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Estudo de educadora física mostra que é quase inexistente o envolvimento da categoria em ações sindicais

Em agosto de 2011, Iker Casillas, Xabi Alonso, Carlos Puyol, Santi Cazorla e Fernando Llorente – expoentes dos maiores clubes de futebol da Espanha – sentaram-se à mesa de braços cruzados, tendo atrás uma centena de outros jogadores, para uma entrevista coletiva comunicando que estavam em greve e que a Liga Espanhola não começaria na data prevista. A Asociación de Futbolistas Españoles (AFE) coordenava o movimento e, embora os famosos tomassem a frente, a exigência era de que os atletas dos clubes menores recebessem seus salários, cujo atraso constituía um problema grave e recorrente no futebol espanhol.

A cena é descrita pela educadora física e cientista social Mariana Zuaneti Martins, que definiu ali o mote para a sua pesquisa de doutorado. “Aquela greve me levou a pensar por que nunca tínhamos assistido, no Brasil, a uma ação coletiva generalizada entre os jogadores de futebol”, recorda a autora da tese intitulada “Aperfeiçoando o imperfeito: a ação sindical dos jogadores de futebol no período pós Lei Pelé”, orientada pela professora Heloisa Helena Baldy dos Reis, na Faculdade de Educação Física (FEF).

A ideia já havia ocorrido a Mariana Martins durante a dissertação de mestrado, quando focou a Democracia Corinthiana, o movimento da década de 1980 em que os jogadores do Corinthians conquistaram uma participação mais democrática na tomada de decisões dentro do clube. “Paralelamente, esses jogadores participaram da campanha pelas Diretas Já, marcando um momento de politização do futebol brasileiro. Alguns mentores da Democracia Corinthiana também foram atuar no Sapesp (Sindicato dos Atletas Profissionais do Estado de São Paulo) que, por influência deles, articulou e ameaçou com uma greve caso a Federação Paulista de Futebol (FPF) descumprisse com a paralisação de 30 dias no campeonato para férias dos jogadores.”

Na opinião da pesquisadora, a greve na Espanha e o movimento no Corinthians demonstraram como é possível a organização de uma greve entre jogadores de futebol e como os sindicatos da categoria podem ser protagonistas de melhorias nas condições de trabalho, que são precarizadas de forma global. “Decidi analisar na tese a ação dos sindicatos no período pós-Lei Pelé, que em 1998 extinguiu a Lei do Passe, vínculo que fazia do jogador uma propriedade do clube. Como o fim desse vínculo era a principal reivindicação dos atletas até então, quis ver como os sindicatos passaram a atuar para a efetivação da nova lei.”

A primeira preocupação de Mariana Martins foi estudar como se organiza o mercado de trabalho no futebol e quais as condições oferecidas para a categoria. “Observei que se trata de um dos mercados mais lucrativos existentes, onde a partir de uma ideia de especificidade esportiva (e não econômica), consegue-se impor regras que contrariam aquelas de concorrência dos mercados tradicionais. Um exemplo era a própria Lei do Passe, que tornava o jogador posse do clube, vínculo que na Europa já havia acabado em 1995.”

Outra observação da autora da pesquisa é que o mercado de futebol é historicamente muito desigual, apresentando de um lado uma ínfima minoria milionária e de outro uma ampla maioria precarizada, de baixa remuneração, empregos sazonais e direitos trabalhistas corrompidos. “Temos quase 30 mil jogadores profissionais no país. Enquanto os dados de 1971 indicavam que 60% dos atletas profissionais recebiam até dois salários mínimos, agora em 2015, segundo a CBF, este índice saltou para 82% – muito acima da média do IBGE para a população em geral, que é de 61%.”

Ainda citando dados atuais, Mariana afirma que somente 3% dos jogadores ganham acima de R$ 10 mil por mês e, entre eles, 0,5% com salários exorbitantes. “Mas a imagem que se tem é de que se trata de uma categoria de milionários, que treinam duas horas pela manhã, duas horas à tarde, e só. Existem pesquisas mostrando que, na verdade, os jogadores se submetem a um trabalho extenuante em seu processo de formação, numa rotina pesada inclusive para jovens. Tudo isso vale a pena, já que nem a escola, nem o mundo do trabalho oferecem boas perspectivas para eles.”

Daí, a pergunta colocada na tese: se o mercado de trabalho do futebol é tão precarizado e com tanta desigualdade, por que os sindicatos e jogadores não se mobilizam? “A resposta dos meus entrevistados: ‘é por causa do sonho’. A ideologia do fetiche do futebol oculta essa desigualdade e promove, a partir da ideia do ‘sonho’ e da possibilidade de ser ‘descoberto’ como um talento, a subserviência a toda essa estrutura de poder e ao despotismo que se manifesta no interior dos clubes. Mesmo aquele jogador que está na última divisão do campeonato estadual, e com mais de 30 anos de idade, sempre acha que um dia vai estourar e ter uma vida melhor através do futebol.”

Ações coletivas
Mariana Martins considera que esta conjuntura tão adversa no meio futebolístico dificulta as ações coletivas por parte dos jogadores, já que mesmo os profissionais mais precarizados deixam de se mobilizar para não colocar em risco a mínima chance que veem de sucesso. “Este desafio é enfrentado pelos sindicatos cotidianamente. Para a tese entrevistei ex-jogadores sindicalistas, alguns atletas que disputam divisões inferiores e outros que fizeram parte do movimento Bom Senso Futebol Clube, que emergiu no meio do meu doutorado, em 2013.”

Existem no Brasil 24 sindicatos estaduais e a Federação Nacional de Atletas Profissionais de Futebol (Fenapaf), ao passo que a pesquisadora focou mais profundamente o Sapesp, que desde 1993 é gerido por Rinaldo Martorelli, ex-goleiro do Palmeiras. “Martorelli entrou no sindicalismo por conta do seu perfil questionador e a convite de seu antecessor, Toninho Cecílio. Também fez curso de direito e foi entusiasta da Lei Pelé. Justamente por conta dos rumos tomados pelo futebol com esta lei, o sindicado de São Paulo assumiu um perfil bastante negociador.”

A autora da tese lembra que depois da atuação mais política com a participação dos jogadores da Democracia Corinthiana, o Sapesp se integrou às negociações para o fim da Lei do Passe e passou a prestar uma espécie de assessoria aos jogadores, resolvendo os conflitos de forma mediada, no campo jurídico. “Havia um caráter combativo ao se contrapor aos cartolas que não admitiam a extinção do passe, assim como diante de relações despóticas como atrasos salariais constantes, condições de trabalho terríveis e falta de alojamentos em vários clubes. Por outro lado, o sindicato deixou de expor os conflitos publicamente para provocar indignação e tentar criar um movimento coletivo. O discurso é de que o sindicato é forte, mas a categoria é pouco participativa – e com tal discurso foi se construindo um enclausuramento burocrático.”

Bom Senso F.C.
Já o Bom Senso F.C., ressalta Mariana Martins, surgiu em um momento de denúncias de corrupção e prisão de dirigentes esportivos, tendo à frente jogadores em fase avançada da carreira (em tese, menos sujeitos a retaliações) como Paulo André (Corinthians), Alex (Coritiba) e Juan (Flamengo), e que se colocaram como porta-vozes da gestação de um projeto alternativo de poder. “Este movimento chegou bastante influenciado pelas manifestações de rua de junho de 2013, mas também pela oposição à CBF por conta de alterações no calendário do ano seguinte: a pausa para a Copa do Mundo no país tiraria o direito de trinta dias de férias.”

A pesquisadora afirma que o Bom Senso F.C. mostrou-se como uma alternativa para organizar os jogadores coletivamente por fora dos sindicatos. “Da crítica à CBF, o movimento passou a se solidarizar com atletas pelo país, como do Náutico, que não recebiam seus salários. Porém, uma nota da Federação Nacional alegando que o Bom Senso não era uma entidade sindical e, por isso, não deveria interferir nesse tipo de conflito, contribuiu para uma mudança de estratégia, centrada na oposição à CBF, exigindo uma entidade democrática. E várias outras categorias, como futebol feminino, futsal e beach soccer aderiram à campanha, fazendo germinar uma espécie de movimento social no futebol brasileiro, dando visibilidade a demandas marginalizadas.”

Neste processo, prossegue a autora da tese, o Bom Senso ganhou caráter propositivo, procurando influenciar no Legislativo por mudanças nas leis do futebol, como a inserção do chamado “fair play financeiro”. “O governo vem tentando refinanciar as dívidas dos clubes desde a instituição da loteria do Timemania em 2006 e, a partir de 2013, articulando outra forma de refinanciamento, mas sempre sem exigir uma contrapartida, enquanto as dívidas continuam crescendo. O ‘fair play’ seria a contrapartida dos clubes, comprometendo-se a manter os salários em dia em troca da ajuda do governo.”

Quando Mariana concluiu a tese, o Bom Senso vivia bom momento e, com apoio de outros setores do futebol, tinha acabado de organizar a sua primeira Liga, apesar dos conflitos com as federações e a CBF. “As denúncias de corrupção também levaram o Bom Senso a anunciar que disputaria a presidência CBF, a fim de transformar a estrutura de poder no futebol brasileiro. Mas a poeira baixou e as últimas notícias são de que o movimento teria paralisado momentaneamente suas atividades para repensar sua forma de atuação. Imagino que um ponto em avaliação seja de que atuar via jogador de futebol ainda está muito difícil.”

Mariana Martins lembra que Paulo André, talvez não por coincidência, acabou negociado com o futebol da China. “Ele articulou uma greve por causa da invasão do Centro de Treinamento do clube por torcedores. Tensos, os jogadores relutaram em ir a campo e o sindicato chegou a entrar com os procedimentos burocráticos de uma paralisação. Mas houve pressão da Rede Globo e a diretoria, temendo o prejuízo, fez com que o time voltasse atrás. Mesmo organizando os jogadores – e a indignação estando presente – as relações dentro deste mercado de trabalho tornam difícil uma ação coletiva de maior enfrentamento.”

Publicação

Tese: “Aperfeiçoando o imperfeito: a ação sindical dos jogadores de futebol no período pós Lei Pelé”
Autora: Mariana Zuaneti Martins
Orientadora: Heloisa Helena Baldy dos Reis
Unidade: Faculdade de Educação Física (FEF)

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