Integra

 O relato que ora apresentamos representa o trabalho que viemos desenvolvendo no contexto do universo escolar no qual estamos inseridos: o Centro Integrado de Educação Pública, localizado no município de Queimados/RJ e o Colégio Estadual Edmundo Bittencourt, localizado no município de Teresópolis/RJ. Baseados em nossa prática pedagógica na rede estadual do Rio de Janeiro, relatamos o cotidiano de parte do ano letivo de 1999, quando ministramos o conteúdo da capoeira permeado por temáticas que desencadearam discussões a partir de sua prática nestas escolas.


 A Educação Física, enquanto componente curricular do sistema de ensino, reflete a sociedade em que está inserida. Nossa interação com alunos/as do ensino fundamental nos faz inferir que eles/as, ao egressarem da escola, passam a reproduzir e perpetuar falsas crenças sobre o universo da prática corporal, por não possuírem conhecimentos necessários para se tornarem consumidores críticos da cultura corporal do movimento. Esta situação nos faz refletir sobre a atuação desta disciplina na escola e nos questionar se atingimos a visibilidade necessária enquanto componente curricular, aspecto a ser considerado pelos professores durante o processo de ensino, construído na interação quotidiana com os alunos, a direção da instituição e os demais professores, com vistas a desencadear mudanças neste cenário.


 Neste contexto, valorizar e enriquecer o processo educacional são metas desafiadoras de professores conscientes do seu papel na educação e na sociedade, que de forma consciente ou não, têm recorrido a novas metodologias de ensino, capazes de proporcionar aos alunos um aprendizado significativo dos conteúdos, relacionando-os com sua realidade social.
Proposta temática para a educação física escolar na educação básica


 Corroboramos com a proposta de conteúdos do Coletivo de Autores (1992), quais sejam: os jogos, as brincadeiras, a dança, os esportes, as ginásticas e as lutas, constituintes da cultura corporal do movimento. Articulando-se com esses conteúdos, apresentaremos algumas temáticas para discussão que têm estado articuladas nos projetos político-pedagógicos de nossas práticas com turmas do ensino fundamental em escolas da rede estadual do Rio de Janeiro. Importa destacar que os temas apresentados neste relato não pretendem esgotar-se em si mesmos, pois em função da realidade dos alunos (idade, sexo, classe social, localidade da escola, realidade institucional etc.), pode-se trabalhar com outras temáticas.


 O primeiro tema que propomos é a Promoção da. Saúde (Faria Júnior, 1991), considerada como um conjunto de idéias capaz de ampliar a discussão do binômio exercício-saúde, de reconhecer o seu conceito multifatorial e a sua relação com a prática regular de atividade física, além de possibilitar à Educação Física um papel na educação para a saúde dos alunos, um dos aspectos principais a ser tratado na Educação Física escolar (Mota, 1992).


 A História é um dos aspectos relevantes no trato de qualquer conteúdo da EF escolar. Por possibilitar a apresentação dos antecedentes que originaram as formas atuais constituintes da cultura corporal do movimento, esclarecer os significados que estas formas tiveram ao longo do tempo, discutir quais os papéis da atividade física nas sociedades humanas, atribuindo-lhes a noção de historicidade, esta temática proporciona o resgate do valor de atividades já esquecidas ou desvalorizadas pelas sociedades contemporâneas, como, por exemplo, os jogos populares (Melo, 1985).


 O aspecto técnico refere-se a como "fazer" a atividade, entendendo-a como produto sempre inacabado, passível de (re)construção a cada nova experiência da aula. Assim, a partir da técnica oficial do desporto, por exemplo, os professores podem problematizar com os alunos as técnicas oficiais de execução de habilidades, recriando novas formas de saltar, correr, lançar, arremessar etc., com base no processo criativo (Taffarel, 1991) e nos estilo de ensino por descoberta orientada e solução de problemas (Mosston, 1966).


 A competição constitui-se em temática relevante a ser problematizada na Educação Física escolar. Muitas vezes, a ênfase exclusiva no rendimento traz a conseqüente perda do caráter prazeroso das atividades, contribuindo para a criação de um "exército" de alunos que desprezam a Educação Física na escola. A participação, em detrimento da exclusão causada pela competição exacerbada, deve ser estimulada para que os alunos desenvolvam o senso de curiosidade, da busca do novo, do envolvimento e do prazer em vivenciar, aprender e ensinar, do banimento da mera repetição mecânica, de práticas vazias de significado.


 Valorizamos a participação em nossa proposta, pois enquanto professores, nossa experiência empírica vem demonstrando que a freqüência e o interesse pelas aulas de EF tende a crescer após a adoção de práticas pedagógicas com ênfase na inclusão e na minimização da competição nas atividades.


 Entretanto, esta postura tem a intenção de banir a competição das aulas de Educação Física na escola, mas de torná-la objeto de análise e reflexão, para que o seu uso tenha resultados construtivos para os alunos, como, por exemplo, o estímulo da prática dos jogos em que a competição esteja relacionada à auto-superação (Roberts, 1992).


 A discussão sobre o lazer no tempo livre também tem sido feita nas aulas na escola. A partir da realidade vivida dos alunos, problematizamos as mudanças nos modos de produção do quotidiano, enfatizando o aumento do tempo livre e a possibilidade de sua utilização para o desenvolvimento da criatividade humana através da cultura corporal, além das questões sociais acerca do lazer e suas barreiras em função das diferenças sociais (Marcellino, 1995).


 A influência da mídia na consolidação de representações sociais e crenças associadas à prática de atividade física tem sido outro aspecto abordado. Situações como o uso do esporte para interesses capitais de ascensão social, a associação feita entre determinados esportes e a violência, a gênese de uma representação sobre uma relação causal entre a prática de exercícios e a saúde, entre outros aspectos, é outra temática geradora de discussões frutíferas.

Os conhecimentos sobre o corpo em movimento, tais como a fisiologia do exercício, os mitos relacionados aos exercícios veiculados no quotidiano, as dicas para a prática correta de exercícios; as qualidades físicas e sua importância no dia a dia, são temas que podem permear a prática de diferentes elementos da cultura corporal e já trabalhados por nós com sucesso na escola (Devide, Rizzuti, 1999)


 Por fim, o tema da co-educação pode ser trabalhado nas aulas de Educação Física escolar com vistas à uma reflexão crítica acerca do sexismo nas práticas corporais, como os rótulos atribuídos à determinadas atividades como sendo masculinas ou femininas. O desenvolvimento de aulas mistas em que surjam situações-problema para a discussão das diferenças de cunho sócio-cultural e biológico entre meninos e meninas na prática de atividades físicas é uma rica possibilidade para se trabalhar com esta temática (Saraiva, 1999).

 Tivemos a possibilidade de observar os frutos de um trabalho co-educativo, ao trabalharmos, por um bimestre, o conteúdo do futebol em aulas mistas, quando surgiram diversas situações, tais como a cooperação entre meninos e meninas na execução das atividades propostas.


 Neste contexto, consideramos necessário que os conteúdos abordados nas aulas de Educação Física desconstruam a crença da aula essencialmente prática. Entendemos que a consolidação desta disciplina no currículo escolar perpassa pela viabilidade e visibilidade dos conteúdos da cultura corporal atravessados por temas de estudo, como os acima apresentados, desenvolvidos com os alunos nos diferentes ciclos da educação básica, através de uma abordagem simultânea e de uma seqüência que possibilite a vivência de todos estes temas em cada um dos ciclos de ensino, num grau de complexidade e aprofundamento cada vez maiores, à medida que vão sendo debatidos e ampliados ao longo dos anos escolares.


 Neste sentido, consideramos que a Educação Física pode e deve proporcionar a vivência e a discussão sobre o movimentar-se, a partir dos conteúdos da cultura corporal de movimento (esportes, danças, lutas, jogos, ginástica), nos diferentes momentos e situações das aulas. Debatendo sobre os aspectos históricos, fisiológicos, estéticos, éticos, culturais, sociais e políticos que constituem estas temáticas, a Educação Física escolar, inserida no contexto educacional, pode criar condições efetivas de formar um aluno crítico, capaz de desencadear mudanças na realidade social ao seu redor.


 Concretizando a proposta temática: o exemplo da capoeira


 Com vistas a concretizar a proposta temática acima, os momentos de prática física e de debate dos temas tratados com os alunos podem estar presentes numa mesma aula ou serem abordados em aulas separadas, culminado com a produção coletiva dos alunos, tais como: apresentações de trabalhos sob o formato de seminários que sintetizem as discussões nas mais variadas formas, a produção de um jornal informativo sobre assuntos relativos à prática da atividade física, a criação de novas práticas corporais, a encenação teatral sobre temas da cultura corporal circulantes no quotidiano, a simulação de programas de televisão etc..


 Ressaltamos a importância do estabelecimento de uma relação coesa entre o estudo dos temas propostos para discussão nas aulas e a vivência dos conteúdos da cultura corporal na Educação Física escolar, capacitando o aluno a identificar tais aspectos na realidade social que o circunda, a saber: a freqüência à academias de ginásticas, clubes esportivos, treinamento de modalidades esportivas, prática de artes marciais ou atividades de lazer realizadas no tempo livre, entre outras.


 Após a apresentação e discussão de alguns dos temas que viemos abordando com os alunos nas escolas nas quais desenvolvemos nossa prática, discorreremos brevemente e em linhas gerais sobre o trabalho de um bimestre, no qual tratamos o conteúdo da capoeira, relacionando-o com alguns dos temas da proposta temática já discutidos anteriormente.


 A capoeira, ministrada por nós no 3º e 4º ciclos do ensino fundamental, teve por objetivos: resgatar esta prática enquanto um dos conteúdos da Educação Física na escola; desencadear a reflexão dos alunos sobre a importância cultural da capoeira enquanto expressão da cultura popular brasileira; debater os seus aspectos históricos e suas implicações na busca da liberdade dos escravos; e problematizar as questões relacionadas aos preconceitos circulantes sobre a capoeira e os seus praticantes.


 Ao abordarmos a capoeira através de aulas menos diretivas, com métodos de ensino voltados para a participação efetiva dos alunos, tais como a solução de problemas e a descoberta orientada, com vistas à cooperação, inclusão e co-educação, em detrimento da competição, exclusão e do sexismo, possibilitamos aos alunos a gênese e o debate de situações de conflito que tendem a surgir durante as aulas.


 Entre algumas das ocasiões de aula, as que mais chamaram nossa atenção e buscamos problematizar foram: a prática da capoeira enquanto luta usada com fins destrutivos (violentos) e não enquanto expressão cultural e prática corporal voltada para o prazer; a discriminação desta atividade por motivos religiosos, raciais, sociais e sexuais; o resgate histórico da capoeira como forma de protesto e busca de libertação pelos negros escravizados; e a dos materiais necessários para o ritmo das rodas (berimbau e pandeiro).


 O preconceito religioso foi notado nas aulas através dos comentários dos alunos/as, como "capoeira é coisa de macumbeiro". Interpretamos que isto posa se dar em função do ritmo, do batuque durante a roda de capoeira, e da vestimenta do capoeira. Outra crença é de que seus praticantes utilizam drogas. Alguns alunos comentavam que "quem faz capoeira é maconheiro". Também constatamos um preconceito racial por parte de alguns alunos/as que se negavam a participar das aulas de capoeira por considerarem que "a capoeira é coisa de negro". O sexismo também foi constatado por parte das meninas, que justificavam a não adesão nas aulas práticas por acharem que a capoeira pode ser praticada pelos meninos com maior liberdade em função das diferenças anatômicas, como os seios que, segundo elas dizem, atrapalham a realização dos diferentes movimentos.


 Em relação à apresentação da capoeira enquanto conteúdo, nas primeiras aulas discutimos com os alunos o seu aspecto histórico: o cenário do seu surgimento, os motivos e conseqüências do seu uso, o seu significado histórico, a criação da capoeira enquanto luta usada como auto-defesa pelos escravos contra os maltratos, a maneira que eles enganaram os donos das fazendas e os capatazes, escamoteando a capoeira enquanto dança, falseando a possibilidade de seu uso como luta utilizada nas eventuais fugas.


 Durante as aulas subseqüentes, surgiram temas trazidos pelos alunos através de reportagens sobre os inúmeros grupos de capoeira e as brigas entre estes grupos, que implicam na perda do caráter lúdico e do prazer de "jogar" a capoeira. Visando a cooperação e a otimização das relações interpessoais do grupo, o trabalho com os alunos foi, na maior parte das aulas, desenvolvido sob a forma de duplas, que se revezavam no aprendizado dos movimentos da capoeira (ginga, cocorinha, benção).


 Além do trabalho de toda a turma para montagem dos instrumentos básicos (berimbau - com bambu, naylon e cabaça; e o pandeiro - com madeira e couro de boi), com material alternativo, os alunos também pesquisaram músicas nos grupos de capoeira nos quais alguns deles participavam, inclusive recriando as letras de algumas destas músicas.


 Ao final de cada aula do bimestre, reunimos as turmas para discussão das situações-problema, além das descritas acima, que apareciam nas aulas, como: a impossibilidade de jogar capoeira no bairro; a admiração pelos alunos que se mostravam mais aptos para os saltos na turma; e a crescente adesão das meninas nas aulas práticas. Elas justificavam a adesão pelo fato de trabalharmos com a música nas aulas e por considerarem que na capoeira, a competição era minimizada, pois não se tinha uma equipe vencedora, uma vez que a ênfase da turma era pela participação e cooperação entre os alunos em cada aula.


 Quanto à avaliação, nas aulas e ao final do bimestre, nos remetemos à diferentes formas de avaliação. Em relação aos aspectos históricos, formamos grupos para apresentação da história da capoeira desde a sua criação, passando por sua marginalização após a abolição da escravatura, e a crescente divulgação de sua prática pela mídia nos dias de hoje.


 Outra estratégia de avaliação foi a divisão da turma para entrevistarem praticantes de capoeira e mestres que ministram aulas. Nas entrevistas com os praticantes, os alunos perguntaram sobre os motivos que os levaram a procurar a capoeira e como representavam a modalidade antes e depois de ingressarem nos grupos. Com os mestres, foi questionada a origem e importância cultural da capoeira enquanto expressão da cultura popular brasileira, o uso violento da capoeira, além dos benefícios que a sua prática pode oferecer. Por fim, as entrevistas foram apresentadas e debatidas com o restante da turma sob a forma de seminário. Esta atividade possibilitou aos alunos o ingresso no ambiente dos grupos de capoeira para a realização do trabalho e, inclusive, a adesão de alguns deles à prática regular desta atividade.


 Considerações Finais


 A partir da experiência com a capoeira na Educação Física escolar, nos foi possível trazer à tona a discussão de algumas das propostas temáticas acima discutidas que procuramos relacionar com este conteúdo ministrado durante as aulas de um bimestre letivo.


 Nesse sentido, atribuímos historicidade à capoeira ao discutimos com os alunos o surgimento, os motivos e as conseqüências de sua prática; abordamos a co-educação ao trabalhamos com turmas mistas, o que propiciou discussões sobre as diferenças anatômicas, sociais e culturais da prática da capoeira por meninos e meninas; a competição, por exemplo, foi abordada através da necessidade da cooperação do outro para que ocorra o "jogo" e a roda de capoeira; a mídia esteve presente através do debate dos/as alunos/as com o/a professor/a à respeito da sua influência na minimização do estigma da capoeira como atividade marginalizada; enquanto a temática da Promoção da Saúde e o lazer foi abordada quando apresentamos a dificuldade de praticar a capoeira nas comunidades nas quais habitam os/as alunos/as, por falta de espaço público adequado, impossibilitando a sua vivência enquanto atividade de lazer realizada no tempo livre.


 Tais temáticas têm perpassado as discussões ocorridas por ocasião das aulas de Educação Física ministradas por nós em escolas da rede estadual do Rio de Janeiro, enriquecendo a apresentação e o ensino dos conteúdos da disciplina, tornando-os mais próximos à realidade dos alunos, e por isso, despertando o prazer pela prática física, a facilitação de sua aprendizagem e a sua adoção no estilo de vida dos alunos, transformando suas representações sociais acerca da Educação Física enquanto disciplina curricular, em direção a sua crescente valorização.


 Obs. A autora, profa.Gabriela Aragão Souza de Oliveira é mestranda em educação física na UGF e o prof. MS. Fabiano Pries Devide é doutorando em educação física na UGF


 Referências bibliográficas


Coletivo de autores. Metodologia do ensino de educação física. São Paulo: Cortez, 1992.
Devide, F. P.; Rizzute, E. V. (1999). Transformações periféricas das representações sociais de alunos de 1º grau do Colégio Estadual Edmundo Bittencourt (Teresópolis/RJ) sobre a educação física escolar após intervenção pedagógica. Anais do XI Congresso Brasileiro de Ciências do Esporte. Florianópolis: CBCE. p. 1423-1424.
Faria Júnior, A G. de (1991). Educação física, desporto e promoção da saúde. Oeiras: Câmara Municipal de Oeiras.
Melo, A. M. Jogos populares infantis como recurso pedagógico da educação física escolar de 1º grau no Brasil. (Dissertação de mestrado). Rio de Janeiro. UFRJ, 1985.
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Saraiva, M. do C. Co-educação física e esportes: quando a diferença é mito. Ijuí: Unijuí, 1999.
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