Invisíveis, agora e na hora da morte
Integra
Você já imaginou como se sentiria se fosse invisível? Ou, pior ainda, você já se sentiu invisível? Há pelo menos duas maneiras de estar nessa condição: fisicamente, ou no seu meio sociocultural. Não vale apelar para fantasmas quer eles sejam assustadores ou brincalhões que o cinema e as histórias em quadrinhos tão bem retratam. Tem que ser gente mesmo – seres humanos.
Dois livros como títulos brasileiros distintos apenas pelo artigo “o” tratam dessas duas formas de invisibilidade. “Homem invisível” de Ralph Ellison, de 1952, e “O homem invisível”, de H.G. Wells, publicado em 1897, e já adaptado para cinema, em várias versões. Ambos são clássicos da literatura americana.
O primeiro é realista e narra as experiencias de vida de um jovem negro que se sente assim nas relações humanas, e por causa da sua publicação a expressão do seu título acabou virando uma metáfora da situação do negro na sociedade estadunidense.
O segundo um romance com toques de ficção científica e terror, analisa as questões colocadas pelo título a partir de uma experiência de um “cientista” que descobre a fórmula de se tornar invisível fisicamente, aplica em si próprio com sucesso, mas não consegue reverter a situação, narrando os problemas que isso acarreta.
Até seria bom ser invisível, andar pelos lugares sem ser notado, livremente, quando quiser, ouvir conversas se for bisbilhoteiro, e tantas outras coisas que temos vergonha de fazer de corpo presente. Mas o segundo livro é focado nas consequências desastrosas e assustadoras de ser assim.
Quanto ao primeiro, que se revela um estudo muito interessante e denunciador da condição sociocultural do negro, na sociedade americana, trata de uma invisibilidade que não se aplica só aos Estados Unidos, e poderíamos dizer, alargando a expressão, nem apenas a questões raciais.
Os personagens principais das duas obras sofrem com a sua invisibilidade, e chegam mesmo a enfrentar a possibilidade de extermínio, um no plano físico, no caso o cientista que após estudos óticos inventa uma forma de se tornar invisível, e que acaba provocando medo nas pessoas, e o outro no plano social, o narrador negro com nível universitário que se envolve em situações no mínimo embaraçosas e trágicas, pela cor da sua pele. Os dois casos refletem sobre o que acontece no cotidiano da nossa sociedade, com quem não se encaixa no padrão vigente – o diferente. E cada um ao seu modo são assustadores.
Historicamente vemos isso acontecendo por questões ideológicas político partidárias, caso de genocídios ao longo do tempo, e desviantes de comportamentos “religiosos” não aceitáveis como as bruxas da Idade Média, mas os exemplos estão bem presentes e convivem conosco no dia a dia, com gente não sendo respeitada como pessoas humanas.
Por toda parte vemos “o invisível”: por não ter profissão considerada importante; por ser criança, ou idoso, independente da condição social; por sua “classe social”; por ser morador de rua; por questões religiosas, de gênero, de cor de pele, de deficiências as mais variadas etc.
Pois bem, um novo livro deve ser lançado em breve, no Brasil, provando que até mesmo na hora da morte essas pessoas continuam invisíveis. Intitulado "Mortos Desconhecidos", é baseado em pesquisa feita até abril de 2024, pelo autor, Everson Contelli, a ser publicado pela editora Milenium, neste ano. Os dados foram colhidos até abril de 2024.
O autor considerou os casos em que houve registro racial dos mortos, e constatou que indígenas, pretos e pardos respondem pela grande maioria de mortes de pessoas sem identificação. Em algumas capitais brasileiras o número chega a 80 e 90% dos óbitos.
Aqui também a invisibilidade é estarrecedora, por permitir essas mortes e pelo fato da situação permanecer mesmo depois delas.
A perspectiva da chegada de dias melhores está em longo e lento compasso de espera, com alguns avanços e muitos retrocessos. E durante o tempo em que isso não se concretize só nos resta fazermos pressão onde for possível, e aonde não for também, para que com o esclarecimento das mentes e dos sentidos, e políticas públicas de inclusão sociocultural, os iguais em humanidade, não sejam colocados em posição de invisibilidade, e apelarmos, os religiosos católicos, para a oração da “Ave Maria”, pedindo que ela continue rogando “por nós, os pecadores, agora e na hora da nossa morte”. Amém.
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Parte do livro “BALAIO- grandes temas em pequenos escritos”, a ser publicado pela Editora Mercado de Letras, em outubro de 2025.