Integra
Há um ditado que diz que família não escolhemos, herdamos. Entendo que muitos falam isso pra tentar justificar as mazelas da vida, principalmente aquelas que depõem contra nossas escolhas, principalmente as feitas na maturidade. Felizmente faço parte de um grupo que tem um profundo orgulho das origens, dos pais e da família. Claro que muitas opções que fazemos ao longo de nossa trajetória estão fincadas nesses modelos primários, para satisfação ou desgosto de quem vai se achegando com o passar dos anos. Aloco nesse complexo afetivo-efetivo gostos culinários, musicais, ideológicos e também futebolístico. Num país onde a escolha pelo time pode ter desdobramentos muito mais drásticos do que a escolha de um partido político ou candidato a presidência da república vou logo justificando meu texto e óbvio que isso se deve à vitória do Corinthians ontem diante do Boca Juniores pela Libertadores.
Aviso logo de saída que não faria esse texto se minha irmã Maria Silvia e minha sobrinha Giovana não tivessem me surpreendido logo pela manhã com uma foto de meu pai, em plena Buenos Aires, vestindo sua indefectível camiseta do Coringão abraçado a um portenho desavisado, em plena Caminito, trajando uma remera alvinegra do Teves. Isso aconteceu em janeiro de 2011 quando meu pai Hilário, minha mãe Darcy, minha irmã e eu resolvemos fazer uma viagem depois de incontáveis anos sem essa diversão. Para tanto foram necessárias muitas horas de negociação com o casal Darcy e Hilário acostumados à mansidão da vidinha à beira mar. Depois de resolver quem cuidaria da cachorra Vitorinha, das plantas do quintal e da vó Maria fomos então a Buenos Aires comemorar os 51 anos de casados desse pai e mãe de quem não foi feita cópia, nem clone. Naqueles dias nada deu errado: caminhamos horas a fio pelas ruas e bairros de San Telmo, Palermo, Ricoleta, entramos na Casa Rosada, tiramos foto junto ao Che, visitamos o museu de Gardel e cantamos os parabéns das bodas em um show de tango. Tudo perfeito, até a chuva que caiu no domingo para diminuir do calor abrasador de verão. Tudo foi negociável menos a determinação férrea de exibir sua escolha futebolística na roupa que usaria naqueles dias. Isso porque seria possível falar de Peron, de Evita, das Malvinas, mas deixando claro que time de futebol não se discute. Meu pai era um daqueles homens de convicções intensas, mas ao mesmo tempo polido e capaz de grandes negociações para fugir de um entrevero que pudesse sugerir um mal-estar que impedisse uma pausa para um cafezinho. Vestir a camisa do Corinthians, entendo hoje, queria dizer que ele não queria perder tempo com essas discussões infrutíferas sobre o bem o mal ou a existência ou não de Deus. Era acreditar e pronto.
O encontro na Caminito foi meio mágico porque foi absolutamente inesperado. Andávamos por aquele pedaço e ele falando de suas lembranças de jovem, quando de repente, não mais que de repente ele avistou, do outro lado da rua, um igual, membro da mesma tribo, promotor de sua própria identidade e sem vacilar atravessou. Sua camisa inteira branca destoava da listada em preto e branco do argentino, mas isso não fazia a menor diferença. A igualdade podia ser provada, no distintivo exatamente igual, que as duas ostentavam.
Nenhum de nós quatro, naqueles dias, podia imaginar que aquela seria nossa última viagem juntos. Seo Hilário se foi de forma inesperada deixando inúmeras lembranças: a força de seus valores morais, a crença férrea em um mundo melhor, a transformação da sociedade por meio do trabalho, um amor ilimitado aos seus amigos e família e a paixão nessa mesma proporção por seu time do coração, o Coringão.
Comecei a me acostumar com sua ausência depois de passado o primeiro ano de sua morte. Fazer o que, né. A única coisa irremediável dessa vida é ela. E a dor que ela provoca também vai ficando suportável porque aos poucos vamos nos acostumando, muito embora incomode e as vezes até faça sofrer… mas a vida segue.
Ontem durante o jogo não pude deixar de lembrar de tudo isso e das muitas vezes em que primos, tios e conhecidos iam em casa assistir a algum desses jogos históricos que deixaram na memoria tantas imagens registradas. Já nos últimos tempos Seo Hilário teve que mudar de estratégia. A emoção do jogo era tanta que ele preferia sair para passear na rua com a cachorra e depois de ouvir as comemorações ele voltava para casa, e conhecendo o final do jogo, procurava um vídeo tape para assistir. O coração corintiano, sem nenhum engano, já não aguentava tanta emoção. Fiquei imaginando se ele estivesse vivo qual teria sido a rotina lá na Av. Rubens Ferreira Martins, em Peruíbe. Certamente os primos e agregados palmeirenses, santistas e são paulinos seriam brindados com um telefonema sarcástico, como era seu estilo. Ele escreveria suas cartas, tão esperadas, recheadas de piadas e trocadinhos respondendo aos insultos maldosos referentes aos anos de espera por esse feito. E certamente no próximo aniversário ele ganharia tapete, cobertor, toalha de banho, guardanapo, chaveiro, pente e toda espécie de penduricalho com o símbolo de seu time como acontecia todos os anos. Afinal, assim como Elisa, a torcedora símbolo do Corinthians nos anos 70, ele era o torcedor símbolo da família Rubio, tão grande quanto poderia fazer supor os descendentes de seus 10 irmãos e irmãs.
Hoje pela manhã, em meio a uma reunião, fui surpreendida pela foto da Rua Caminito postada no facebook. Sensibilizada desde ontem por tantas lembranças não consegui conter toda a avalanche de memórias que essa foto causou. Ele estava lá, na minha frente, naquela manhã ensolarada de um verano porteño, eternizado em uma canção de Piazolla.
A vida segue.
Tinha me disposto a não me manifestar sobre a vitória do Corinthians porque meus colegas de SPFC poderiam não entender a minha posição, afinal, sou uma profissional do esporte. Tinha me disposto a deixar passar a euforia dos amigos corintianos e a inveja caprichosa dos amigos contrários. E então li o texto do querido amigo Rodrigo Cardoso, um são paulino, jornalista competente e sensível às coisas do mundo, que mais do que registrar um feito qualquer também busca na memória as muitas lembranças de um momento rápido, de um instrumento gasto ou de um ator aflito, com cantaria Zélia Duncan.
Independente do time que torcemos, da empresa que trabalhamos ou da pesquisa que fazemos carregamos em nós todas essas marcas que a família, os amigos, os lugares onde moramos deixam em nós. Dependendo da função e dos papéis sociais que desempenhamos ao longo de nossa trajetória tendemos a nos aproximar ou a distanciar deles, mas nunca nos desligar. Racionalizamos, analisamos, interpretamos e até intervimos em muitas situações com o distanciamento necessário para o desempenho de nossas funções. Mas, de repente, uma foto, um texto nos invade e nos impele a não deixar passar em branco algo que é de fato significativo.
E então, já que me vi nessa condição eu não posso deixar aqui de anunciar… vai que lá de cima ele não ouviu… Larião, teu timão foi campeão.
Por katiarubio
em 5-07-2012, às 16:58
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Comentários
Muito bom!
Por Luciana Tabarini
em 5-07-2012, às 19:59.
Querida Katia,
Primeiro,quero dizer que fiquei imensamente feliz em conhece-la pessoalmente, pois foram alguns minutos muito interessante na minha poder ouvir você falar com tanto prazer do que faz e pensa do esporte como um todo.
Segundo, obrigado por deixar-me participar de tanta emoção que você transpirou ontem ao ver a foto do seu querido Pai postado no FB.
Parabéns pela bela vitória.
Abraços e continue sendo essa mulher maravilhosa que conheci ontem
Francisco Marin
Por Francisco Carlos Marin
em 6-07-2012, às 10:49.
Pois é mirmã. Até tentei assistir os últimos 15 minutos como vc me incentivou, mas o coração corintiano não aguentou e somente após o 2º gol é que extravasei a emoção toda. A Lu, sem a elegância sóbria do papai, não podia gritar a plenos pulmões na varanda da Vila Isabel seu amor incondicional pelo timão, pois estava com febre e uma dor de cabeça que até falar lhe custava, então, afônica, fiz meu papel de mãe e ficamos até as 2 da manhã no telefone tentando acalmar os corações corintianos. Foi então que lembrei da foto do Caminito e só não coloquei uma sua por respeito a seu pedido de manter a privacidade.
Emocionante seu texto. Li agora para a mamãe pois ela tb foi a única numa família de sãopaulinos que optou pelo Coringão.
Imagina a festa que lá do outro lado fizeram o papai, tio Dim e outros. Agora tem um bando de loucos do lado de lá tb, rsrsr
Muito te amamos e nos orgulhamos de vc.
Beijocas
Mª Silvia Rubio
Por Maria Silvia Rubio
em 6-07-2012, às 15:58.
Como é bonito e como é bom ter a honra de conhecer e poder chamar ‘amigos’ uma família tão bela como os Rubio. Katia, saiba que seu texto muito me comoveu. Quantas recordações! Quantos momentos alegres, engraçados, culturais, divertidos você me trouxe à memória! Ah!, esportivos também, especialmente corintianos… Eu não sou corintiana, mas tive muitas oportunidades de curtir a alegria de Seu Hilário pelos resultados do Timão. É, agora a festa se estende lá em cima. E como lá não precisa cuidar de hortas, hortênsias ou orquídeas, a farra pode ir até de manhã…
Por regina mendonça
em 7-07-2012, às 0:29.