, balofo, inútil e gongórico. E que se desobriga de qualquer compromisso de acção através da proclamação de ideias inflamadas do ardor da salvação. 3. Destes posicionamentos pode inferir-se que me habita uma convicção, que por certo é partilhada por muitas pessoas: O desporto é a nossa paixão. Reparem que não digo a nossa maior, mas tão somente a nossa paixão. É que não sei se ainda haverá outras. E se as há encontram-se em franco declínio. Porém passemos adiante. Esta paixão implica uma função específica para os diversos agentes do desporto. Os políticos é mister que desenhem o quadro de interesses nacionais e sociais que o desporto deve cumprir e que para tanto definam a hierarquia de prioridades e disponibilizem os respectivos meios. Os dirigentes, técnicos e atletas obrigam-se à função de o configurar e realizar com o mais alto grau de excelência possível. E sobre os académicos impende a tarefa de o pensar e teorizar, de balizar os caminhos que ele deve seguir em ordem à melhor concretização do ideário que o inspira e das finalidades que o determinam. Como um projecto axiológico e um edifício de princípios. Percebe-se bem que, sendo a paixão comum, as diferentes funções dialogam entre si e complementam-se umas às outras. Logo o desporto que entra em cena é sempre a expressão do compromisso entre o imaginável e desejável, por um lado, e o possível e concretizável, por outro. 4. Esta revista e a escola que a edita assumem inequivocamente o desporto como seu objecto. Vinculam-se portanto à obrigação de procurar estabelecer conhecimentos, padrões e critérios susceptíveis de ajudar a uma configuração do desporto que pode e deve ser sempre melhor. E à mesma luz envidam esforços no sentido de agregar e multiplicar as forças capazes de projectar o espaço lusófono na comunidade internacional de construção da Ciência do Desporto. É nesta conformidade que a Escola Superior de Educação Física da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, a Escola de Educação Física e Esporte da Universidade de São Paulo e a Faculdade de Ciências do Desporto e de Educação Física da Universidade do Porto estão a ultimar um projecto saudado pelas autoridades académicas, qual seja o de um curso de doutoramento inter-institucional, visando a formação avançada de jovens doutores na vasta panóplia de relações entre o desporto e a saúde. Trata-se de um projecto inovador à escala internacional, no domínio da Ciência do Desporto, inspirado na preocupação de formar especialistas com uma visão muito alargada e com competência em tecnologias de ponta. Espera-se que os quadros formados neste programa estejam à altura de traçar para a nossa área e para as suas instituições os caminhos largos do futuro. Livres da estreiteza e superficialidade de vistas e abordagens herdadas do passado e que ainda penalizam o presente.