Integra

 Mantém-se entre nós a inconformidade quanto a todas essas medidas assumidas pelo atual governo em relação à educação. O desacordo com as reformas impostas funda-se na compreensão de que o sentido das mesmas, explicitado como pretensão de modernizar e racionalizar, implica na ausência do Estado como responsável pela garantia de direitos como saúde, educação, cultura e demais serviços públicos. O Estado se desincumbe, progressivamente, da execução dos serviços e da regulação dessa prestação.


 Ao mercado cumpre a realização do atendimento à população, porque portador de racionalidade sócio-política e agente principal da República, conforme identifica Chauí (1999:3). Transformam-se, assim, a educação, a saúde, a cultura, o bem-estar de condição de direito, conquista social, em serviços definidos pelo mercado. Todos conhecemos o resultado dessa política nefasta e temos no ambiente de trabalho, frente às circunstâncias impostas, discutido, tomado posição e organizado ações (até precárias e frágeis), considerando a força e a falta de limites dessa política.


 Somos conscientes dos significados dessas mudanças vertiginosas produzidas pela globalização, a sociedade de consumo, a sociedade da informação. Não há marcos definidores dos limites de alcance dessas metas do capitalismo, em mais uma crise que o caracteriza.


 Está na celebração do presente, no esquecimento do passado e na eliminação das possibilidades de futuro o fôlego para sustentar esse processo de reformas. Lado a lado, a teoria do fim da história (pondo um ponto final às perspectivas de futuro) e as versões capitulacionistas do pensamento pós-moderno, outorgam ao vencedor consumado - a classe dominante - a condição de repetição de novos fascismos transnacionais públicos e privados, sob a capa de uma democracia sem condições democráticas, estando a criar um apartheid global (Santos, 1996:16).


 Do passado como memória das lutas e conquistas não tem restado mais do que a banalização, a trivialização dos conflitos e sofrimentos humanos. Para o futuro, poucas possibilidades têm se apresentado como construção de inconformismo, rebeldia e revelação das traições aos projetos embalados por sonhos de uma sociedade superior a cada conquista.


 Penso que, face às restrições democráticas postas como pano de fundo de todas as medidas governamentais, mais do que destacar as características e situar as denúncias em torno das diretrizes e dos parâmetros curriculares nacionais, está a exigência de resgatar o passado, a memória do construído ao longo de tantos anos pelos professores-sujeitos-dessa-história; informar-nos em relação ao presente - que metas a curto e médio prazos são exeqüíveis, no sentido de assenhorearmo-nos desse processo de transformação; e, propor, para o restabelecimento da utopia, ações revitalizadoras de nossa própria imagem e força coletiva.


 No passado recente o resgate do texto curricular de nossa autoria


 Se a reconstituição histórica é marcada por acontecimentos, autores e obras que tornam-se emblemáticos das rupturas no processo de mudanças e/ou transição, podemos considerar o conjunto das transformações pelas quais passou a educação na década passada como sintetizadoras da história da qual participamos e fomos capazes de construir. Impossível secundarizar os avanços obtidos nas reformulações curriculares nas diversas áreas de conhecimento. O modo como lidamos com o político, o institucional e o acadêmico indica o vigor de uma categoria, assumindo o direito à voz, próprio da mobilização da sociedade civil ao longo da década de 80, particularmente.


 Para nos situarmos no debate a respeito dos PCNs e DCNs é necessário recuperar o conteúdo das mudanças curriculares, nas diversas áreas que compõem o currículo. Na Educação Física, por exemplo, temos que afirmar a extensão e a profundidade das mudanças que revelaram a criança e o adolescente das camadas populares e focalizaram a atenção para com o corpo, a sexualidade, a diversidade étnica e as formas de inserção cultural, a compreensão da multiplicidade das origens econômicas e sociais, a questão do gênero, da infância e da adolescência, do trabalho, da saúde, da estética, do bem-estar. Os que vivemos como alunos e professores os diferentes projetos das décadas de 70 e 80, sabemos os significados das mudanças dessas concepções: de sujeito, sociedade, educação, tempo integral de escola, camadas populares, recreação, prazer e lazer vinculadas à experiência educacional.


 Tais avanços e conquistas estão abafados, vulgarizados, banalizados, extirpados nos textos dos Parâmetros e Diretrizes Curriculares, trazendo no retrocesso das medidas de controle, impostas pelo cunho avaliador, o esvaziamento do conceito de construtivismo, o modelo de eficiência e a instauração de uma outra mentalidade, isto é, velhas formas de querer, sentir, pensar, propor, adequadas ao desenvolvimento e à inserção do país no projeto de globalização imposto pela ordem capitalista mundial.


 Na análise do currículo real, reconhecendo os componentes que propiciam estender as observações à caixa preta que é a aula, identificamos as prescrições para o ensino como produto de um longo tempo de escolhas no interior da cultura acumulada. Da reorganização e enfraquecimento de fronteiras e hierarquias entre as disciplinas, tornando a Educação Física reconhecida como igualmente importante no currículo da escola básica, depreende-se o avanço na elaboração das áreas de conhecimento distintas. É a prática da concepção de interdisciplinaridade (diferente da concepção de transversalidade em sua função operacionalizadora), sua dimensão filosófica e alcance político que foram incorporados no cotidiano da escola básica.


 A esse respeito cumpre examinar na composição do projeto educacional produzido no âmbito dos movimentos sociais as considerações a respeito da integralidade do humano, postas nas referências epistemológicas do outro texto de LDB (concebido pelo conjunto dos professores ao longo de mais de dez anos e negado pelo Congresso). As bases teóricas e proposições metodológicas concentram-se no que tem sido cultural e historicamente acumulado desde a prática político-profissional dos professores nesta área. Temas como corpo, esporte, lazer, atividades rítmicas e expressivas, lutas, jogos estão implicados na construção histórica do conhecimento que pautada em acentuada crítica, buscando sua identidade, superando forte tradição biologizante e militarizada das experiências educacionais, revelou critérios, princípios, fundamentos e proposições para um campo de trabalho e pesquisa revigorador do conhecimento curricular em sua totalidade.


 Da ótica da Educação Física obtém-se a visibilidade da unidade do conteúdo e da forma, cujas possibilidades investigativas centraram no conhecimento do humano, da sociedade e da ciência - o concreto do corpo, o imediato, o local, o afetivo, a cognição - as bases curriculares, particularmente nas séries iniciais da escola básica. Há uma legitimidade vislumbrada, mas não reconhecida no esforço de constituirem-se os professores como curriculistas, isto é, sujeitos dessa experiência de renovação pedagógica posta em prática tão recentemente.


 Ao valorizarmos o texto curricular que produzimos estamos nos produzindo como autores das transformações, contrapondo-nos aos textos reformadores que dependem de nossa aceitação para serem implementados.


 O currículo não é algo que se desenha, escolhe, ordena, classifica a priori, para depois transmiti-lo; ele surge como fato cultural real, nas condições mesmas de escolarização, a partir de pautas/ tradições de funcionamento institucional e profissional. "No melhor dos casos, aquilo que se desenha como programa e intenções ou conteúdos culturais será sempre reinterpretado pelas condições institucionais da escolarização." (Gimeno, 1996: 37)


 O que é fartamente sabido por nós é que inovações não vingam se não houver cumplicidade e conivência por parte daqueles que as executam. A realidade da cultura escolar tem nos professores o esteio, o fundamento para as mudanças propostas.


 Quando a Constituição, a LDB, o PNE construído durante os dois CONEDs e particularmente o nosso testemunho como sujeitos apontam a necessidade da valorização dos recursos humanos, temos que reportarmo-nos à experiência de formação de quadros, segundo o melhor modelo de participação e ação investigadora das práticas curriculares. Uma avaliação rigorosa desse quadro propiciará reunir os fios desse tecido e prosseguir na tessitura. O conteúdo dos textos políticos que nos orientou - Trotsky, Gramsci, Lenin, assim como o sentido da ação investigadora do currículo, segundo Stenhouse (1981), são interessantes pontos de partida.


 Molduras e moldagens da cultura curricular


 Dando-nos conta desses dois tempos, esses dois momentos de resgate e anulação da memória e significado de nosso trabalho, considerando a capacidade de revigoramento que está sendo exigida para a recuperação das moldagens de artífices que somos da cultura curricular, temos que romper com as molduras impostas à execução de projetos alheios.


 Da consciência dos princípios, das finalidades e da história que nos orientam à reivindicação da autoria, alicerçada na capacidade para esse fazer/fazer-se, nos termos de Thompson (1987), cumpre analisar o conteúdo de nossa ação no sentido de chegarmos a um acúmulo do teórico, que resultará, certamente no enriquecimento da prática.


 Sabemos que as mudanças, por mais que alterem as práticas, nunca partem do zero; reconhecem a trajetória, o percurso histórico e se baseiam nas condições concretas dadas, assim como implicam o compromisso de melhorá-las e iluminar as decisões posteriores.


 O primordial nesse processo é ampliar a visão de currículo que vem sendo gerada, afirmando os vínculos entre educação e cultura. "O ser humano é cultural; se constitui como tal no seu processo de formação e humanização. Sermos sujeitos culturais não é algo acidental à nossa condição humana" (Arroyo,1994). Ao interpretarmos os fatores que interferem na vida escolar como culturas, evidenciando a complexidade da escola e do sistema educativo, ressaltamos o caráter vivo e fervilhante dos elementos que influem sistematicamente nos intercâmbios, significados e condutas dentro de instituições escolares. Do mesmo modo, a natureza tácita, imperceptível e pertinaz de influências e elementos que configuram a cultura escolar.


 Das ênfases ora nos conteúdos, ora na técnica, ora na aprendizagem, como é o caso do construtivismo, passamos a considerar a ética do conhecimento, a ética da compreensão para a análise da viabilidade de incorporar as peculiaridades culturais que dêem conta do desenvolvimento dos sujeitos.


 Em relação à constituição dos saberes visados na experiência escolar, a cultura crítica remete ao conjunto de significados e produções de diferentes âmbitos do saber e do fazer que vão sendo acumulados pelos grupos humanos ao longo da história. É um saber destilado pelo contraste e escrutínio público sistemático, esta crítica e reformulação permanente que se alojam nas disciplinas científicas, nas produções artísticas e literárias, na especulação e reflexão filosóficas, na narração histórica. Estabelece-se frente a uma profunda crise da cultura intelectual (Pérez Gómez, 1998).


 Uma complexa rede de culturas se mescla na sociedade, cuja síntese se faz presente na escola através da inserção dos sujeitos das mais diversas origens e destinos. Explorar essas manifestações, iluminar com nossas análises o movimento social do qual participamos, controlar nossas atividades cotidianas, em vez de sermos por elas controlados, é o que se espera da intelectualidade.
A crítica curricular e ao processo educacional em sua totalidade evidencia a necessidade de decodificar a prática real, saber ler e explicitar a cultura real vivenciada cotidianamente na escola. Estão aí para serem desnudados os preconceitos de gênero, referentes às etnias, às faixas etárias, às condições sócio-econômicas.


 A emergência de certos autores, assim como a incorporação do que é produzido na universidade, no sentido de concretizar a concepção de sistema de ensino nacional, facilita nossa teorização e amplia a interpretação culturalista para uma compreensão plena da vida nas escolas, os modos de intercâmbios, as práticas de formação humana e os efeitos provocados nas novas gerações. Muito se avançou com exemplos nos sistemas regulares de ensino de mudanças de mentalidade, como foi a experiência da Escola Plural em Belo Horizonte, tendo centrado nas concepções de sujeito cultural, desde o vigor do movimento de renovação pedagógica da década passada. Cabe-nos termos ciência da capacidade de investirmos no cultivo dessa tradição, nos moldes em que Hobsbawn (1984) enuncia.


 Práticas políticas que evidenciam mudanças não são possíveis em todos os tempos, nem permitidas a todos os que desejam participar. Em alguns casos, as elaborações teóricas passam ao largo das realizações concretas, despercebidas, porque a configuração moral e material se fez alinhada a outros termos. Nesse sentido, o acúmulo revelado por esse conjunto de produções práticas e teóricas da Educação Física, por exemplo, deve ser mantido como referência cultural e não desfigurado como nos textos dos PCNs.


Nota:


 A autora é professora da Universidade Federal Fluminense


 Referências Bibliográficas


Arroyo, Miguel Gonzalez. Depoimento. Revista Educação em Revista UFMG,1994.
Chaui, Marilena. A Universidade Operacional. Folha de São Paulo. 9/5/99.
Gimeno Sacristan, José. Escolarização e Cultura: A dupla determinação. In: Novos mapas culturais, novas perspectivas educacionais. Porto Alegre: Sulina, 1996.
Hobsbawn, Eric e Ranger, Terence (org). A invenção das tradições. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984.
Perez Gomez, Ángel. La cultura escolar en la sociedad neoliberal. Madrid: Morata, 1998.
Santos, Boaventura de Souza. Para uma pedagogia do conflito. In: Novos mapas culturais, novas perspectivas educacionais. Porto Alegre; Sulina, 1996.
Stenhouse, Lawrence. An introduction to curriculum research and development. Londres: Heinermann Ed. Books, 1981.
Thompson, E. P. A formação da classe operária inglesa. Rio de Janeiro: Paz e Terra,1987.