Ética, esporte, guerra,algumas perguntas
Por Roberto Romano da Silva (Autor).
Parte de A Ética e a Bioética na Preparação e na Intervenção do Profissional de Educação Física . páginas 73 - 82
Resumo
Vivemos no tempo rápido e perdemos referências históricas, políticas, éticas, religiosas. Sob nossos olhos, também os temas acadêmicos sucedem-se em voragens cada vez mais tensas de análises e perspectivas. O sábio Montaigne, criador da transposição imagética do mundo financeiro para o campo da racionalidade escrita, recorda que o termo “pensar” tem o mesmo conteúdo de “pesar”. E com base neste símile, ele gerou a idéia de que a tarefa dos intelectuais era a de pesar as palavras na balança do juízo. Frases ou se gastam muito velozmente, e perdem sentido e peso, ou são adulteradas e nada valem. Em vez de tratar, nesta exposição, dos “novos paradigmas éticos” e mover palavras grandiloqüentes, evocarei um tema estratégico do mundo antigo e atual, o que indica elos entre a educação física e o treino para a guerra, o traço comum entre esportes e morte nas batalhas. O tema, como é sabido, assume característica nuclear nas culturas antigas, as que deram nascimento à própria ética e política, tal como as conhecemos. Refiro-me, sobretudo à Grécia. Cito um clássico analista da educação grega: “Em nossos dias é a escola, as letras, que se associam automaticamente à palavra “educação”, para os gregos, era primeiro, e permaneceu por muito tempo, a palestra e o ginásio, onde a criança e o adolescente treinavam nos esportes”. [1] O que o grande analista “esqueceu” de mencionar é a violência guerreira unida aos exercícios e jogos pedagógicos. Torna-se preciso, hoje, quando o fato bélico mostra sua face múltipla (do terrorismo clandestino e bandido ao terror tradicional do Estado e de seu monopólio da força física), meditar um pouco sobre os elos entre educação, esportes, guerra. Como o tempo de que disponho é pequeno, indicarei alguns pontos a serem meditados quando nos preocupamos com a questão ética em nossos dias. Iniciemos com a Grécia. Poder-se-ia dizer, com R.B. Branham, que o atletismo e a educação nele exigida tornou-se um ideal ético grego, sendo inclusive superior às artes marciais. Numa civilização como a que se tornou célebre por legar ao Ocidente a própria concepção de história, racionalidade, ciência, técnica e guerra, não é pequeno aquele enunciado.[2] Como disse o grego Melancomas, “na guerra o escopo é a coragem apenas, enquanto o esporte produz coragem, força física e autocontrole, simultaneamente”. Como a guerra, entretanto, a paixão pelos esportes e pela educação física possui críticos na própria Grécia. Tanto Xenófanes quanto Eurípides advertem contra a “tribo dos atletas”. Pergunta Eurípides: “que bem faz à sua terra um homem que vence corridas, lança discos, ou dá no adversário um soco certeiro? Lutarão contra o inimigo com os discos nas mãos? (…) um homem útil será o que recebe educação para a sobriedade e a justiça e pode considerar o que é melhor para a polis” (Eurípides, Autolycos). [3] A Ética e a Bioética na Preparação e na Intervenção do Profissional de Educação Física 72 Os esportes, em escala amplíssima como a praticada nas terras helênicas, seria inclusive nocivo à saúde física e mental. O grande Galeno, médico nuclear da cultura grega, escreve que o modo de vida atlético é semelhante ao dos porcos, “mas com esta exceção, que os porcos não exercitam ou forçam a si mesmos a comer”. Para o doutor Galeno o atletismo não traz saúde física, beleza, ou poder aos seus praticantes, é inútil para a comunidade, nem é fonte de prazer. Uma síntese dessas avaliações contraditórias da educação física e do atletismo, a encontramos no diálogo de Luciano, justamente dedicado aos esportes e ao ensino ético dos jovens atenienses. O debate se realiza entre Anacarsis, um semi-heleno (filho de estrangeiro e de grego) e Sólon, o grande instaurador das leis e da ética na Grécia. Anarcasis estranha os jogos atléticos e apresenta razões contra eles. A cada invectiva do “bárbaro”, Sólon responde em defesa da educação física como o primeiro passo (e fundamental) para a formação ética da cidadania. Ele assegura a Anacarsis que os esforços para melhorar os corpos - com toda a dureza que eles trazem, como mergulhar no pó e na lama vencendo as dificuldades naturais - ajuda a formar bons cidadãos e bons guerreiros. “Nós fazemos todos estes exercícios físicos como preparação para a luta com as armas”, diz Sólon com orgulho. Os corpos cobertos de óleo, para as lutas, são assim preparados para as batalhas, nas quais se exigem flexibilidade e rapidez, adquiridas na educação física.