Integra

O presente estudo é parte de uma pesquisa mais ampla que pretende resgatar o percurso da Educação Física (EF) nas décadas de 70, 80 e 90 do século XX, no Colégio Estadual do Espírito Santo, destacando os discursos e as práticas que a mesma utilizou/realizou para justificar-se como uma disciplina no currículo escolar.

Para este estudo de caso estão sendo utilizadas várias técnicas de coleta de dados. Uma delas é a análise documental, que envolve basicamente os planos de trabalho pedagógico e os registros das pautas ou cadernos de chamada dos alunos da disciplina de Educação Física, no período compreendido entre os anos de 1970 e 2000. Foram também realizadas entrevistas com ex-professores de EF, ex-alunos, ex-diretores, atuais professores e com a atual diretora. Esses documentos e relatos/entrevistas constituem a base empírica da narrativa que construímos.

No caso especifico deste artigo, buscaremos fazer uma análise dos dados que coletamos na pesquisa "Estudo de Caso do Colégio Estadual do Espírito Santo" confrontando esses dados com o projeto "Esporte na Escola", no intuito de compreender a proposta de legitimação da Educação Física embutida nesse programa oficial propalado pelo Ministério do Esporte e do Turismo (MET). Para tanto, o texto será construído em três momentos: a) apresentação da pesquisa "Estudo de Caso no Colégio Estadual", contribuindo para a discussão da posição da Educação Física na hierarquia dos saberes escolares e compreendendo a sua trajetória recente como componente curricular; b) breve apresentação do projeto "Esporte na Escola" buscando analisar os pontos que julgamos essenciais a uma compreensão mais ampla acerca da complexidade do tema e; c) discussão e tentativa de confrontar os dados da pesquisa e os objetivos/característica do programa.

A educação física e o esporte do Colégio Estadual do Espírito Santo

Se nos reportarmos às primeiras décadas do século passado, constataremos que o elemento da cultura corporal predominante na EF brasileira eram os chamados métodos ginásticos. Entretanto, e já a partir desse momento, o esporte paulatinamente passa a exercer uma maior influência sobre a EF, afirmando-se como elemento hegemônico da cultura corporal, notadamente após a segunda metade daquele século. A partir daí, a relação simbiótica estabelecida entre EF e esporte se acentua de tal forma que temos, a partir de meados de 1960, o esporte se impondo como conteúdo da EF, passando esta a estar "a serviço do sistema esportivo, desempenhando o papel de base da pirâmide , sistema esse que possui como culminância a alta performance esportiva"(Bracht,1999. p.21).

No colégio Estadual, o fenômeno esportivo conformou a EF a partir de meados de 1960, conferindo à mesma um status, ainda que temporário, perante as demais disciplinas.

Os professores assumiram papéis de destaque graças à presença do esporte na escola, pois seria esse fenômeno, e não a EF, o responsável pela legitimação dos mesmos na escola, além de representá-la perante o cenário capixaba. Dessa forma, acreditava-se que a disciplina teria alcançado sua legitimidade naquele espaço, decretando, de uma vez por todas, qual papel lhe cabia no currículo da instituição e sua presença indubitável na mesma.

Os dados obtidos indicam a existência de um universo esportivo paralelo às aulas de EF. Os alunos que se destacassem numa dada modalidade esportiva - os talentos esportivos - e/ou aqueles que comprovassem a sua participação como atletas em clubes da região, eram liberados das aulas desde que participassem de alguma equipe da escola. Havia ainda professores exclusivos para trabalhar com o treinamento de equipes, visando a competição esportiva, exercendo exclusivamente a função de treinador para seus alunos. Alguns desses professores não possuíam a formação específica em EF, mas atuavam como treinadores em função da experiência adquirida com a prática de esportes.

Todo status adquirido e a pseudolegitimidade alcançada perdura até meados da década de 1980, quando, por uma série de fatores, os laços estreitos entre EF e esporte, responsáveis pela justificação da EF na escola, começam a ser abalados e tornam-se insuficientes para fazer dela uma disciplina essencial àquela instituição, desencadeando um processo nefasto à disciplina.

Atualmente , parafraseando um dos professores entrevistados, a EF é vista como um "instrumento" que atrapalha. Segundo ele, "antigamente a EF era colocada num patamar de respeito exatamente pela evidência esportiva que tinha a escola"(Professor do Colégio).

No imaginário social daqueles professores, o fenômeno esportivo goza de enorme privilégio. Esse fetichismo construído em torno do mesmo não lhes permite enxergar que, na verdade, a importância da EF na escola não se dá em função das contribuições oriundas dessa disciplina aos objetivos da educação, mas sim pelo reflexo da presença do esporte na escola, especificamente dos ganhos obtidos nos eventos esportivos em que a mesma se envolvia .

Percebemos pelo exposto que o esporte na escola, orientado pelos cânones do sistema esportivo, concretizou-se nessa instituição.

Nem por isso, sua presença foi suficiente para legitimar a EF e torná-la indispensável à formação dos alunos. Prova disso é que no final da década de 1990 a direção da escola pretendeu reduzir as aulas de EF, até então com duas (2) aulas semanais, para apenas uma (1) aula semanal. Diante desse episódio, que demonstra, em nosso entendimento, o descaso da escola para com a disciplina, os professores de EF se reúnem e decidem elaborar um documento, encaminhado à direção da escola e à Secretária de Educação (SEDU), solicitando que não se concretizasse tal medida. Os propugnadores desse documento, objetivando justificar a manutenção das duas (2) aulas semanais e, ainda, buscando evidenciar a importância da EF na escola, "apelam", mais uma vez, para o fenômeno esportivo e suas contribuições para a formação dos alunos. E, como antes, não advogam pelo esporte da escola, mas sim pela "simples" presença do esporte na escola. Isso porque, graças à importância do mesmo no imaginário social da escola, realmente acreditam na capacidade dele em justificar a presença da disciplina na instituição.

O projeto "Esporte na Escola" do Ministério do Esporte e Turismo

Esse programa é gerenciado pelo Ministério do Esporte e Turismo (MET), criado no ano de 1999. Antes de lançar o Esporte na Escola, o MET criou outros programas menores como: o Esporte solidário, Pintando a Liberdade e o Projeto Navegar. O Esporte na escola, no entanto, aglutina todos os demais e recebe o apoio do Ministério da Educação e de dezenas de entidades governamentais ligadas ao esporte e à educação.

Esse programa tem como objetivo levar o esporte para as escolas de ensino fundamental de todo o país, abrangendo um total de 36 milhões de alunos (a meta é de 10 anos). Para a efetivação do projeto, serão implantados "Núcleos de Esporte na Escola" sendo fornecidos às escolas Kits com bolas, redes de futebol e voleibol, bandeiras do Brasil e do referido programa. O projeto busca recuperar "o tempo perdido", resgatando atividades esquecidas pelas escolas há mais de duas décadas, sendo isso apontado como causa do desempenho "abaixo da expectativa da participação brasileira nas olimpíadas de Sidney, na Austrália, em meados de 2000". Segundo os autores do projeto, o esporte na escola é "o coroamento dessa política de pensar o esporte como fator de interação social; de oferecer aos brasileiros novas possibilidades como a discussão e negociação da validade das regras e normas que hoje o constituem".

O esporte, segundo os autores do projeto, deve ser percebido como instrumento educacional que tem relação direta com os fins da educação, do desenvolvimento individual da formação para a cidadania e da orientação para a prática social (1)

O ex-Ministro Carlos Melles (MET), advoga ter retomado, por meio de uma lei, a obrigatoriedade da EF nas escolas brasileiras (lei N.º 10.328 de 12 de dezembro de 2001), retificando o artigo da lei N.º 9.394 que trata da disciplina EF. A alteração desse parágrafo na lei N.º 9.394 permitiu a inclusão da palavra obrigatória após a expressão curricular, justificando a necessidade de retomar definitivamente a obrigatoriedade da educação física no ensino básico. Segundo Melles, a sociedade precisa reconhecer a importância da obrigatoriedade da educação física e da prática esportiva nas escolas (2)

O Ministro do Esporte e Turismo, com o intuito de fomentar seu celeiro de atletas(as escolas) e de se refazer do "vexame" das olimpíadas de Sydney, buscou reordenar o calendário esportivo das escolas. Foram retomados os jogos da juventude, que agora passam a fazer parte do calendário oficial e organizadas as olimpíadas colegiais (antigos JEBs), com a participação de crianças de 7 a 15 anos.

Outras questões pedem uma apresentação e análise criteriosa (os Centros de Excelência, os Centros de Descobrimento de Talentos, as Olimpíadas Colegial, a Avaliação de Talentos e outros), porém, nos restringiremos aos pontos que foram apresentados até aqui. Passaremos agora à discussão do que pode representar esse projeto para a Educação Física escolar.

A educação física e o programa esporte na escola

A simples presença do esporte no Colégio Estadual não foi suficiente para fazer da EF um componente curricular necessário a essa instituição. Os dados obtidos nos fazem acreditar que a EF não conseguiu, com o discurso esportivizante, fixar-se (legitimar-se) enquanto uma disciplina reconhecida pela comunidade escolar, principalmente pela coordenação pedagógica e pelos professores de outras disciplinas.

Outro aspecto a ser apontado diz respeito aos órgãos responsáveis pela implantação do projeto "Esporte na Escola". Se o que advogamos é o esporte da escola, a tarefa de organizá-lo deveria concentrar-se nas autoridades educacionais, tais como o Ministério da Educação, as Secretarias Estaduais, Municipais e a própria escola, e não no MET. Como verificamos no Colégio Estadual, a maioria das escolas trata o esporte escolar a partir da orientação do sistema esportivo, organizando-se a partir dos seus cânones.

É bom esclarecermos que, ao refutarmos a ligação estabelecida entre EF e as outras instituições não escolares, não somos contrários a tais relações. Contudo, se analisarmos a forma com que essa relação aconteceu na história da EF e os ideais presentes no programa do governo, constataremos que tais parcerias não são orientadas a partir das especificidades da escola, mas sim a partir de elementos externos a ela e à EF.

Outra questão a ser analisada é a propalação, realizada pelo MET, da volta da obrigatoriedade da EF nas escolas. A EF não voltou a ser obrigatória por que nunca perdeu a sua obrigatoriedade( o problema, ao nosso ver, não é de obrigatoriedade, mas sim de legitimação).

Ao que parece, a verdadeira intenção do MET é resgatar a cultura da prática esportiva (com o objetivo de formar atletas) no cotidiano escolar. Entretanto, a história do próprio Colégio Estadual demonstra que essa cultura esportiva no contexto escolar não conquistou o tão sonhado espaço (legitimação) da EF no currículo dessa escola, pois, ao restringir as aulas de EF no emprego das destrezas esportivas, acabou limitando as potencialidades educativas do conteúdo esporte, deixando por isso de contribuir com os fins da educação.

Percebemos, também, que esse projeto envolve não apenas a disciplina EF, mas toda a escola, pois o sistema educacional passa ser o espaço utilizado pelo MET para a descoberta e formação de novos talentos, na intenção de que esses talentos garantam, nas olimpíadas colegiais Municipais, Estaduais e Nacionais (antigo JEBs presente no Colégio Estadual), o retorno do glamour do esporte brasileiro. A questão é: Quais repercussões um programa desse porte pode trazer para a disciplina EF e para a escola? Será o espaço escolar o adequado para a efetivação das políticas públicas pensadas para o esporte e para o lazer da população em geral?

Concluímos que se faz premente para o campo da EF "obter (urgentemente), legitimidade no interior do campo pedagógico, enquanto prática e disciplina acadêmicas, sob a pena de ter sua própria existência ameaçada e isso não simplesmente no sentido da extinção, mas de simples substituição pelo esporte (na escola)" (Bracht, 1999, p.26).

Notas

  1. Citações encontradas no encarte "Esporte na Escola" publicado no Jornal do Brasil (JB) do dia 3 de mar. 2002.
  2. Ibidem.

Obs. Os autores do trabalho, professores. Dr. Valter Bracht, Rosely Maria da Silva Pires fazem parte do LESEF/CEFD/UFES, os alunos Sabrina Poloni Garcia, Ana Flavia Souza Sofiste, Felipe Quintão de Almeida, Mauro Sérgio da Silva, Elisa Barcellos da Cunha e Silva, Evania Nunes de Angeli são bolsistas e graduandos que pertencem também ao LESEF/CEFD/UFES

Referências bibliográficas

  • Andrade  Filho, N.F. , Fiqueredo, Z.C.C. A Volta da obrigatoriedade da aulas de Educação Física para as escolas brasileiras: sentidos e significados de uma obsessão nacional. Vitória, 14 dez.2000 (mimeografado).
  • Assis de  Oliveira, Sávio. A Reivenção do Esporte: possibilidades da prática pedagógica. Campinas: Autores Associados, 2001.
  • Bracht, Valter. Educação Física e Ciência: Cenas de um casamento (in) feliz. Rio Grande do Sul. Editora Unijuí, 1999.
  • __________. Saber e o fazer pedagógico: acerca da legitimidade da Educação Física como componente curricular. In: CAPARROZ, F.E (Org.). Educação Física Escolar: Política Investigação e Intervenção. Vitoria: PROTEORIA, 2001. p.67-79
  • __________. O Esporte Na Escola. Palestra proferida no II Congresso Brasil Esporte, Recife, novembro de 2001.
  • Caparroz, F.E. O Esporte como conteúdo da Educação Física: uma Jogada "desconcertante" que não "entorta" só nossas " colunas", mas também nossos discursos. Perspectivas em Educação Física Escolar, Niterói, v. 2, n. 1 (suplemento), 2001.
  • Esporte  na  escola. Jornal do Brasil, 3 de mar. 2002. Encarte. p. 1- 35
  • Ministério do Esporte e  Turismo (Brasil). Programa Esporte Na Escola.