Integra

 Nos meios escolares, em 1997 chegaram as escolas os Parâmetros Curriculares Nacionais de 1ª à 4ª série e no ano seguinte os de 5ª à 8ª séries. Esses parâmetros, apesar da crítica tecida por inúmeros intelectuais brasileiros, de uma maneira geral, foram bem vistos pelos educadores atuantes na rede escolar. Mesmo considerando a pertinência das críticas feitas, consideramos que o professor tem uma autonomia, que mesmo relativa, lhe permite conduzir o processo pedagógico, de acordo com a sua visão de mundo numa perspectiva de classe. Se as críticas nos serviram de alerta e nos conduziram a uma tomada de consciência daquilo que fizeram de nós, ou disseram para fazermos, cabe refletirmos com Sartre no sentido do que faremos com aquilo que fizeram de nós.


 Com os PCNs, a questão da interdisciplinaridade tão difundida pela pedagogia tem sido vislumbrada como uma proposta viável. Esta abordagem epistemológica dos objetos de conhecimento reconhece a falência do sistema segmentar de ensino, onde cada disciplina é apresentada de forma compartimentalizada e que, o mundo, a vida, a realidade concreta se apresenta como um complexo de relações muitas vezes diferentes e contraditórias.


 A novidade didática veio por conta da transversalidade, que, sem inserir nova disciplinas no currículo, propõe a integração das diferentes áreas e abre espaço para a inclusão de saberes extra-escolares que proporcionam o aprender da realidade com a discussão de temas do cotidiano, dando uma dimensão social a educação.


 Como temas transversais foram apresentados questões de ética, meio ambiente, saúde, pluralidade cultural, orientação sexual, trabalho e consumo, que devem perpassar o conteúdo de diferentes disciplinas, relacionando-as as questões da atualidade. Esses temas transversais quando bem discutidos e apresentados, são de importância crucial no processo civilizatório, na formação da cidadania e, acreditamos ser uma importante contribuição na formação de uma nova sociedade onde o respeito ao ser humano, à vida, à natureza, seja regra e não a exceção. Reconhecemos que a tão sonhada transformação social não se dará pela escola, mas também por ela. Daí a importância da abordagem de questões sociais, que permitiria ao aluno fazer uma leitura do mundo e uma interpretação da realidade.


 A crise que vive a sociedade brasileira, muito mais do que político ou econômica é uma crise ética. A ética além de ser um tema intensamente explorado pelo pensamento filosófico, também está imerso no cotidiano das pessoas, mediatizando as relações humanas. Este tema pode ser amplamente explorado pela educação física que tem nos elementos da cultura corporal (o jogo, a dança, a ginástica, os esportes, as lutas), a ética cruzando todos esses espaços. A reflexão e o exercício de ética de como agir perante os outros, do respeito mútuo, do diálogo, da justiça, da honestidade, da cooperação, da solidariedade durante os jogos e esportes, ganham uma dimensão infinitamente superior ao mero ensino de fundamentos, regras e técnicas desportivas.


 Os PCNs alertam para o fato de que a crise ambiental é uma crise civilizatória. A atual preocupação da humanidade com as questões ambientais se deve ao fato do homem se perceber enquanto natureza e não apenas parte dela, e que por isso, destruindo-a, eles estão se auto-destruindo. A representação social que temos de meio ambiente é herdada das ciências naturais e biológicas onde a dimensão do "ambiente social" raramente é cogitada. A discussão de questões ambientais na escola, muito além de Amazônia ou Pantanal, por exemplo, deve inserir o ambiente escolar, como o não rabiscar as paredes, não jogar papel no chão ou não sujar o pátio, usar adequadamente os sanitários, não danificar as instalações, não desperdiçar merenda, água do chuveiro ou bebedouro, enfim, preservar o ambiente escolar. E que esta consciência ecológica que é uma questão ética, ultrapasse os muros da escola chegando aos ambientes familiar, comunitário e demais ambientes de convívio humano.


 Históricamente a Educação Física tem sido associada à saúde, produto ainda de um higienismo ingênuo que, equivocadamente, trata este assunto como uma relação simplista de causa e efeito. Criticamos severamente esta concepção que prega categoricamente a melhoria da saúde pela simples prática da educação física, por não reconhecermos a possibilidade disto acontecer independente dos demais fatores; e ainda com aulas apenas uma vez por semana. No entanto, através da educação, temos condições de articular conhecimentos, atitudes, aptidões, comportamentos e práticas que promovam a saúde. Abordagem sobre o crescimento e desenvolvimento corporal, funcionamento do próprio corpo em repouso e em esforço, higiene corporal, alimentação e meio ambiente, benefícios, riscos, indicações e contra-indicações da prática de esportes e atividades físicas levariam a um autoconhecimento que conduziriam a um autocuidado.


 O tema pluralidade cultural vem enfatizar o preceito antropológico de que diferença cultural não é sinônimo de deficiência cultural. A cultura como processo civilizatório é produzida pelos grupos sociais ao longo do tempo, e a relação entre esses grupos não tem sido harmônica. A injustiça, o preconceito, a discriminação, tem permeado estas relações. A compreensão, o respeito e a valorização desta diversidade sócio-cultural são fatores fundamentais na convivência humana em uma sociedade democrática. A utilização de jogos populares, danças folclóricas, peteca (de origem indígena), capoeira (de raízes afro-brasileiras), esportes de origem norte-americana (voleibol, basquetebol) e européia (futebol, handebol), compartilhados por meninos e meninas de diferentes etnias, raças, religiões, potencialidades e limitações, respeitando a diversidade e repudiando a desigualdade. O estímulo à organização de espaços de convívio democrático e de lazer também devem ser estímulados.


 A questão da sexualidade tratada no item "orientação sexual" visa desenvolver uma ação crítica, reflexiva e educativa sobre a dimensão da sexualidade, que passa também pelo corpo. O conhecimento dos múltiplos aspectos do nosso corpo (biológico, afetivo e social), favoreceriam a compreensão de transformações físicas, emocionais e de relacionamentos trazidas pela puberdade. Questões como aborto, gravidez, homosexualismo, masturbação, reprodução, são temas de interesse acentuado pelos alunos. A percepção do corpo através do movimento, a sensação de prazer acompanhada do esforço físico, a oportunidade de participação conjunta de ambos os sexos nas atividades corporais, a fragilidade e o cuidado com os órgãos genitais e seios durante a prática de esportes, passam também pela dimensão da sexualidade.


 Por último, a relação trabalho e consumo passa por discussões sobre a influência da mídia no consumo de supérfluos, a dicotomia histórica entre trabalho intelectual e trabalho corporal, passando pela desvalorização do segundo, inclusive da própria educação física diante das demais disciplinas, a questão do desemprego gerada pela automação dos serviços, o reconhecimento e a negação de tarefas que comprometam a sua integridade e saúde, a segurança no trabalho, a organização das práticas de lazer comunitário, sendo o lazer uma necessidade do trabalho.


 A abordagem destes temas transversais integrada pela educação física e demais disciplinas formais, absolvem a condenação propedêutica da escola e de formação de capital humano, e quando trabalhada de forma crítica, tem a possibilidade de contribuir para a formação de uma cidadania responsável, consciente e comprometida com a humanização do homem.


 Notas:


 O autor é Coordenador e Professor da Faculdade de Educação Física da Universidade Salgado de Oliveira - Niterói
Endereço:
Rua Vicentina Goulart, 120 - bloco 05 - apartamento 102 - Bandeirante - São Gonçalo - RJ - CEP: 24731-020 - tel.: 9137-3179


 Referências bibliográficas


.Brasil. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais : terceiro e quarto ciclos do ensino fundamental : introdução aos parâmetros curriculares nacionais / Secretaria de Educação Fundamental. Brasília : MEC/SEF, 1998.
.Brasil. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais : terceiro e quarto ciclos : Apresentação dos Temas Transversais / Secretaria de Educação Fundamental. Brasília : MEC/SEF, 1998.
.Brasil. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais : terceiro e quarto ciclos : Educação Física / Secretaria de Educação Fundamental. Brasília : MEC/SEF, 1998.