Educação Física escolar: Para além de práticas esteriotipadas
Por Rosa Malena de Araújo Carvalho (Autor).
Em IV EnFEFE - Encontro Fluminense de Educação Física Escolar
Integra
encaminhá-la na escola, passamos a relacioná-la com o mundo da Cultura. Neste sentido, começa a ser priorizada como uma prática escolar, com intencionalidade pedagógica, cujo conteúdo curricular aborda, tematiza o conhecimento da área denominada Cultura Corporal. Esta cultura corporal materializa-se através da contextualização (teórica e prática) dos jogos, das ginásticas, da dança, das lutas, da forma esportivizada que estas atividades assumem, assim como pela O tratamento que hoje damos as práticas corporais está baseado na concepção de corpo adotada por uma nova organização social que tem o seu estabelecimento no início do século XVIII. As pessoas e a sociedade passam a ser entendidos pelas normas científicas, não mais pelas leis divinas. Neste sentido, propaga-se que cabe a cada um, por mérito próprio, competência pessoal, esforço individual, alcançar a melhor posição nesta nova composição social - configurando, assim, a idéia de aptidão natural, a qual tem força na Educação Física Escolar: muitos adolescentes têm vergonha de participar das aulas por não dominarem os movimentos específicos dos jogos; muitas meninas acham-se naturalmente inferiores aos meninos por não apresentarem o mesmo nível de habilidade motora; os portadores de deficiência física acham normal não serem incluídos; etc. Cientificamente, pedagogicamente, afirma-se a superioridade de uns sobre outros.
Buscamos a superação da maneira como determinadas atividades físicas são naturalmente desenvolvidas pela escola e, por isto, identificamos os esportes, jogos, as atividades ginásticas de uma maneira geral, as formas de ludicidade, como expressões, representações do que é vivido, do historicamente criado e socialmente desenvolvido.
Querendo relacionar esta discussão com a instituição escolar, percebemos que a organização da escola, através do Estado, faz parte da estratégia de intermediação política entre capital e trabalho. Esta intermediação vem ao longo do processo político e econômico que é implantado no Brasil através das políticas públicas que começam a ser aqui implementadas - mais especificamente na década de 30. Assim, o Estado Brasileiro ao assumir a responsabilidade de desenvolver e consolidar um sistema nacional de educação, o faz de acordo com os requisitos da ordem urbano-industrial.
O grupo socialmente hegemônico recompõe, de diversas maneiras, a sua condição social. Nestes anos 90 constatamos a presença do pensamento e da forma de governo neoliberal - o qual redefine, de forma mais conservadora, o destino que o Estado dá a verba pública: diminuindo gastos na área social (saúde, educação, habitação, transporte), aplicando nas áreas (como rodovias, transporte de carga) que aumentam a acumulação de um número pequeno de grupos privados. No caso brasileiro, estas ações vêm acompanhadas de políticas que procuram consolidar a associação dependente do Brasil ao sistema capitalista mundial, em um momento em que acentua-se o domínio dos países que produzem ciência e tecnologia sobre os que importam esta mesma ciência e tecnologia. Nossas políticas educacionais se direcionam no sentido de operarmos produtivamente o conhecimento transferido do capitalismo central - nesta perspectiva, o estado neoliberal amplia o processo de privatização do aparato educacional e, subordina os objetivos da escola aos da empresa. Um exemplo claro disto existe na chamada "qualidade total na educação", a qual transfere critérios, definições e objetivos empresariais para as unidades escolares.
Ao mencionar as políticas educacionais, tentamos atender à necessidade da vinculação da prática cotidiana com um universo maior - os determinantes econômicos, políticos, sociais. Junto com isto, uma proposta política de educação pode nos ajudar a articular a teoria com a prática e a sintetizar as necessidades sociais mais urgentes que dependem da ação ao nível do Estado - nos auxiliando a diferenciar o que está na esfera da ação do nosso trabalho cotidiano de educador e o que depende diretamente da administração pública. Percebemos que a proposta governamental pode não atender esta necessidade de articular teoria com a prática - até mesmo porque o projeto político do grupo hegemônico pode estar dependendo da contradição entre discurso e execução.
O governo do município do Rio de Janeiro vem acompanhando a política educacional traçada, pelo governo federal, como prioritária para todo o país. Em 1996 implementa um novo projeto pedagógico, o qual está registrado no livro intitulado "MultiEducação". Este projeto deixa algumas lacunas, as quais podem servir para diversos entendimentos e orientações. Ao não caracterizar de que tipo de sociedade esta escola faz parte e, para que estrutura social os alunos estão sendo preparados, os conceitos perdem em compreensão, perpassando a idéia de uma educação politicamente neutra, em um sistema escolar abstrato
No interior da instituição escolar, o cotidiano da prática educativa está diretamente relacionado com uma teoria (pedagógica). Moacir Gadotti (1988), ao analisar a obra de alguns dos autores que discutem a teoria da educação brasileira - sob o ponto de vista da história e da filosofia - nos faz perceber que podemos agrupar as principais teorias discutidas em dois grandes grupos: o primeiro percebe a educação como um processo uniforme, contínuo, sem conflitos, ou seja, conservador. Já o segundo grupo de idéias enfatiza a educação como um processo heterogêneo, cheio de conflitos, com rupturas, ou seja, com possibilidade de emancipação, de reflexão e mudanças.
Para refletir sobre a influência que a Educação Física Escolar recebeu desta discussão, as análises de alguns dos pesquisadores conhecidos no meio acadêmico - como Ghiraldelli Jr., João Paulo Medina e Castellani Filho - nos fazem identificar que as concepções que mais dominaram na organização da prática da Educação Física promoveram o destaque de características conservadoras, ideologicamente contribuindo para momentos históricos autoritários - como exemplo, temos o incentivo e a disseminação de práticas esportivas no período ditatorial iniciado no final da década de 60, com a construção da imagem de esportista associada à neutralidade e à alienação política. Mais recentemente, Wey Moreira (1993) analisa que esta reconstituição histórica nos auxilia a entender porque o conteúdo, de que trata a Educação Física Escolar, tem sido determinado por diferentes instituições que não a escola - exemplificado através da assepsia social contida nos métodos ginásticos (influência da instituição médica) e; o forte caráter ordenador e hierarquizador presente nas práticas desportivas (influência da instituição militar).
Assim como na Europa, a introdução da Educação Física no meio escolar brasileiro deveu-se à influência de vários médicos e intelectuais que a vislumbravam enquanto um método capaz de garantir, ao mesmo tempo, dois fatores básicos e indispensáveis à condição humana: saúde e educação. O ser humano passar a ser explicado e definido em seus limites biológicos é útil ao sistema que se instaura, pois o corpo individual passa a ser entendido enquanto peça menor da engrenagem industrial capitalista. Posteriormente, baseada nesta perspectiva, a Educação Física se ocupará de um corpo a-histórico, um corpo anátomo-fisiológico, cientificamente explicado - através da mesma forma científica de explicar todas as questões sociais.
Pensar que a principal contribuição da Educação Física é formar corpos saudáveis, robustos, disciplinados, produtivos, foi-se afirmando como certo, predominante, o mais aceitável. Ao querer auxiliar a construir uma outra maneira de ludicidade e pelo prazer que o trabalho corporal propicia.
As práticas culturais envolvem códigos, sentidos e significados da sociedade que os cria e pratica - ou seja, estão caracterizadas enquanto uma produção humana, ao longo da sua história. Esta produção cultural é organizada, apropriada e valorizada de acordo com o tipo de sociedade em que se constitui. Como a sociedade encontra-se organizada em classes sociais, o grupo social dirigente e dominante tenta generalizar a cultura de sua classe como a mais interessante para todos. Fazendo parte de uma sociedade capitalista, as práticas corporais revestem-se de algumas características deste sistema: exigência de um máximo rendimento atlético; normas de comparação, idealizando o princípio de sobrepujar; regulamentação rígida; racionalização dos meios e técnicas - todo um processo de reprodução das desigualdades sociais.
Enquanto manifestação cultural, o conceito sobre corpo ultrapassa os limites biológicos, pois também passa a ser abordado com o ponto de vista da história, das relações sociais, políticas e econômicas - ao fazermos isto, estamos falando de corporeidade. As ações desenvolvidas por nossos músculos, assim como os nossos sentidos, têm um componente biológico e fisiológico inegável, mas, possuem uma dimensão cultural - temos a noção disto quando percebemos que aprendemos a achar belo ou feio aquilo que podemos ver; delicioso ou ruim o que comemos; etc. Este aprendizado não é espontâneo, pois também depende das nossas condições materiais para fazê-lo.
Ao querer fazer parte da reflexão, que hoje travamos, sobre as práticas corporais como elemento da cultura, procuramos contribuir tentando evidenciar a concretude do ser humano que pode utilizar desta cultura corporal, no espaço escolar público. Ao materializá-lo - histórica, política e economicamente - nos foi imprescindível caracterizar a sociedade da qual faz parte. Pois o corpo compreendido isoladamente da natureza e da sociedade é um corpo abstrato, distante da realidade concreta em que se faz, distante das circunstâncias que o forma.
Contextualizando a origem dos alunos que freqüentam a rede pública do município do Rio de Janeiro, percebemos que a maior parte pertence às camadas mais pobres da população. Ao querer retratar as formas pelas quais expressam e valorizam determinadas práticas e idéias, podemos dizer que estamos falando em cultura popular. Esta também expressa as formas pelas quais a cultura dominante é aceita, interiorizada, reproduzida e transformada e, ao mesmo tempo, as maneiras como é recusada, negada e afastada. Ana do Valle (92), Coletivo de Autores (92), Carmen Soares (94) e Flávio Pereira (88) são alguns dos autores que nos alertam que o popular não pode ser limitado à noção de pobreza em que vive grande parte da população. Mas, como e o que estas camadas expressam da sua história de vida e, neste processo, relacioná-los com a perspectiva de emancipação, da busca pela maior participação, efetivamente democrática, nos diversos espaços sociais.
Ao perceber, teorizar, contextualizar as práticas corporais, entendendo-as como uma produção cultural humana e social - e, portanto, em relação intrínseca, dialética com todos os elementos e com a forma de constituição desta sociedade - já influencia e muda a forma de planejar e executar a Educação Física na instituição escolar. Não defendemos alguns tipos de exercícios, jogos, lutas, danças e esportes para os mais ricos e outros tipos de práticas corporais para os mais pobres - isto seria manter a defesa e vinculação com uma proposta de manutenção da situação social que hoje encontramos. Queremos a valorização da forma com que as camadas populares se apropriam (ou não) de todas as possibilidades de jogos, ginásticas, esportes, danças e tudo mais que constitua a nossa cultura corporal.
Neste processo, passamos a valorizar conceitos que possam servir para construir uma outra forma de vida em sociedade - como a ludicidade, a cooperação, a solidariedade, o respeito às diferenças em detrimento da competição exacerbada, da meritocracia, do "levar vantagem", etc. Por tudo isto, o espaço escolar público é necessário, pois pode se constituir em um local em que as contradições e os conflitos apareçam, nos propiciando a possibilidade de historicizá-los, com a perspectiva das superações das extremas desigualdades de existência.
Obs. A autora é professora da E.M. Campos Salles, do Instituto Superior de Educação do Rio de Janeiro e substituta na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Unidade São Gonçalo)
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