Integra

Introdução

Não necessitamos de muitas explicações para reconhecer que muitos tabus e preconceitos acabam gerando uma resistência ou uma insegurança nos professores de Educação Física para trabalharem com o conteúdo dança. Ou porque "não sabem" dançar, têm vergonha e ou se acham "descoordenados" ou apenas por discriminação a esse conteúdo. Exclui-se, assim, um importante conhecimento para a formação humana do aluno.

Enquanto isso ocorre, as alunas e alunos conhecem e apreendem, por intermédio da televisão, uma série de coreografias estereotipadas, discriminatórias e erotizadas sem qualquer reflexão ou questionamento, tanto em casa como na escola.

É no sentido de superarmos essas resistências, tabus e dificuldades dos professores e de interferir nesse contexto de irreflexão que apresentaremos este trabalho. Primeiro, questionando a forma como algumas coreografias são levadas às casas dos alunos e à escola pela mídia; segundo, elaborando um conceito "menos formal" de dança na escola e definindo um papel para o professor diante desse conceito; e terceiro, sugerindo atividades para serem realizadas em aula.

A dança pela mídia e a escola: "Cultura x entretenimento"

Atualmente, quando se pensa em mídia se pensa logo na TV. Sem dúvida, é este o principal veículo de comunicação em nossa sociedade, pois é este que ocupa pelo menos um sexto do tempo de uma criança entre dois e onze anos (Betto, 2002). A televisão é atualmente importante formador de opinião, influenciando diretamente o comportamento e as atitudes dos alunos.

Essa rápida influência aparece muito evidente em relação à dança. O recurso de utilizar dançarinas, adotado por vários grupos cantores e grupos musicais, leva às crianças uma visão mercantilizada, deturpada e prostituída da dança (Sborquia e Gallard, 2002; Beto, 2002).

Começou com a "boquinha da garrafa", levou um "tapinha que não dói" e agora segue sem limites. São temas de músicas, acompanhados de coreografias com movimentos sensuais e sexuais que alunos consomem sem discernimento. É a mercantilização da música e da dança, atropelando os valores éticos e morais necessários para construir a sociedade cidadã e humana que as atuais propostas educacionais apresentam para a educação brasileira.

Se admitirmos que vivemos em uma sociedade mercantilizada, que os seus interesses econômicos são manipulados pela mídia e pela propaganda, que o principal veiculador desses dois (mídia e propaganda) é a televisão e que quase todos os nossos alunos assistem televisão; poderemos afirmar que essas coreografias e danças mercantilizadas são aprendidas em casa.

Em atividade, realizada em um CIEP da Baixada Fluminense, pedimos aos alunos que trouxessem suas músicas prediletas para uma festa. Observamos que mesmo alunos proibidos pelos pais de dançarem e ouvirem as músicas eróticas, admitiam que apesar da proibição conheciam as músicas e as coreografias e que as haviam aprendido com parentes ou amigos. Isso significa que os pais acreditam que proíbem e as crianças fingem que obedecem. Vemos, assim, na maioria das vezes, a televisão entrar na casa de nossos alunos (direta ou indiretamente) sem qualquer reflexão ou acompanhamento dos pais, tornando-se soberana e assumindo, possivelmente, um "papel deseducativo e deformador" (Betto, 2002).

Entrando dessa forma, descontextualizada e acrítica, a dança perde o seu valor cultural, estético e expressivo e vira um simples entretenimento. Frei Betto (2002) diferencia claramente esse dois termos: cultura busca a evolução humana e provoca discernimento e crítica; e o entretenimento busca apenas o divertimento e cria a hipnose e a alienação coletiva.

Dessa maneira, o conteúdo da dança acaba tendo destinos bastante equivocados no contexto escolar. Primeiro, sendo negada; os professores descoordenados, tímidos ou que não sabem as danças padronizadas evitam trabalhá-las com os alunos ou, quando, por motivos religiosos, acham as músicas e danças impróprias para a escola. Em segundo, repetindo, como mero entretenimento, as coreografias padronizadas que os alunos conhecem, reforçando ainda mais os estereótipos e padrões mercadológicos.

É no sentido de refletir sobre essas visões estereotipadas e padronizadas sobre a dança que precisamos entender a dança de uma forma que nos liberte das formalidades, preconceitos e tabus, para, assim, percebermos a diversidade de aprendizagens que a mesma pode proporcionar à formação e ao desenvolvimento humano. Ao falamos em formação humana, estamos resgatando aquilo que tem sido esquecido pela sociedade e a escola tradicional: a corporalidade, a espiritualidade e a afetividade (Maturana, 2002; Boff, 2000).

Precisamos deixar de ver a dança em nossas escolas como entretenimento e assumi-la como cultura. Trabalhar com esse conteúdo ressaltando as contradições, os tabus e os preconceitos existentes na sociedade, resgatando o conhecimento mercantilizado dos alunos sobre a dança e transformando-os em conhecimento crítico e discernido; eximindo-se de preconceitos.

Um conceito de dança na escola e o papel do professor

Como nosso objetivo é demonstrar que a dança pode e deve ser trabalhada por qualquer professor, admitimos ser importante diminuir um pouco os tabus, preconceitos e restrições que induzem grande parte dos professores a excluírem esse conteúdo das aulas de Educação Física.

Para isso, torna-se necessário encontrar uma perspectiva e um conceito que permita uma maior participação e inclusão dos alunos; ou seja, quebrar um pouco do formalismo como a dança é preconceituosamente tratada para possibilitar uma a ampliação de experiências e vivencias corporais dos alunos e professores de Educação Física. Acreditamos que, ampliando as experiências e vivências corporais dos alunos, podemos aumentar a capacidade de crítica e de alternativa à padronização e a mercantilização.

A concepção que encontramos e consideramos mais próxima dos nossos objetivos foi a de Kunz (2002). Para o Autor, "o movimento humano na dança se apresenta muito mais numa perspectiva de expressão e vivência do que pela padronização e pela predeterminação dos gestos" (op. cit.: 90); é onde pode-se dar uma ênfase maior ao afetivo, ao estético e ao emocional - aspectos bastante reprimidos em nome da racionalidade e da intelectualidade. Isso não significa considerarmos que a dança não desenvolve o intelecto; ao contrário, estamos é afirmando que esse aspecto tem sido pouco enfatizado pelos educadores tradicionais das escolas.

Compreendendo a dança nessa perspectiva inclusiva e não-formal, podemos trabalhar a dança na escola como uma atividade espontânea, aberta às experiências individuais e coletivas e sem modelos e padrões que inibam a criatividade e a liberdade de expressão.

Surge, então, o nosso conceito de dança para a escola e as aulas de Educação Física. Um conceito que aumenta o espaço para a liberdade, a criatividade, a comunicação, a subjetividade, a espontaneidade e, consequentemente da crítica. Com ele, aquele aluno que só consegue fazer o famoso "dois prá lá, dois prá cá" poderá encontrar uma forma de expressar-se livremente com seus companheiros.

Da mesma forma, o professor "descoordenado" não precisará sentir receio ou vergonha de expor sua deficiência para os alunos e poderá aprender com eles novas formas de expressão. Também, aqueles professores que se negam a trabalhar com determinados tipos de dança ou música, por questões religiosas, perdem nestas manifestações uma oportunidade de crítica e de apresentar sua religião, estabelecendo assim uma troca de valores culturais.

Ao explicarmos o nosso conceito de dança, já esboçamos o papel do professor nesse contexto. Em poucas palavras, para nós, o papel do professor, diante do conceito que apresentamos, é transcender o senso comum e revelar junto com seus alunos as diversas possibilidades de reconstrução ou transformação do mesmo.

Especificamente, ele tem que incorporar aos seus objetivos o conhecimento e as experiências com dança trazidas pelos alunos - mesmo que esse conhecimento seja um produto da mercantilização ou de qualquer outra forma de produção. Tem que ouvir as músicas trazidas pelos alunos, dançar com eles e conhecê-los como eles são, e não como desejaria que fossem. Em seguida, é dever do professor apresentar aos alunos suas próprias vivências e experiências de ritmos, movimentos e passos; incentivar a troca destas vivências entre os alunos; mostrar aos alunos sua preferência musical e rítmica, ou sua dificuldade de dançar e sua disposição em aprender com eles; enfim, estabelecer um diálogo comunicativo por meio da dança.

Instrumentalizando o conceito

Criado o conceito e definido o papel do professor, é preciso desenvolvê-los. Para tal, nos apoiamos em nosso conceito de dança na escola, apresentado anteriormente, e no trabalho de Fiamoncini e Saraiva (1998), de forma que pudéssemos criar estratégias e fazer as adaptações necessárias ao objetivo de levar esse conteúdo de forma reflexiva e crítica à escola.

As Autoras utilizam "a improvisação" (p. 95) como conteúdo para livrarem-se dos estereótipos tradicionais, permitindo a todas as pessoas dançarem, movimentarem-se e expressarem-se livremente, de acordo com suas possibilidades individuais e evitando confrontar seus movimentos com padrões técnicos. O intuito dessa estratégia, conforme as Autoras, é "transcender limites" e "configurar novas aprendizagens".
Então, elaboramos uma seqüência de atividades que facilitasse a participação de todos e que permitisse discutir com os alunos os tabus, preconceitos, padrões e estereótipos em torna da dança e das coreografias padronizadas, buscando, dessas discussões, despertar um mínimo de crítica e de consciência sobre os sentidos e significados dos mesmos. O exemplo, a seguir, apresenta parte das atividades que poderiam ser realizadas, mas segue uma progressão partindo de um estágio de movimentos livres e individuais para outro de movimentos organizados e em conjunto.

Atividade 1: solicitar que os alunos tragam para a aula CDs e/ ou fitas K7 com suas músicas preferidas. Tocar as músicas dos aluno, independente do ritmo, letra ou reclamação dos outros colegas e deixar que eles dancem livremente. O professor também leva suas músicas, toca-as e dança com os alunos.

Atividade 2: utilizando balões de encher, pedir aos alunos para movimentarem-se no ritmo da música e mantendo as bolas no ar e sem deixá-las cair no chão.

Atividade 3: iniciar com os alunos sentados, parados e com os olhos vendados; pedir aos alunos, movimentos apenas com a cabeça, com uma das mãos, com as duas mãos, com as mãos e a cabeça, etc., acompanhando sempre o ritmo da música. Em seguida, repetir em pé e desvendando os olhos.

Atividade 4: escolher uma música com os alunos; dividir a turma em três grupos; pedir que o primeiro grupo fique em pé, o segundo sentado e o terceiro deitado para que executem movimentos com os pés e com as mãos seguindo o ritmo da música. Trocar as posições para que todos experimentem as três posições.

Atividade 5: pedir que cada um dos grupos escolha uma música e monte uma coreografia com todos os integrantes do grupo e apresentar para a turma. Evitar que repitam as coreografias padronizadas. Se a coreografia da música escolhida já for conhecida, solicitar que reelaborem com novas formações e movimentos.

Vale ressaltar que, embora esta estratégia valorize a espontaneidade, a liberdade e a criatividade dos alunos, isso não significa ausência de intervenções do professor ou que é sinônimo de "aula livre". Pelo contrário, esta estratégia exige do professor bastante cuidado e uma determinação bem clara dos objetivos e dos procedimentos das aulas. Esse deve ficar atento para utilizar os conflitos, divergências, restrições, piadas, deboches, auto-exclusões, etc. como conteúdo para reflexões e proposições.

Experimentando a proposta

A proposta, anteriormente apresentada, foi experimentada e realizada, durante 3 aulas de Educação Física, em uma escola pública estadual, localizada na Baixada Fluminense, Rio de Janeiro, com alunos da 2a à 3a séries do ensino fundamental. Resultou do reconhecimento da importância do conteúdo dança nas aulas de Educação Física, de uma dificuldade pessoal em trabalhar com a dança (descoordenação, timidez e nenhuma experiência anterior) e de uma observação crítica da forma como as alunas e alunos estavam levando suas músicas, danças e coreografias para a escola e para casa.

De uma forma geral, a experiência foi positiva em relação à receptividade dos alunos e ao aperfeiçoamento do professor. Apesar das dificuldades encontradas, porém previstas, revelou que é possível, para um professor sem experiência com dança, criar com um espaço para a reflexão e crítica desse conteúdo.

Enquanto professor foi desafiador aprender a lidar com o desconhecimento (a inexperiência e a falta de habilidade com dança), porém estimulador para uma reflexão do nosso papel e o da escola nas relações com os alunos. Percebemos que, em um mundo onde as informações circulam cada vez mais rápidas, precisamos aprender a lidar com o nosso desconhecimento. Por outro lado, vimos como o desconhecimento e a inexperiência nos aproximou daqueles alunos mais tímidos ou com pouca habilidade, permitindo que juntos superássemos a timidez, a vergonha, etc.

Ao respeitar e incluir as músicas e danças mercantilizadas trazidas pelos alunos, proporcionamos um estímulo aos alunos a aceitarem outras possibilidades corporais, culturais e de movimento. Aproveitando as músicas e os movimentos criados ou trazidos pelos alunos e apresentando nossas preferências e sugerindo modificações, levamos os mesmos a comparar, questionar e a criar. Dessa interação surgiam os conflitos (os empurrões, as piadinhas preconceituosas, os deboches, etc.) e as oportunidades para a intervenção do professor. A reflexão que queríamos despertar surgia na própria ação ouvir e dançar livremente.

Experimentamos que sua concretização não se dá com a facilidade que relatamos. Adequar às atividades ao local das aulas, as reclamações das professoras devido ao barulho da música e das crianças, a resistência apresentada por muitos alunos, a incompreensão inicial da proposta e vários outros fatores exigiram muitas adaptações e retrocessos. Por outro lado, precisamos aprender que as aulas não são planejadas para serem perfeitas e sem problemas, mas sim para transformar as mesmas em oportunidades para evoluirmos junto com os alunos.

Enfim, o mais importante dessa experiência foi a possibilidade de estabelecermos um diálogo de igualdade com o aluno: um diálogo comunicativo. Um diálogo que deve ir além das palavras, pois precisa utilizar a emoção, o sentimento e o afeto. Para isso, o corpo é fundamental e a dança mostrou-se um importante veículo.
Considerações finais

O trabalho demonstra àqueles tímidos, descoordenados e resistentes que é possível inserirmos em nossas aulas esse importante conteúdo e que exige poucos recursos materiais: a dança.

A dança que a mídia leva para a escola acriticamente torna-se de responsabilidade de nós professores de Educação Física. O nosso papel é revelar essa irresponsabilidade, estimulando a crítica dos alunos, contudo sem negar ou discriminar seu conhecimento e cultura, mesmo o entretenimento.

Precisamos aprender que não existe cultura melhor ou pior Marconi e Presotto (2001). Portanto, o entretenimento trazido por nossos alunos precisa ser respeitado e nosso trabalho será mostrar novas opções, despertando a crítica e oferecendo a opção de mudança, mas sem desmerecimento de suas preferências.

Obs. O autor, prof. Marcos Miranda Correia, é Prof. de Ed. Física ISERJ/FAETEC e PMCRJ e mestrando da UNIVERSO.( mmarcosuff@bol.com.br)

Bibliografia

  • Betto, F. Educar Pra Quê? Caros Amigos. São Paulo/ SP, ano VI, n. 68, p. 40-41, nov. 2002.
  • Boff, L. Ethos mundial: um consenso mínimo entre os humanos. Brasília/ DF: Letraviva, 2000.
  • Fiamoncini, L. e SARAIVA, M. C. Dança na escola: a criação e a co-educação em pauta. In KUNZ, E. (Org.). Didática da educação física 1. Ijuí/ RS: Unijuí, 1998.
  • Kunz, E. Transformação didático-pedagógica do esporte. Ijuí/ RS: Unijuí, 2000.
  • Marconi, M. de A. e Presotto, Z. M. N. Antropologia: uma introdução. 5a ed. São Paulo/ SP: Atlas, 2001.
  • Maturana, H. Emoções e linguagem na educação e política. Belo Horizonte/ MG: UFMG, 2002.
  • Sborquia, S. P. e Gallardo, J. S. P. A Dança na Mídia e As Danças na Escola. Revista Brasileira de Ciências do Esporte, Campinas/ SP, v. 23, n. 2, p. 105-118, jan. 2002.