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Tenho trabalhado com a ideia de que podemos investigar em conjunto e de forma articulada certas práticas corporais que, embora com peculiaridades, passaram por processos aproximados de constituição de um campo ao seu redor (um processo de institucionalização): o esporte, a educação física (entendida tanto como uma disciplina escolar quanto como uma área de conhecimento), a ginástica, a dança, certos divertimentos (como a patinação, algumas lutas e as touradas), entre outras (como, por exemplo, a capoeira)1. Como e por que teriam essas práticas se sistematizado?

No decorrer dos séculos XVIII e XIX, a articulação entre o desenvolvimento de um novo modelo econômico (que tem como marcas centrais o modo de produção fabril e a configuração de classes sociais, na qual se destaca o crescimento do poder da burguesia e o surgimento do operariado), uma nova organização política (o fim do absolutismo e a gestação da ideia de Estado-Nação) e a melhor estruturação de um conjunto de posições acerca da vida em sociedade (decorrentes do iluminismo e do liberalismo) inaugura um momento histórico marcado pela ruptura com o passado.

A estruturação das fábricas e a subsequente necessidade de facilitar a circulação de mercadorias transformaram a cidade no lócus privilegiado de vivências sociais, sede das tensões que se estabeleceram na transição entre o novo e o antigo regime. À necessidade de gestar um conjunto de comportamentos considerados adequados para a consolidação do modelo de sociedade em construção, adenda-se a reorganização dos tempos sociais: a artificialização do tempo do trabalho, uma decorrência da industrialização, dá origem a um mais claro delineamento do tempo livre.

Nesse cenário, o avanço tecnológico, um dos desdobramentos do “espírito das luzes”, central na configuração do novo modelo econômico e fundamental para a potencialização da produção, influenciou e mesmo gerou novas formas de diversão. A ciência, marca simbólica do novo tempo, contribui para gestar uma nova excitabilidade urbana marcada pelas noções de velocidade, mobilidade, progresso. Progressivamente, as noções de espetáculo e consumo, por todo o mundo, vão se tornar determinantes para a configuração do novo modus vivendi.

É inegável que, nesse âmbito, o corpo veio para o centro do debate, algo que se relaciona com o desenvolvimento científico, com a redução da influência religiosa, com o crescimento e valorização das vivências sociais de lazer. Se uma nova relação e consideração para com o corpo estavam sendo construídas, um novo sistema de regulação, de disciplinarização, se fazia necessário. Que corpo é esse o da modernidade? A quem serve e deve servir? Como impedir a “deterioração do corpo” pelas condições da vida moderna? Essas passam a ser questões constantes naquele contexto.

São, assim, entabuladas estratégias de controle corporal e de preparação de um “corpo saudável”, que estivesse pronto para servir aos interesses do novo regime em construção, adequado ao que esperavam os que tinham maior poder de determinação dos rumos do modelo de sociedade em construção.

Atende a essas dimensões a criação dos métodos ginásticos e de uma disciplina escolar específica, a educação física, já identificáveis em alguns países europeus desde as décadas finais do século XVIII. Esses movimentos de sistematização dialogaram com uma leitura peculiar do modelo de corporeidade grega, encarada como exemplo a ser seguido à busca de construção da ideia de harmonia, perfeição, saúde.

É nesse contexto que também emerge com força um novo (ainda que guarde importantes semelhanças com práticas análogas de períodos anteriores) fenômeno social, que ocupará espaço e importância cada vez maior na sociedade moderna: o esporte. A princípio somente encarado como um jogo, logo o esporte passa a ser concebido como estratégia de formação; uma boa ferramenta para a preparação de corpos musculosos (que passaram a ser considerados padrões de saúde), bem como para a difusão desse modelo como um ideal a ser perseguido.

Com sua vinculação à saúde (uma relação equivocadamente linear que permanece até os dias de hoje), a publicidade, que no momento também melhor se delineava, não deixou o esporte passar despercebido. Vários produtos passam a ser vendidos tendo-o como mote: tônicos, fortificantes, xaropes. Muito rapidamente ao redor da nova prática, dialogando com a própria configuração de uma indústria do lazer e do entretenimento, foram concebidas e implementadas estratégias múltiplas e cada vez mais multifacetadas de negócios. Não surpreende, assim, que tenha sido progressivamente compreendida (e por alguns adotada) como um estilo de vida.

Nesse cenário, o esporte se populariza, apresentado como uma diversão “apropriada”, uma alternativa aos antigos jogos populares “condenados”. A mesma população que vira perseguida a possibilidade de jogar passa a ter o “direito” de acesso ao novo espetáculo, idealmente concebido enquanto consumo passivo, tanto no sentido da prática em si (a maioria somente podia assistir) quanto no de interferência no desenvolvimento do campo que se gestava (poucos tinham a possibilidade de participar da direção de iniciativas e entidades representativas).

Isso, contudo, não significou que as camadas populares, entre as quais a classe operária (em processo de formação), abandonaram com facilidade suas práticas tradicionais; que ao participar do campo esportivo sistematizado tenham absorvido exatamente os sentidos encaminhados; que não tenham interferido e contribuído para reelaborações.

Essa “invenção inglesa” rapidamente se espraiou pelo planeta no seio dos contatos materiais e simbólicos que marcaram fortemente o século XIX com seus navios a vapor, telégrafos, comércio mundial. Pelo convés foram os esportes que marcavam o caráter imperialista das elites inglesas: cricket e golfe, por exemplo. Pelos porões foram aqueles que rapidamente foram apreendidos pelos mais populares: boxe e futebol, notadamente. Nesse processo, as influências não foram lineares, lidaram com as peculiaridades históricas e culturais locais. Essa internacionalização do fenômeno esportivo foi potencializada pela vulgarização da ideia de Estado-Nação. Num cenário mundial cada vez mais complexo, marcado por guerras e conquistas, o esporte emularia tanto o desejo de fraternidade (sempre mais anunciado do que concreto) quanto os enfrentamentos entre países.

No Brasil, já na primeira metade do século XIX, podem-se identificar os primórdios da presença social de práticas corporais institucionalizadas, notadamente nas capitais, especialmente no Rio de Janeiro. Surgem as primeiras iniciativas ligadas à ginástica, posicionamentos emitidos no âmbito das instituições médicas (discursos em reuniões da sociedade de medicina e artigos em periódicos médicos). Mais ainda notável era a exibição de espetáculos ginásticos nos circos, que se tornaram progressivamente usuais em muitas cidades.

Também surgem os primeiros posicionamentos e iniciativas ligadas à introdução de práticas corporais em instituições educacionais. Progressivamente tornar-se-ão cada vez mais difundidas as preocupações com a educação physica, termo amplo não restrito a ações escolares, mas sim ligado à higiene e saúde como um todo.

Uma das primeiras práticas corporais a ser adotada nas escolas foi a dança que, na capital do país, em meados do século XIX, tornara-se uma febre, valorizada por uma sociedade que crescentemente procurava o espaço público como forma de identificação, de fortalecimento de alianças políticas e econômicas, de exibição de status e distinção. Efetivamente os primeiros clubes recreativos de muitas cidades foram sociedades dançantes.

Nesse mesmo cenário conformou-se o esporte, inicialmente a partir de iniciativas de estrangeiros que viviam na cidade. Mesmo quando os nacionais assumiram a liderança, a prática sempre foi interpretada como sinal de vinculação com parâmetros simbólicos do “mundo civilizado europeu”. O primeiro clube estritamente esportivo fundado no país, no Rio de Janeiro, em 1849, foi o Club de Corridas, dedicado ao turfe, mas logo foi também criada a Sociedade Recreio Marítimo, que promovia regatas.

No decorrer do século XIX, e ainda mais claramente na centúria seguinte, não somente no Rio de Janeiro, como por todo o país, as práticas corporais institucionalizadas se fortaleceriam e se diversificariam. Cada vez mais modalidades e clubes foram instituídos. Rapidamente tornar-se-iam valorizadas por pessoas dos mais diferentes estratos sociais, sexos, idades etc.

Ainda que com peculiaridades, pode-se dizer que nesse percurso, assim como ocorrera em outros países, essas práticas corporais estiveram complexamente articuladas com certas noções ligadas à construção de uma ideia de nação: identidade nacional, defesa das fronteiras, desenvolvimento de hábitos saudáveis e higiênicos, organização da sociedade civil. Para além disso, foram e são presença constante no cotidiano de milhões de brasileiros, sendo importantes mecanismos de identificação e alteridade.

Victor Andrade de Melo é professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Nota:
1-Na constituição de uma história das práticas corporais institucionalizadas, temos ainda considerado como objetos as atividades físicas “alternativas” (antiginástica, eutonia, ioga etc.) e alguns fenômenos análogos de períodos anteriores à era moderna (as práticas de gregos, os gladiadores romanos, os torneios medievais, um grande número de manifestações lúdicas de longa existência).

Para saber mais

Melo, V. A. de. Esporte e lazer: conceitos – uma introdução histórica. Rio de Janeiro, Apicuri/Faperj, 2010.
Melo, V. A. de. “Temos apaixonados para o mar e para a terra: representações do esporte nos folhetins” (Rio de Janeiro; 1851-1855). Revista Brasileira de Educação Física e Esporte, São Paulo, v. 27, n. 4, p. 553-566, dez. 2013.
Melo, V. A. de. “Educação do corpo – bailes no Rio de Janeiro do século XIX: o olhar de Paranhos”. Educação e Pesquisa, São Paulo, ahead of print, 2014.
Melo, V. A. de; Peres, F. de F. A gymnastica nos tempos do Império. Rio de Janeiro, 7 Letras/Faperj, 2014.
Priore, M. D., Melo, Victor . História do esporte no Brasil: da colônia aos dias atuais. São Paulo, Editora Unesp, 2009.

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