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Domingo no país do futebol é dia de jogo. Quem é fanático pelo esporte e membro de uma torcida, faz questão de ir ver o time de perto, no estádio. Dentro do campo, os jogadores disputam a bola, às vezes de forma agressiva. Há chutes, carrinhos mal sucedidos, faltas, cartões amarelos ou até vermelhos. Na torcida, gritos de guerra que incentivam os jogadores. A vibração a cada passe é crescente e aumenta cada vez que a redonda chega perto do gol. Tudo vai bem até que uma briga entre torcidas rivais paralisa a partida. Essa situação não é incomum nos campos brasileiros ou mesmo nos de outras nações. A violência está presente no esporte, não apenas entre os atletas nas modalidades de contato, mas também nos espectadores. Fora dos campos, dos ringues e das quadras, brigas entre torcedores não respeitam nenhuma regra e podem desembocar em finais trágicos, como a morte do torcedor do Santos pelos rivais são paulinos em fevereiro deste ano.

A violência pode ocupar diversos níveis, dependendo do lugar de que se fala. Segundo Luiz Henrique de Toledo, professor e coordenador do programa de pós-graduação em antropologia social da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), há pelo menos dois níveis de violência no esporte: aquela constitutiva de cada prática esportiva e outras formas exportadas para as arenas esportivas. Para ele, “os esportes contêm em si mesmos níveis desejáveis de violência ou simulação de violência que, em estado latente, trazem a emoção esportiva, afloram as tomadas de partido e que, entretanto, estão relacionados a outras tantas formas de organização social e política”. Uma dessas formas, exemplifica, é a torcida por um time que representa um país, em que “a questão identitária ou étnica se coloca fortemente”, o que, para o pesquisador, pode levar, por exemplo, à inflação de etnocentrismos. Segundo ele, essa seria uma das formas de “exportação de violência” para o esporte.

Para o sociólogo Rodrigo de Araújo Monteiro, pesquisador da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), a violência no esporte se manifesta, se produz e se reproduz a partir de razões que muitas vezes não são apenas intrínsecas à prática esportiva: elas podem advir de muitos outros “males” sociais. O coordenador do Laboratório de Estudos e Pesquisas em Psicologia do Esporte (Lepespe) da Universidade Estadual Paulista (Unesp) de Rio Claro, Afonso Antônio Machado, comenta que uma sociedade violenta gera atributos também violentos, que podem se espalhar em diversos âmbitos sociais. “Num mundo conectado, todos os lampejos de violência recebem um tratamento de divulgação numa velocidade real e essa velocidade é ampliada de acordo com a magnitude da notícia”, diz. Ele pontua que momentos de maior insegurança, de muita agitação social, de confrontos culturais e de instabilidade administrativa são próprios para desestabilizar a ordem e apontar para momentos esportivos caóticos, com possíveis desvios de comportamento, favorecendo a aparição e/ou manutenção da violência.

Toledo, quem é também cientista social, esclarece que os níveis de violência em esportes, assim como nos diversos outros âmbitos da sociedade, dependem da sensibilidade e apreensão simbólica do que seja a violência e como ela é ou não percebida culturalmente. “Essa visibilidade ou invisibilidade para enxergarmos o violento e o não violento não dependem somente da constituição técnica de cada modalidade esportiva, mas de todo um conjunto de sensibilidades que são colocados e esparramados nas sociedades. Os esportes, no geral, seguem tais tendências e sensibilidades simbólicas que têm a ver, obviamente, com o maior ou menor investimento que fazemos nas relações sociais, nos processos de conter a violência sem sermos violentos”, comenta.

A violência, então, é um fenômeno que está tanto no esporte quanto fora dele. O psicólogo Lélio Moura Lourenço, professor do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de Juiz de Fora e coordenador do Núcleo de Estudos em Violência e Ansiedade Social (Nevas), explica que “a violência no esporte é violência como em qualquer outro ambiente: no ambiente doméstico, na escola, no meio urbano. É violência, e deve ser entendida como tal.”, diz. O professor Machado esclarece, numa tentativa de entendimento desse fenômeno, que todo ato de violência tem em comum o fato de ser caracterizado por ações e/ou omissões que podem cessar, impedir, deter ou retardar o desenvolvimento pleno dos seres humanos.

Há, portanto, uma transitoriedade no conceito de violência. As sociedades, através de suas múltiplas manifestações, definem o que é e o que não é violência, esclarece Monteiro, da Uerj. Essas definições, claro, mudam conforme as sociedades abandonam alguns padrões e adotam outros. Toledo, da UFSCar, nesse sentido, problematiza a violência como “uma palavra polissêmica, isto é, que traz consigo uma gama muito variada de experiências sociais (políticas, econômicas, estéticas, ideológicas, religiosas) que podem mudar incrivelmente no tempo histórico e na sensibilidade dos indivíduos e suas relações em cada cultura”.

Atos violentos no esporte são noticiados na mídia quase diariamente. Esses atos não chegam a ser incomuns, nem isolados, mas tampouco têm padrões definidos, seja no comportamento de esportistas e espectadores, seja na própria concepção de violência. Tão importante quanto entender esse caráter mutável é entender também que as concepções podem ser inclusive paradoxais: aquilo mesmo que outrora podia ser considerado como violência, hoje pode ser ato institucionalizado ou meramente uma banalidade suportável, e vice-versa.

Nessa espécie de “jogo” que se forma ao se pensar sobre esporte e violência, a única certeza é a de que ela não pode ser tomada ou julgada meramente por aquilo que se vê entre um zapping e outro no controle remoto. Ela pode ser mais complexa e até mesmo menos aterrorizante do que se suporia a princípio. Para o sociólogo francês Michel Wiewiorka, a partir do momento em que a violência deixa de ser pensada, passa a ser meramente temida, ocupando apenas o campo subjetivo. Pensar “a” e “na” violência, portanto, é fundamental para compreender como ela se constitui, inclusive no esporte, e como pode ser reconfigurada no olhar e nas atitudes.

Sem regras, sem jogo

Para entender a violência no esporte, de acordo com Leonardo Pestillo de Oliveira, professor do Departamento de Psicologia do Centro Universitário de Maringá, é necessário levar em consideração a diferenciação entre os termos violência, agressão e agressividade. Este último, segundo ele, é muito utilizado nas modalidades esportivas. “Mesmo um atleta de tênis, um esporte individual sem contato físico, pode praticar seu esporte com agressividade, pois esta não é apenas uma questão de comportamento, mas também de atitude psicológica”, diz. A crítica de alguns espectadores aos esportes de contato seria devido ao fato de que neles a agressividade é mais evidente, explica Oliveira. “Isso faz parte do esporte. Invariavelmente, algumas lesões ocorrem em decorrência dessa agressividade, que muitas vezes pode ser descrita como agressão, que nesse caso, foge das regras do esporte”, completa.

“As violências que temos em algumas modalidades são consideradas violências instrumentais, ou seja: são componentes específicas da modalidade. O que extrapola a legalização do esporte, aquilo que avança além das regras oficiais das modalidades, sim, deve ser visto como ato violento”, afirma Monteiro. A agressividade instrumental, segundo Oliveira, é bem vista quando um atleta está diante de uma competição e necessita do resultado. Já a agressão, de acordo com ele, seria “o comportamento visível da violência, ou seja, o que não é permitido dentro do contexto esportivo, aquele comportamento do atleta que visa o prejuízo físico do adversário”. As regras exercem, portanto, o papel de conter a agressão entre os atletas, além de organizar o contexto esportivo.

As regras, então, são outro ponto fundamental na discussão sobre a violência e o esporte. Toledo define o esporte como “a maneira com que as sociedades modernas, desde o final do século XVIII, encontraram para impor regras aos passatempos e jogos medievais”. Para o professor Fernando Mezzadri, da Universidade Federal do Paraná, as regras são o fator socialmente delimitador da violência. São elas as responsáveis por traçar as linhas que separam o que é aceito do que é repudiável em termos de comportamento. “O que determina a violência são as regras. O polo aquático, por exemplo, é um esporte no qual são permitidos vários comportamentos como agarrões e não se considera isso violento. O esportista está preparado para aquilo”, afirma. Já Machado explica que as regras nos esportes têm um papel de delimitar seu desenvolvimento, apontando para questões que possibilitem o avanço esportivo na prática daquela modalidade. “Obviamente que elas atendem ao princípio da contenção da agressão e da violência, também, mas não é seu principal objetivo. As regras delimitam espaços, ações, táticas e balizam os comportamentos mais acirrados”, diz.

Suor e sangue

É madrugada de sábado à noite e muitas pessoas se reúnem em um bar para conversar e beber. As atenções, no entanto, se voltam principalmente para a televisão, que mostra, dentro de um ringue com oito lados, dois homens brigando. Os golpes começam com os dois em pé. Após a troca de socos e chutes, eles caem no chão e começam uma sequência de estrangulamentos, chaves de perna, torções, entre outros. Os expectadores, homens e mulheres, vibram.

Para quem não está acostumado a assistir à modalidade esportiva chamada de MMA, sigla para Artes Marciais Mistas (em inglês, Mixed Martial Arts), o espetáculo pode parecer uma exibição de violência gratuita. Mas, então, o que separa o espectador que aprecia essa modalidade de luta daquele que se recusa a assistir ou mesmo a considerá-la um esporte? Aqui, assim como em outros esportes, entender as regras e as técnicas faz toda a diferença. “Dizer que o MMA estimula a violência nos espectadores é tão complexo quanto necessário de se discutir. O MMA, como o próprio nome diz, é um esporte que combina elementos de diversas artes marciais, não apenas uma, e elas é que são o carro-chefe disso tudo. Não dá para formar um atleta em MMA sem antes formá-lo em uma arte marcial, ou duas, e assim por diante”, afirma Oliveira, que analisa a opinião de telespectadores com relação ao MMA nas redes sociais em seu doutorado.

Para ele, não é a prática da arte marcial, em si, ou a convivência com ela que tornará o sujeito mais violento. “É a maneira de se praticar e de se envolver com o aprendizado, com essa formação. Toda e qualquer atividade que faça o sujeito ‘gastar’ energia funciona como uma válvula de escape tanto física quanto psicológica e, se bem realizada, com certeza servirá para o desenvolvimento não apenas físico e atlético, como também psicológico”, diz.

O fato das plateias vibrarem com as lutas não é um fenômeno novo, segundo Lourenço. “Em vários momentos, na história da humanidade, encontramos atos violentos como fenômenos atraentes e até vibrantes em várias sociedades”, analisa. “Mudam as regras, as culturas vigentes que apreciam essas lutas e até o estilo de violência empregado, mas as lutas de rua, o boxe, o ‘telequete’ (uma luta livre teatral bastante concorrida nos anos sessenta/setenta), entre outras modalidades, frequentam as mídias de seus respectivos tempos gerando, principalmente nos jovens, um caráter sedutor”, diz o psicólogo. As diferenças entre as diversas formas de se praticar um esporte que envolva violência, segundo ele, estão nas regras, nas culturas que os originaram e no apelo midiático. As artes marciais e o boxe, de acordo com Lourenço, contam com uma variável social que é importante. “Esses esportes frequentaram e ainda frequentam classes sociais específicas em seus respectivos segmentos sociais, o que dá a cada uma dessas modalidades um caráter social e grupalizante significativo em determinas sociedades”.

Oliveira explica que o MMA praticado hoje se difere muito dos primórdios do esporte, justamente por conta do estabelecimento de regras cujo objetivo principal é preservar a integridade física do lutador. Por causa da ausência de definição do que se podia e do que não se podia fazer, essa modalidade de luta, por muito tempo, foi chamada de vale-tudo. De acordo com estudo divulgado em 2006 por pesquisadores da Johns Hopkins University School of Medicine, dos Estados Unidos, que mediram a ocorrência de lesões em lutadores, as competições de MMA foram introduzidas naquele país em 1993 e, em 2001, várias regras foram incluídas para que os eventos fossem sancionados. O estudo, que analisou dados de lutadores do estado de Nevada de 2001 a 2004, mostrou que 40,3% das lutas terminou com ao menos um lutador lesionado. Apesar disso, os pesquisadores concluíram que as lesões no MMA são compatíveis com outros esportes de combate e, comparado ao boxe, o número de nocautes no MMA é menor, o que reduziria a incidência de lesões cerebrais. Outra pesquisa, no entanto, divulgada este ano pela Universidade de Toronto, no Canadá, com dados recolhidos do campeonato de MMA Ultimate Fighting Championship (UFC), concluiu que 15,95% dos incidentes resultam em lesões traumáticas no cérebro, muito mais do que em esportes como futebol americano (8,1%) e hóquei (2,2%).

Fraturas como a sofrida por Anderson Silva na luta de dezembro do ano passado contra Chris Weidman assustaram a muitos telespectadores – a perna do atleta parecia de borracha, com o impacto sofrido ao desferir o golpe no oponente. Uma lesão similar, no entanto, também aconteceu com o jogador de futebol Bryan Oviedo, do Everton da Inglaterra e da seleção da Costa Rica, em janeiro deste ano, numa disputa de bola com o adversário. Nas fotos da partida, há o mesmo efeito de deslocamento que foi visto pelos espectadores na luta de Silva. Um estudo divulgado em 2012, que mediu o número de lesões em atletas durante os Jogos Olímpicos de Pequim, concluiu que os esportes com maiores registros foram taekwondo, boxe, hóquei sobre grama, handebol, halterofilismo e futebol. Este último, no entanto, foi o campeão do ranking, com lesões que afetaram mais de um terço dos participantes, índice acima, inclusive, das lutas.

A bola da discórdia

As lesões no MMA contribuem para criar uma visão do esporte ligada à violência, mas o mesmo acontece com outras modalidades esportivas, inclusive com o futebol. “Na Europa, a despeito de toda uma construção simbólica em torno do futebol-arte brasileiro, o belo jogo praticado aqui é visto como violento. Basta tomarmos os índices e estatísticas (de lesões)”, afirma Toledo.

“O futebol não foi feito para a violência. O contato físico e a competitividade, muitas vezes exacerbada e confundida com a própria sobrevivência pecuniária e familiar do jogador, tornaram o futebol um esporte que convive, entre outras coisas, com a violência”, opina Lourenço.“Diante da exposição midiática e do grande envolvimento populacional com o futebol, ele se torna um esporte que transborda essa violência para as arquibancadas e para as ruas, ou seja, hoje a violência no futebol e a competitividade de mercado presentes fora das quatro linhas é um problema que transcende a prática”, completa.

Para Monteiro, que estudou as torcidas organizadas de futebol em seu mestrado, os torcedores violentos não são maioria, mas parte isolada do todo que, no entanto, alcança muita visibilidade por utilizar a violência. Para explicar o comportamento dos “brigões”, o antropólogo lançou mão do conceito de “ethos guerreiro” usado pelos sociólogos Norbert Elias e Eric Dunning. “O ethos guerreiro é a disposição de vencer fisicamente o adversário, que passa a ser visto como um inimigo que precisa ser destruído”. Outro conceito que ajuda a entender a questão, segundo ele, é o de masculinidade exacerbada ou hipermasculinidade, usado pela antropóloga Alba Zaluar. “Há, entre os torcedores violentos, a tentativa de mostrar quem ou que grupo é mais macho, viril ou valente e o entendimento de que o outro é um inimigo que precisa ser humilhado ou destruído para se provar quem é mais ‘macho’. Jogadores e juízes se inserem nesse contexto, pois, de certa maneira, podem ser vistos como obstáculos para a consolidação das vitórias e afirmações de um grupo determinado de torcedores”, diz.

Criminalizar as torcidas e apregoar o seu fim não é, no entanto, a solução, segundo o Monteiro. “Acabar com as torcidas não resolve o problema da violência, como já se provou. Isso é uma medida infantil, pois opera apenas na base do castigo, mas não é, nem de perto, funcional, além de ser questionável juridicamente. Os torcedores continuarão se encontrando a caminho dos estádios ou a caminho de suas casas e continuarão havendo confrontos. É preciso pensar numa cultura de prevenção da violência e de promoção de valores do esporte ligados a outros aspectos que não a destruição física do inimigo; pensar em práticas que poderiam ser difundidas a partir da massificação do esporte como política pública”, defende.

Toledo argumenta que as punições físicas e cerceamentos devem ser atitudes extremas que deveriam compor um leque maior de medidas preventivas contra torcedores violentos. “Monitorar torcedores sabidamente violentos é um meio eficaz de afastá-los das competições e forte fator de inibição de aparecimento de tantos outros”, defende. Punir coletivamente as torcidas, segundo ele, não resolverá o problema. “As medidas verticais contra a violência, impostas ao sabor dos momentos de maior dramaticidade, se revestem de uma violência simbólica que obstaculariza qualquer tentativa mais séria e serena de enfrentar o problema”, argumenta Toledo. O cientista social acredita que os agentes de mudança no campo da violência esportiva não nascem espontaneamente. “Devem ser estimulados e convidados para o debate e, sobretudo, garantir espaço político onde vozes dissonantes aparecerão”, diz. O papel da mídia seria, segundo ele, o de heterogeneizar o debate, trazer tantas opiniões quanto fossem necessárias para compor o quadro complexo de vozes em relação ao tema igualmente complexo que é a violência.

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