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Como o senhor, formado em ciências sociais, chegou à Educação Física?

Esta é uma pergunta que habitualmente me fazem. Na minha juventude eu tinha praticado vários esportes, principalmente natação, boxe e "pelota paleta". Depois como professor de ensino fundamental eu, como meus colegas, tive que dar aulas de Educação Física, era uma disciplina entre outras e não existia o professor especializado. Na Escola Normal, formação para o magistério, tive aulas teóricas e práticas sobre o ensino da Educação Física. Nosso "Profe", como se diz na Argentina, era o Berruti. Ele era um homem múltiplo, tinha um manual de ingresso ao segundo grau e com o dito manual eu me tinha preparado para o exame. Mais tarde trabalhei em acampamentos e colônias de férias, onde as atividades recreativas e de iniciação esportiva eram fundamentais no cotidiano. Eu tinha feito um curso de atividades recreativas com o Professor Gallardo, se a memória não me falha. Ele era um animador extraordinário e nos divertíamos barbaridade nas suas aulas. Alguns de meus colegas podiam ser meus pais. Estas são apenas memórias positivas.

Ou seja, o senhor não era um crítico da atividade física nem do esporte?

Certamente, curtia colocar meu próprio corpo no jogo e também assistir ao jogo dos atletas profissionais. Depois começou a crítica cultural ao esporte, sobretudo ao futebol, de origem marxista, que o via como uma variante do "ópio do povo". Famosa frase de Marx endereçada à religião. Como religião e esporte continuam firmes na pós-modernidade ou modernidade líquida, deveríamos concluir que o povo gosta mesmo do ópio e que a liquidificação não parece lhes afetar. Contudo, creio que meu vínculo enquanto já formado em ciências sociais (tinha concluído o doutorado em antropologia) foi resultado do acaso. Meu colega, Dr. Sebatião Votre, tinha lido algumas coisas que eu tinha escrito sobre pesquisa participante. Sua primeira orientanda estava trabalhando com essa metodologia no mestrado da UGF. Conversamos, os três, e surgiu um convite para dar uma palestra na UGF. Isto foi por volta de 1987 ou 1988.

Os relacionamentos pessoais são importantes, né!

Sim, certamente na sociedade brasileira apesar de que a sociologia pensou a modernidade como crescimento das relações formais e não pessoais. Bom, foi há mais ou menos vinte anos atrás que a relação começou. Fui convidado para participar do curso da UGF lecionando sociologia e antropologia dos esportes. Eu naquele momento não estava particularmente interessado em tal campo aplicado das ciências sociais. Achei, no entanto, um desafio interessante. Eu era um desconhecido na área, quase um estranho, alguém de fora. Meu primeiro orientando de mestrado foi Antonio Jorge Soares, hoje um amigo pessoal e parceiro intelectual, que teve que ser ameaçado para aceitar trabalhar comigo. Creio que o acaso teve o papel principal. Mais tarde fui para o Porto para fazer um Pós-doutorado na área de Ciências dos Esportes, isto é, foi procurando me "legitimar". Esta foi uma muito boa experiência...


Mas, quais eram seus interesses naquele momento?

Eu vinha de trabalhar com a educação popular, tentando entender o que denominei como conciliação entre o iluminismo e o romantismo na educação de adultos, conciliação não conciliável teoricamente entre o dever ser do iluminismo e o ser do romantismo. Desse trabalho decorreu um forte interesse comparativo pelo desenvolvimento das comunidades científicas de Brasil e Argentina. Escrevi várias coisas, artigos e livros, sobre esses objetos que foram publicados. Creio que em termos de interesses teóricos se juntavam várias coisas.
A primeira era a importância social crescente tanto do esporte espetáculo quanto dos cuidados de si mediante a atividade corporal. Tinha diante de meus olhos um campo que juntava negócios com vontade de entretenimento e de aperfeiçoamento pessoal (fisiológico, psicológico e estético). Em vários sentidos, atores econômicos estavam tanto dando respostas a demandas quanto formando essas demandas, talvez em um espiral de relações. Isto me parecia bom para trabalhar com as ditas ciências sociais.
Em segundo lugar, a área de Educação Física aparecia com um mosaico disciplinar onde as ciências da natureza (química, bioquímica, biomecânica, fisiologia, entre outras) tinham peso dominante. Esta temática tinha relações com meus estudos sobre as comunidades científicas, seus modos de desenvolvimento e afirmação, de reconhecimento e legitimação. Escrevi sobre estas coisas no campo da Educação Física. Entretanto, eu sentia que as ciências sociais na legítima conquista da autonomia explicativa ou interpretativa tinham se distanciado progressivamente das ciências da natureza. Tinham caminhado muito na direção de um modelo ou narrativa "literária". Os leitores de Marx sabem que física e biologia estão de varias formas presentes em suas elaborações. Malinowski, para citar um antropólogo fundador, também tinha uma relação forte com as ciências naturais. Eu pretendia dialogar com os colegas, sobretudo, da fisiologia do esporte. Devo reconhecer que este objetivo ou interesse não se realizou. Os colegas da fisiologia sofrem de uma espécie de divisão epistemológica: explicam pela fisiologia os benefícios da atividade física e estão sempre fazendo novas pesquisas para explicar o que é amplamente aceito. Entretanto, quando devem dar conta da recusa da prática esgrimem argumentos econômicos, psicológicos ou sociológicos, do tipo as famosas falta de tempo, condições ou consciência. Eu sempre demandei explicações fisiológicas para a recusa. Embora os treinadores saibam que cada corpo reage de forma diferenciada ao mesmo leque de estímulos do treinamento, jamais se coloca a hipótese de que a atividade física possa ser lida, pelo organismo, como um estímulo negativo ou de alto custo e que merece ser evitado. Da mesma forma que a partir da experiência pessoal, muitos secundaristas fogem dos cursos cuja carga em matemáticas é forte. Muitos professores afirmam que uma boa parcela dos alunos também foge ou recusa a atividade física a partir da quinta série, dizem que especialmente as meninas. Falta tentar explicações fisiológicas para a recusa.
Por último, tinha um interesse mais próximo daquilo que eu já vinha trabalhando sobre o papel dos intelectuais e cientistas, sobre seus modos de intervenção..

Foi por isso que você escreveu sobre a Educação Física como arte da mediação?


Sim, você está certo. Os educadores físicos, como os chamei, se confrontavam em termos de projeto de sociedade, valores e objetivos da Educação Física. No campo da saúde, por exemplo, projetos antagônicos de sociedade se expressam em termos da defesa da medicina pública, inclusiva e gratuita em oposição à medicina privatizada e paga. Contudo, não há diferença significativa entre eles no objetivo de curar ao câncer nem no estabelecimento de prioridades. Ainda hoje há concordância em afirmar o valor dos esgotos e da água tratada. Os odontologistas embora tenham dominantemente um exercício privado da profissão são a favor de agregar flúor na água para prevenir as cáries, das campanhas que ensinam a higiene dental e também de promover a estética do sorriso, isto é, chamar clientes para seus consultórios. Na ética profissional a intervenção do Estado, fluoretar a água, pode ser tranquilamente conciliada com o atendimento pago em consultório. Os médicos que atendem privadamente são a favor das campanhas inclusivas (antes se dizia "massivas") de vacinação. Creio que no campo da Educação Física ainda não se estabeleceram acordos e desacordos de forma clara. Pareceria que ainda perdura a oposição, entre integrados e apocalípticos, consagrada por Humberto Eco, embora tomasse como referência o campo da comunicação. Observem, campanhas a favor de que cada cidadão cuide de sua saúde mediante atividade física, alimentação, sono, lazer e visitas periódicas ao médico não estão em oposição, como alguns parecem pensar, com uma medicina pública, inclusiva e de qualidade. Há boas maneiras de conciliar e somar os efeitos individuais e coletivos de cuidados da saúde. De modo semelhante creio que na Educação Física Escolar os valores da competição ética podem ser conciliados com os valores da cooperação e solidariedade entre os esportistas. Todos estes valores são valiosos e devemos encontrar, na prática, formas de conciliação, de harmonização. Isto não significa que os conflitos sociais, as lutas, por igualdade, inclusão e melhores condições de vida desapareçam. Creio que nessas lutas políticas, sociais e culturais também encontramos desde a competição à colaboração. A emancipação, o pensar por si mesmo, a autonomia não são essencialmente contrários à apreciação de um bom jogo ou à participação em uma competição.

Professor, você mencionou a educação física escolar, que pensa da separação entre bacharelado e licenciatura?

Excelente pergunta. Eu dava gargalhada quando se realizavam as discussões sobre a separação, isto é, sobre dois diplomas, um para atuar na escola e outro fora dela. Parecia-me claro que tudo era para gringo ver, pois, no final do processo, apenas um punhado de disciplinas separaria os dois cursos. Ou seja, nada iria a mudar grandemente em relação ao tempo em que se fazia o bacharelado e depois um conjunto de disciplinas, da área do ensino, que permitiam lecionar na educação básica. Portanto, uma vez concluído um deles se podia, sem muito esforço, concluir o outro. De fato se estava ampliando o mercado de ensino e de diplomas à custa dos que escolhiam o curso. Imaginem se os advogados fariam dois cursos: um de direito público e o outro de direito privado. Claro que existe especialização no direito e na medicina, isto se consegue após a obtenção do diploma. O projeto da licenciatura fazia sentido se você formava no mesmo instituto ou escola universitária em todas as disciplinas escolares. A idéia era que a convivência intelectual e a elaboração de projetos entre os futuros docentes da educação básica, no ensino superior, facilitaria a integração na escola. Agora, ter uma licenciatura em educação física separada de uma de matemáticas ou de letras é bem próximo do passado. De fato, por esta via pouca coisa muda.

Como o senhor acredita que poderíamos ajudar a educação física escolar?

Bom, eu creio que temos que retomar algumas líneas de trabalho. Em princípio deveríamos gerar conhecimentos e testar propostas sobre a gestão da educação física no contexto do projeto ou proposta escolar. Resulta-me cada vez mais difícil aceitar que coloquemos as culpas nas condições e falta de meios. A gestão é para lidar de forma positiva com condições e com a criação de meios. Creio que, em segundo lugar, temos que gerar conhecimentos e testar propostas de ação na educação física escola. Isto é, temos que investir no campo da didática específica da educação física escolar ampliando a experiência cultural e corporal com a diversidade do jogo e do esporte. Creio que também temos que continuar pesquisando, gerando novos pontos de vista, novos entendimentos sobre os problemas da educação física escolar. Caminharia nessas direções.

Qual seria seu conselho para os alunos da Educação Física?

Conselho não! Tem uma música cubana que diz "quem dá conselhos não chega a velho". A música, por certo, não se aplica ao Fidel. Eu pretendo chegar... Troquemos. Darei apenas algumas opiniões. Concordo com aqueles que pensam em que devemos desenvolver os nossos instrumentos para problematizar e encontrar soluções. Problematizar não à toa, porém, quando estamos insatisfeitos com os modos de estarmos no mundo e de fazermos as coisas. Temos que sempre lembrar que há coisas que não se compram. Eu não posso pagar para que alguém adquira conhecimentos e habilidades por mim. Eu não posso pagar para que outro faça atividade física por mim e meu peso caia e meu colesterol diminua. Não posso comprar a habilidade futebolística de Ronaldo Gaúcho, podem pagar para que jogue no time, porém, não a podem comprar para vestir em outro. Sua habilidade não é como uma casa, um carro ou um bem alienável. Tanto meu corpo, meu entendimento, as capacidades de expressão e as relações de parentesco, amor e amizade, e do estamos juntos para entender e fazer de comum acordo são os bens nos quais merece se investir.