Educação Física na “Adolescência” – a série
Integra
31/3/2025
Nesta altura muita gente já assistiu e discute a série “Adolescência”, uma produção inglesa de 2025 em quatro episódios sobre um garoto de 13 anos de idade que mata sua colega de classe de uma escola da região de Yorkshire, no norte da Inglaterra. O frisson da série se justifica por tratar de assuntos em alta no momento como o impacto do uso de celulares por crianças e jovens, seu acesso às redes sociais e a proibição de seu uso pelos alunos nas escolas.
No 2º. Episódio da série, os investigadores do assassinato vão atrás de provas materiais do crime, em específico da faca utilizada pelo garoto para atacar sua colega. Os investigadores vão para escola dos envolvidos pois acreditam que lá irão encontrar a arma do crime ou indícios de onde ela se encontraria. Todavia, após conversarem com a diretora da escola, alguns professores e estudantes se encontram mais perdidos do que quando chegaram. Os estudantes os tratam ora com desdém, ora com raiva, e nas entrelinhas parecem dizer: vocês estão por fora...vocês não sabem de nada. Os investigadores acreditam que encontrar a arma do crime materializaria de alguma forma não só o crime, mas os seus motivos. É preciso que um estudante, o filho de um dos investigadores, abra os olhos deles. O estudante chama o pai investigador num canto de sala e lhe diz quase que literalmente: ...você está procurando a arma no lugar errado!!! Ele então mostra ao pai a rede social utilizada pelos envolvidos no crime, o acusado e a vítima, indicando nas postagens e comentários com sua língua e codificação típica (gírias e “emojis”) os indícios do que estava se passando e que eventualmente levou ao crime. Com grande dificuldade, o investigador-pai recebe uma lição do filho-estudante sobre como uma investigação deve ser conduzida. No fundo, o investigador aos poucos percebe que a faca, prova material do crime, é apenas um detalhe: a ponta do iceberg em que toda trama se desenrolou. O investigador fica atônito diante dessa revelação demonstrando uma quase incredulidade diante do que começa vir à superfície. Aliás incredulidade é o comportamento mais comum demonstrado por quase todos os adultos envolvidos, pais e professores. Embora essa demonstração de ignorância dos adultos em relação ao mundo dos jovens possa realçar o abismo entre eles, é um equívoco concluir que vivem em mundos aparte. Sem dúvida vivem em contextos diferentes, mas esses contextos são costurados num mesmo tecido, e aqui chego na Educação Física.
O 3º. Episódio retrata uma longa sessão em que o menino é avaliado pela psicóloga encarregada de produzir um relatório independente do grau de entendimento do acusado sobre seus atos e sua trágica consequência. O relatório será utilizado para subsidiar o juiz e o júri no julgamento do caso. No início, o menino é instigado a falar de seu pai, o que de primeira mão ele resiste. Entretanto, a psicóloga convence o menino a falar de seu pai. Jamie fala da paixão que seu pai tem por esporte como ele se sai bem praticando algumas modalidades. Ao ver que o menino fala fluentemente sobre seu pai e o esporte, ela pergunta: e você? No que você é bom? Jamie sorri e de modo lúdico diz que não é bom em nada, só é bom em uma coisa: não participar das aulas de educação física dando as mais variadas desculpas, dores e indisposições de todo tipo. A psicóloga sorri junto com Jamie a respeito e lhe pergunta: o que o seu pai acha sobre suas escapadas das aulas de educação física? Jamie então muda o humor, e circunspeto ele diz nunca ter falado sobre isso para seu pai. Com resignação Jamie conta que seu pai costumava levá-lo para jogar futebol aos sábados e como ele torcia de modo empolgado nessas partidas. Entretanto, Jamie, agora cabisbaixo, diz que quando ele errava – e ele errava muito – seu pai desviava o olhar, como senão tivesse o visto o erro. “Acho”, diz Jamie, “que ele não queria que eu visse o quão decepcionado ele ficava por eu ter errado”. Percebemos então que a mágoa profunda que Jamie manifesta nada tem a ver com sua inabilidade no futebol, mas sim pela omissão do pai. Nesse momento, a psicóloga comovida pela mágoa do menino, tenta criar um clima de empatia com dizendo que ela própria era como ele: não se dava bem em nada do esporte.
Pode ser que o trecho do episódio a que faço referência passou desapercebido pela grande maioria da audiência, mas entendo que ele é chave para se entender o que está submerso no mar de falas e debates sobre o uso do celular e das redes sociais. Refiro-me à busca e o anseio pelo reconhecimento social que se casa com os desafios na construção de identidades. Sobretudo, é importante destacar que ambos caminham de mãos dadas por toda vida, não sendo uma exclusividade do mundo adolescente. Há evidentemente particularidades em cada etapa da vida, pelos territórios, condições sociais e contextos culturais distintos que bebês, crianças, jovens, adultos e velhos vivem. No entanto, viver é construir, construir identidades, descobrir-se em outros, ser reconhecido e reconhecer-se socialmente. Em particular, as ações e práticas corporais dos bebês às crianças, das crianças aos jovens desempenham papel crucial na construção de identidades e no reconhecimento social. A ação motora de ficar em pé e dar um passo para um bebê, a prática de um esporte por uma criança ou jovem constituem situações em que, de maneira mais livre, se simulam desafios da vida e os juízos que delas se estabelecem tem enormes consequências na formação de cada um: a bola pingando na área, você diante do gol, o que fazer? Chutar? Como? Para onde? Tudo numa fração de segundo. E nessa fração de segundo se decide não só o resultado da brincadeira, do jogo, mas o testemunho de sua atitude, de seu valor. O desfecho motor – Consegui andar? Fiz o gol? – se estende num evento social em que ser e tornar-se é o mais importante do que o resultado em si. Por isso, Jamie tremia diante da bola, por isso evitava as aulas de educação física, e tudo isso, em grande parte, porque a pessoa de referência, seu pai (eventualmente podia ser um professor de educação física) se absteve de estar a seu lado no fracasso.
Jamie anseia pelo reconhecimento de seu pai, mas se apequena ao ver que seu pai prefere ocultar sua decepção. Pela omissão do pai diante do fracasso esportivo, Jamie vê a construção de sua identidade ruir, sente sua força de caráter se esvair. Do tanto que aí está envolvido, fica a urgência em se notar a importância que as aulas de educação física têm, como o perigo que oferecem com a exposição pública de corpos e ações de crianças e jovens. Na aula de educação física, professores e professoras necessitam enorme sensibilidade e atenção além de muito tato para perceber os “Jamies” da turma e para não tornar suas aulas em tortura psicológica.
Agora quero destacar algo contracorrente. A série ADOLESCÊNCIA não é sobre a adolescência! Todos nós usamos celulares, todos nós, em maior ou menor grau, fazemos uso de redes sociais. Nosso primeiro erro está em achar que só crianças e jovens usam celulares sem consciência de seus perigos. É um equívoco enorme apontar o dedo para os adolescentes com seus celulares em punho como a causa de todos os problemas, nos esquecendo que somos nós, adultos, em primeiro lugar, que estamos com celulares anexados às nossas mãos (e mentes). No meu entender, a série trata das agruras, e tantas vezes trágicas consequências, da falta de comunicação, da fratura dos canais de comunicação, dos fracassos dos diálogos entre pessoas, independente das idades. A série trata dos desafios de construção de identidades, da busca de reconhecimento social, da formação de vínculos seguros e respeitosos. Esses são desafios da vida toda sendo uma grosseira simplificação tratar esses desafios como sendo única e exclusivamente da adolescência.
Adolescência, título da série, incita uma série de significados atrelados ao rótulo “adolescência” que no imaginário comum remete a “complicados”, “chatos”, “ingratos”, “irresponsáveis”, “rebeldes sem causa”, e a lista segue. Adolescência também remete a uma categoria que busca marcar e caracterizar em suas várias manifestações uma etapa de vida de pessoas entre 12 e 18 anos, aproximadamente. Categorias em ciência tem sentido estrito por serem balizadas por conceitos que sempre estão em discussão, por isso categorias se modificam, se dividem, se ajustam, e eventualmente são abandonadas. Já os rótulos, embora muitas vezes originários de categorias e conceitos se descolam deles, e ficam a mercê de múltiplos usos por pessoas e grupos cujos interesses vão do mais inofensivo ao mais nefasto, nefasto por serem carregados de preconceitos. São esses rótulos que turbinam as ações preconceituosas que levam ao bullying, às discriminações de gênero, raça, dentre outras, na frequente exposição pública a que colocamos, principalmente crianças e jovens na escola em modos presenciais – por exemplo em aulas como de educação física, mas não só nelas – e digitais – como nas redes sociais. Por isso, proibir pura e simplesmente o uso de celular na escola por parte de crianças e jovens é agir de certa forma como o pai de Jamie omitindo-se do que realmente deveria ser enfrentado. Diante do fracasso de seu filho, o pai de Jamie prefere virar o rosto, e neste momento o fracasso não é só de Jamie, não é só das crianças que erram, o fracasso é de todos nós!