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Trabalhar com memória não é tarefa fácil principalmente quando lidamos com pessoas idosas a quem o tempo se incumbiu de cobrir com o esquecimento as imagens que se referem a episódios mais próximos ou mais distantes.

Há diferentes tipos de esquecimento que em parte justificam os lampejos de memória e porque aqueles episódios, e não outros, emergiram na narrativa do sujeito. A metodologia das histórias de vida me encanta há mais de 15 anos. Entendo que por meio dela tenho acesso a dados e fatos que me fazem entender os contextos históricos macro sem perder de vista aqueles que protagonizam o fato. Tenho uma predileção especial pela frase do Caetano que diz: “gente é pra brilhar, não pra morrer de fome”.

A história de vida não está obrigada pelo ritmo e acontecimento da história cronológica. Considerada uma modalidade de história oral ela opera com os acontecimentos registrados na memória, que não obedecem a um fluxo ditado pela oficialidade do calendário, mas a importância atribuída a episódios significativos.

Assim como em outras metodologias das ciências humanas, o papel do pesquisador-entrevistador na condução da coleta da história de vida é reconhecido como fundamental. Durante a entrevista, na formulação das perguntas ou na busca dos episódios que podem oferecer a compreensão de eventos relatados, a atitude de ouvinte atento e respeitoso, mas curioso, do pesquisador pode determinar a adesão do ator ao projeto.

Na pesquisa com os Atletas Olímpicos Brasileiros a questão desencadeadora da narrativa não é uma pergunta, mas um convite onde o sujeito é levado a contar sua história. A reação subsequente já indica pontos para a análise. Isso porque alguns iniciam suas narrativas pelos pais, local e data de nascimento; outro pela sua iniciação esportiva, uma vez que já foi anunciada a intenção da pesquisa sobre sua trajetória olímpica; há ainda aqueles, que mesmo tendo recebido essa informação, uma vez mais questionam: minha história de vida, ou minha história de vida no esporte.

Nos últimos tempos encontramos um grupo de atletas vivos e lúcidos que já estão próximo do centenário de suas existências. Homens e mulheres que participaram dos Jogos Olímpicos de 1936, 1948 e 1952, apenas para falar dos mais idosos, alguns mais lúcidos e saudáveis do que outros. Vários deles acompanhados de suas companheiras e companheiros, que como alter egos, auxiliam no relembrar de fatos, causos, informações que ajudam a compor o mosaico dessas lembranças, varrendo da narrativa a poeira do esquecimento.

Observo essa atitude desde as entrevistas das Mulheres Olímpicas, quando tentei por vários meses acessar uma atleta participante da delegação de 1948. Depois de conseguir seu telefone fiz várias tentativas de aproximação, mas a voz masculina do outro lado educada e pacientemente tentava me dissuadir de meu intento. Com a persistência que é particular do pesquisador continuei a telefonar, ao menos para tentar entender o por quê daquela negativa. Com o passar do tempo descobri que o dono daquela voz era o marido da atleta e depois de muito insistir ele então me convidou para ir até a casa deles para conversarmos sobre o que passava. Cheguei ao apartamento no bairro de Copacabana em uma manhã ensolarada que destacava a grande rocha logo atrás do prédio, fazendo aquele amontoado de concreto com janelas parecer uma obra em Lego perto daquela dádiva da natureza. Caminhei pelas passarelas que levavam ao elevador observando que a população do condomínio ajudava a entender a mudança das curvas relacionadas com a expectativa de vida dos últimos censos. Cheguei ao meu destino e lá estava meu interlocutor a me esperar. Um homem alto, forte, porte atlético, aparentando uns 80 anos. As paredes do apartamento estavam cobertas de fotos, registros de muitos episódios familiares onde crianças moços e velhos, trajando diferentes estilos de moda, denunciavam o momento daqueles clicks. Depois de contar uma vez mais o propósito da pesquisa e a importância da preservação da memória, ele me confidenciou: sua esposa, a quem conheceu em uma edição olímpica, estava com princípio de Alzheimer e ele não queria expô-la. Preferia guardar dela a lembrança de uma mulher altiva, orgulhosa de suas habilidades e beleza. Perguntei se a doença se manifestava já em grau severo, ao que ele respondeu negativamente. Segui com meu inquérito a respeito de álbuns com fotos, medalhas e outros pertences da vida dela como atleta. Para nossa felicidade estava tudo lá guardado, preservado, em um formato onde o tempo foi capturado como passarinho em uma armadilha, onde apenas as traças insistiam em deixar suas marcas. Sugeri a ele fazermos um teste. Eu voltaria em um outro dia, escolhido por ele. Assim seria possível prepara-la para o encontro. E então tentaríamos resgatar aquilo que ainda estava ali presente, vivo em sua memória, a salvo das mazelas do esquecimento. E se ele achasse que o resultado foi satisfatório, nós então faríamos uso do material. Aceita a proposta voltei depois de dois dias. Ao abrir a porta do apartamento, lá estava ela. Cabelo arrumado, sutilmente maquiada, usando um batom rosa claro que realçava sua pele clara e os olhos esverdeados. Sentamos os três em torno da mesa de centro onde estavam dispostos os álbuns, objetos dos clubes defendidos por ela e lembranças das viagens olímpicas. E assim ficamos, por quase uma hora, a realizar um trabalho de arqueologia de memória, sob o olhar atento, carinhoso e cuidadoso, de um marido apaixonado por aquela que foi e ainda é sua inspiração.

Embora essa história tenha se passado há aproximadamente 5 anos, seus detalhes são mantidos vivos em minha memória. Talvez pelo cuidado com que o marido conduziu todo o processo, talvez pela saída que encontramos para fazer o registro dela que foi uma olímpica em um tempo em que as mulheres não eram mais do que coadjuvantes, talvez pelo fato de vê-lo se preocupar com o que ficaria registrado da memória de sua companheira de vida.

O fato é que de diferentes maneiras isso se repetiu com alguns mais velhos, cujas companheiras e companheiros estavam atentos ao desenrolar da narrativa.

Essa semana a vida me reservou mais uma dessas histórias. De novo no Rio de Janeiro fui ao encontro de um atleta de 94 anos que competiu em 1948. Apesar dos 3 AVCs, do comprometimento motor e das perdas geradas por esses acidentes, sua memória está intacta e ele não apenas nos atendeu ao telefone, como se dispôs de imediato a nos contar sobre sua história. Cheguei ao apartamento na divisa de Copacabana com Ipanema, já com minha mala de viagem porque dali seguiria direto para o aeroporto. Desconfiado de minha pessoa o zelador perguntou onde eu pretendia ir. Depois de falar o nome do casal que estava a minha espera ele ainda tentou mais informações: “o que a senhora deseja com eles?”. Considerei atrevida demais aquela pergunta, mas ponderei que pudesse ser excesso de zelo para com os condôminos. Ao chegar ao apartamento encontrei algumas pessoas que pareciam estar a serviço: empregada, enfermeira, ajudantes. No fundo do corredor, com uma bengala, a esposa de meu entrevistado. Uma senhora pequenina, com uma bengala na mão, produzida para aquele evento: cabelos arrumados, olhos e boca pintados, brincos vistosos. Fomos ao quarto onde nosso olímpico já estava pronto para a entrevista. Sentado em uma poltrona parecia ter saído do banho: cheiroso, pijama com as marcas das dobras de um ferro quente bem passado, travesseiro no colo onde ficava postado o braço inerte, atacado pelo AVC. Embora partes de seu rosto e corpo estivessem comprometidas pelo derrame seus olhos demonstravam a vida de alguém que ainda deseja contar sobre suas aventuras. Falou então sobre sua história no esporte, a migração do Nordeste para o Rio, sua passagem por um único clube carioca ao longo de toda a sua vida, as lembranças de Londres em 1948, sua carreira profissional depois do esporte, enfim, uma narrativa de quase 40 minutos, ajudado em alguns momentos por sua esposa. Fiquei preocupada porque ele começou a mostrar exaustão, mas quando dei a entender que finalizaria a entrevista ele quis falar mais e eu respeitei. Por fim, ele instruiu sua companheira de 91 anos de idade, e 60 e poucos de casamento, a mostrar os álbuns, medalhas, diplomas. E lá fomos nós. Ela então reforçou todas as lembranças relatadas por ele e foi acrescentando alguns poucos detalhes. Por fim, disse que ela também já havia sofrido 2 AVCs, mas que, por sorte, ela podia andar e cuidar dele. Sem filhos, lembra que os dois foram grandes viajantes e boêmios. Companheiros de toda uma vida e que apesar de tudo o que estava acontecendo, ela não podia desistir. Afinal, ele é o amor de sua vida!

Por katiarubio

Amadurecer com sabedoria e ter historias para contar, talvez seja o segredo de uma vida para lembrar.

Por Libia
em 25-03-2012, às 10:43.

Já tinha ouvido o relato e tinha me emocionado. Ao ler o texto e pensar na dimensão que seu projeto tem, admiro mais e mais o mesmo. O projeto mantem estes heróis brasileiros, vivos na história. sempre achei que isso ra um dever do país que agora
começa a acontecer….

Por Gisela
em 25-03-2012, às 22:22.

Dizem que os brasileiros possuem a memória curta. Mas esses atletas olímpicos apaixonados, não! Talvez seja uma paixão parecida que levou esses homens e mulheres a se exporem numa época bem menos favorecida que os dias atuais.
Amor e dedicação de toda uma vida para a sua metade e para o esporte olímpico.
Muito bacana a sua iniciativa de resgatar a memória desses atletas.
Parabéns!

Por Edison Yamazaki
em 2-04-2012, às 20:20.

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