Editorial Identidade e Missão
Por Jorge Olímpio Bento (Autor).
Em Revista Portuguesa de Ciências do Desporto v. 4, n 2, 2004.
Resumo
novos! Vinde, porque é de mosto O sorriso dos deuses e dos povos Quando a verdade lhes deslumbra o rosto. Miguel Torga Eis-nos reunidos de novo em congresso, como romeiros gratificados pela conclusão de uma longa caminhada. Viemos das quatro partidas do Mundo, mais uma que é a do nosso permanente sonho de aventura. Partimos, faz tempo, da diversidade e da diferença, movidos pela consciência de que temos um firme traço de união. Mas afinal quem somos? Como nos vemos e definimos? Não o sabemos dizer inequivocamente, embora sintamos vivamente aquilo que nos perfaz por dentro e por fora, na alma e naquilo que dela se revela. É verdade que os povos não têm uma natureza própria que lhes seja dada geneticamente. Mas imaginam que a têm e no esforço dessa imaginação projectam e concretizam traços de carácter, sentimentos, pré-disposições, atitudes e maneiras de ser e de realizar a existência que tendem a colar-se a eles como uma segunda pele, como uma verdadeira natureza. Ademais cada língua condiciona à sua maneira, revela pontos de vista ou perspectivas peculiares sobre a realidade; instala de um modo distinto na vida; determina, com as suas dilatações ou contracções e estreitamentos, o sentido das coisas. Viver numa língua dá, pois, condições e possibilidades que o viver noutra não dá. O mesmo se passa connosco. Certamente não temos uma natureza genética que nos diferencie de outros povos. Porém julgamos que a temos; imaginamo-nos entretecidos pela saudade que a lonjura da distância transforma em tristeza doce e em alegria dolorosa. Vemo-nos crescer e multiplicar pela dimensão do afecto. É assim que o desejo e o virtual se tornam reais e foi assim que ficaram pelo Mundo marcas da nossa idiossincrasia que são constantes, permanentes e indeléveis em todos os que se expressam na nossa língua e se identificam com o imaginário que nela mora. Por isso o nosso conceito de Pátria não é geográfico; é sentimental e cultural; é abrangente e não excludente. O que Fernando Pessoa formulou de modo magistral: a minha Pátria é a Língua Portuguesa. Sim, quando penso em Pátria descortino e avivo um conjunto de sentimentos e crenças, de rotinas e comportamentos, de aptidões e inclinações, de amores e paixões, de qualidades e fragilidades, de debilidades e virtudes que nos são comuns. Nesta conformidade, quase sem darmos por isso e por ser natural, torcemos conjuntamente por todos os Países que falam o português, somos solidários com os seus problemas e dores, exultamos com as suas realizações e alegrias e desejamos para eles um presente de esperança que anuncie a vinda de um radioso futuro. E retribuímos uns aos outros a cem por um, como ficou sobejamente demonstrado na recente EUROCOPA. Mais, servimo-nos exemplarmente dela para dizermos uns aos outros que reparemos nisso e que não desbaratemos o maior e mais genuíno dos patrimónios que nos ligam e comprometem: o do coração e dos afectos. É este imaginário que nos constrói e nos dá uma pele sensível, eriçada e real. É ele que nos aconchega uns aos outros, quando nos vemos e ouvimos no estrangeiro. Foi esse mesmo que me percorreu como um calafrio de comoção, quando, há alguns anos, vi no aeroporto de Hong-Kong um avião da VARIG; foi ele que me empurrou para o balcão dessa companhia, na ânsia de partilhar um sentimento e uma pertença comuns. Somos da lusofonia, pelas emoções profundas e incontidas, pelas paixões ardentes e excessivas, pelos gostos e sabores exibidos, pelos vícios e prazeres não escondidos, pelas comidas e pelos vinhos da abundância, pelo Sebastianismo do fado e da esperança, pela religião da nossa bem-aventurança, pelas promessas e votos da nossa gratidão e confiança, pela música e poesia da nossa sublimidade e herança. Temos Fátima como altar da fé e penitência da nossa peregrinação e errância e o Maracaná e o Estádio do Dragão como catedrais sublimes do futebol da nossa magia e infância. Esta singularidade – que a temos e muito prezamos – não a queremos presa no próximo e familiar; queremos vê-la levantada como um padrão nos roteiros universais da existência. Porque, disse-o bem António Sérgio, “...só é profundamente português o que for como tal um cidadão do mundo”. Para onde vamos? A pergunta não tem resposta, porque carecemos dela a todo o tempo, para nos mantermos e justificarmos como vivos. É por ela que estamos aqui e agora; para formular novas mensagens e plantar mais “naus a haver”. Inspirados em Pessoa fazemos nossa a exigência de António Sérgio: “Fadados à sina de transpor limites, tivemos um carácter universalista pela nossa acção no mundo físico: está na índole da nossa história que o tenhamos também no mundo moral”. Convoco-vos, caros congressistas e muito prezados colegas e queridos amigos, para nos sentarmos à volta de mesas de fraternidade. Sejamos generosos! Discutamos tanto quanto é nossa obrigação e mister. Renovemos conceitos, pontos de vista, conhecimentos, projectos e soluções, ideais, utopias e ilusões, sabendo que há tantas coisas quantas as formas de as imaginar, ver e dizer. Renovemos aquilo que nos determina, para assim nos renovarmos a nós. E não descuremos a renovação do modo simbólico e real de comermos o pão do nosso sustento e de bebermos o vinho da nossa inspiração. Eu vos saúdo e digo bem-vindos! Vós sois uma constelação de embaixadores e mensageiros, de sacerdotes e senadores, de oráculos e profetas. Partilhemos a palavra e a vida. E façamos o milagre da harmonia e da multiplicação.