Lazer, Educação e Educação Física Escolar: Tensões e Aproximações
Por Gilbert Coutinho Costa (Autor).
Em X EnFEFE - Encontro Fluminense de Educação Física Escolar
Integra
Na primeira metade da década de 1980, duas publicações chamaram a atenção para a crise em que a Educação Física se encontrava e a profunda reformulação que ela necessitava: o livro "O que é Educação Física" (Oliveira, 1983) e "A Educação Física Cuida do Corpo... e ‘Mente" (Medina, 1983). Pautados nas ciências sociais e humanas, ambos inauguraram a chamada análise crítica da Educação Física no Brasil e desencadearam uma série de publicações nos anos que se seguiram. Coincidindo com o início da redemocratização do país, os intelectuais brasileiros trataram de denunciar o papel alienado e alienante que a Educação Física vinha desempenhando na educação brasileira (Costa, 1983; Oliveira, 1985; Taffarel, 1985; Bracht, 1987; Carmo, 1987; Castellani Filho, 1988; Ghiraldelli Junior, 1988.)
mas até hoje, passados mais de duas décadas, ainda não tiveram a competência de implementar na prática, um projeto político pedagógico consistente para a Educação Física. Perdemos o horizonte das ciências sociais e humanas dos Centros das Universidades a que os nossos cursos pertenciam para hoje sermos enquadrados pelo MEC e orgulhosamente reconhecidos pelo CONFEF como "Área da Saúde".
Historicamente o jogo, a brincadeira, as atividades lúdicas têm sido concebidas como oposição ao trabalho, portanto, de não interesse da sociedade produtiva. Também o desmerecimento da Educação Física por esta mesma sociedade e a preferência acentuada dos alunos por ela, em detrimento das demais disciplinas se deve a este mesmo aspecto: as atividades lúdicas desenvolvidas na escola, de uso predominante da Educação Física, se opõem à rotina de trabalho escolar e, por isso, geralmente são preferidas pelos alunos. Tal fenômeno observado por Lovisolo (1995) em escolas do Rio de Janeiro pode ser facilmente encontrado em qualquer região do país. Da mesma forma, o predomínio do que denominamos de monocultura por gênero na Educação Física (meninos só jogam futebol e meninas só jogam queimado), tem se caracterizado como a forma clássica de uma suposta aula de uma pseudo Educação Física. Sem oportunizar o acesso a outras formas de manifestações culturais de movimento, e sem uma intervenção do professor, os alunos maiores impõem uma seletividade que conduz a discriminação e exclusão, descartando aqueles que seriam os maiores beneficiados pela prática da Educação Física na escola: o aluno obeso, o tímido, o pouco coordenado, o menos ágil etc.
De uma forma geral, as aulas de Educação Física na maioria das escolas brasileiras têm se caracterizado pelo laissez-faire, sendo raro alguns professores que dão à disciplina um cunho pedagógico e, mais raro ainda, os que trabalham numa perspectiva crítica. É evidente o descompromisso da maioria absoluta dos professores com uma postura político-pedagógica da Educação e da Educação Física. Pautada numa tendência espontaneísta, voltada para atividades livres características de lazer, ela não tem sido capaz de provocar nos alunos uma reflexão crítica acerca destas práticas, pouco contribuindo para um projeto de educação emancipatória e superadora.
Os argumentos em favor do lazer não são poucos e no âmbito da Educação Física eles estão presentes desde os seus primórdios. A constituição do campo do lazer surgiu na segunda metade do século XIX com a preocupação da ocupação saudável e produtiva do tempo livre. Segundo Marcassa (2004), a recreação atrelada à escola surge como uma forma de organização do lazer. Costa (1983) evidenciou que a recreação na escola objetivava corrigir e desenvolver hábitos voltados para disciplina e domesticação, o que Lenharo (1986) convencionou chamar de "docilização coletiva dos corpos".
Marcassa afirma que "a recreação é prima próxima da Educação Física" (2004, p. 196) e Werneck (2000) e Melo (2003) chegam a dizer que a criação dos primeiros cursos de Educação Física no país se deveu ao desenvolvimento de práticas recreativas que demandavam profissionais especializados.
Amplamente utilizada pela Educação Física até hoje, a recreação se tornou propriedade desta pelo seu caráter técnico-operacional, se consolidando como um saber-instrumento a ser desenvolvido por ela. Como conteúdo ou como atividade, a recreação na Educação Física Escolar tem se valido do prazer para desenvolver "brincadeiras pedagógicas". Este termo vem entre aspas por respeitarmos diversas concepções que definem o caráter espontâneo da brincadeira e afirmam que se ela for dirigida ou tiver outros objetivos que não seja o brincar, ela deixa de ser brincadeira. Talvez aí resida a diferenciação entre brincadeira e recreação, onde uma mesma atividade pode ser classificada como ambas: a primeira praticada pelas crianças no seu tempo livre, com livre organização, sem espaço-tempo determinado para iniciar ou acabar, integrada por qualquer número de participantes que se permita, sem nenhum compromisso que não seja o brincar pelo brincar. Já a segunda, aparece de forma institucionalizada, em espaço-tempo definidos, através de "brincadeiras dirigidas" (utilizamos aspas pela mesma justificativa anterior), conduzidas por um professor na escola ou um instrutor-recreador no clube, colônia de férias etc.
A recreação na Educação Física Escolar sob forma de "brincadeira dirigida" parte do princípio que ela é um conteúdo escolar que deva ser ensinado as crianças. Desta forma, segundo Debortoli, "o objetivo principal ressaltado para essas ‘atividades’ é o de ensinar a brincadeira, mas não necessariamente o de brincar" (2004, p. 22). Inclui o ensino de gestos, regras, comportamentos e brincadeiras novas que as crianças ainda não conhecem, tornando a brincadeira "coisa séria", matéria escolar.
A expressão "brincadeira é coisa séria" freqüentemente é utilizada quando se quer evidenciar a importância da brincadeira na escola como meio de desenvolvimento de conteúdos, habilidades ou valores sociais incompatíveis com o brincar da criança: a brincadeira não se submete a um sistema de regras e objetivos para estruturar sua experiência; quando isso acontece, chamamos de recreação. Este discernimento só é feito pelos adultos que, munidos de seus objetivos educacionais, pedagogizam as brincadeiras e as utilizam não pelos seus objetivos intrínsecos (afetivos, cognitivos e psicomotores, ao mesmo tempo e em uma mesma atividade, conforme evidenciou Costa, 1991), mas como subsidiárias de outras aprendizagens escolares consideradas mais importantes: histórica, geográfica, científica, lingüística, lógico-matemática. Neste sentido, Debortoli exemplifica um fato que qualquer professor de Educação Física já vivenciou na escola:
"Nem sempre a brincadeira do adulto é brincadeira para as crianças: às vezes os adultos criam uma circunstância chamando de brincadeira algo que para as crianças não tem nada de brincadeira. As crianças fazem de tudo para se livrar desta situação: dispersam-se e fazem bagunça; são ameaçadas, por exemplo, de não deixar fazer as brincadeiras seguintes caso não participem da brincadeira proposta. Essa e uma situação extremamente paradoxal, e as crianças chegam a perguntar, no meio da brincadeira, a que horas elas vão poder brincar" (2004, p. 23).
Sendo a Educação Física legalmente constituída como um componente curricular da educação básica e a escola reconhecida como um espaço-tempo de trabalho, cabe refletirmos se deve existir nela espaços de lazer e com quais justificativas. A escolarização em todos os níveis se ocupa de preencher todo o tempo de permanência dos alunos com atividades formativas e informativas visando a formação para o trabalho, onde o lazer e o tempo livre não fazem parte deste universo. A exceção do tempo de intervalo (ainda hoje equivocadamente chamado recreio), não há qualquer alternativa onde os alunos possam manifestar seus desejos e exercer sua livre iniciativa. Fazemos questão de diferenciar recreio de intervalo, pois neste, salvo raríssimas exceções, é um tempo tão curto que mal dá para beber água, ir ao banheiro ou fazer um lanche; tendo que voltar logo em seguida para a sala de aula para fazer atividades importantes.
Diversos autores estabelecem uma íntima relação entre lazer e educação. Dumazedier reconhece o lazer como ação cultural, portanto, mecanismo de educação, e assim o define:
"O lazer é um conjunto de ocupações às quais o indivíduo pode entregar-se de livre vontade, seja para repousar, seja para divertir-se, recrear-se e entreter-se ou, ainda, para desenvolver sua informação ou formação desinteressada, sua participação social voluntária ou sua livre capacidade criadora, após livrar-se ou desembaraçar-se das obrigações profissionais, familiares e sociais" (2004, p. 34).
Para Parker (1978) são objetivos tanto do lazer como da educação desenvolver a personalidade e o enriquecimento pessoal. Requixa (1980) e Marcassa (2004), concebem o lazer como um espaço de educação constante por promover o desenvolvimento pessoal e social.
Quando no título deste ensaio chamamos a atenção para o fato das tensões que podem existir na relação entre lazer e Educação Física, refiro-me àqueles professores da escola que, munidos de um discurso competente, justificam a oferta de atividades lúdicas livres, não dirigidas na aula de Educação Física como possibilidade de lazer. Em escolas sem quadras ou espaço físico, equipamentos e materiais, este discurso se torna ainda mais consistente e legítimo para quem não quer ter o trabalho de criar, improvisar e fazer a aula acontecer.
Como a recreação, os jogos e esportes são elementos da cultura de movimento trabalhados pela Educação Física, a simples participação dos alunos nestas atividades, com qualquer objetivo ou mesmo sem objetivo, tem sido considerada aula de Educação Física. Embora seja uma unanimidade entre os autores que a educação deva ser lúdica, mas fundamentalmente na escola, o lúdico deve ser essencialmente educativo.
Aranha e Martins nos chamam a atenção para o fato de que, "no mundo em que a produção e o consumo são alienados, é difícil evitar que o lazer também não o seja" (1993, p. 18). Neste sentido, desde muito cedo se faz necessário desenvolver na escola, uma atitude crítica que capacite o indivíduo a receber, apreciar, selecionar, rejeitar ou aceitar os estímulos externos, antes de serem incorporados à nossa personalidade, como disse Gaelzer (1979). A escola como um espaço de aprendizagem, crescimento e desenvolvimento das potencialidades humanas, não pode se omitir da tarefa de libertar da alienação através do conhecimento e da informação, sem perder de vista que ela é um segmento da sociedade, da qual o trabalho, a educação a cultura e o lazer fazem parte: porque este último haveria de ficar de fora?
Obs. O Autor prof Gilbert Coutinho Costa (gilbertcosta@terra.com.br) é Coordenador e Professor do Curso de Educação Física da UNIVERSO -Niterói e Professor da Rede Pública Municipal de Itaboraí-RJ, Mestre em Educação (UFF), Pós-Graduado em Psicomotricidade e Pedagogia do Movimento Humano (FAFICLA) e Licenciado em Educação Física (UNIVERSO).
Referências bibliográficas
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- Carmo, Apolônio Abadio do. Educação Física: Uma desordem para manter a ordem. In: Oliveira, Vitor Marinho . (Org.). Fundamentos Pedagógicos: Educação Física. Rio de Janeiro: Ao Livro Técnico, 1987.
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- Costa, Vera Lúcia M. Costa. Prática da Educação Física no 1° Grau. Modelo de Reprodução ou Perspectiva de Transformação?. São Paulo: IBRASA, 1983.
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- Taffarel, Celi Nelza Zülque. Criatividade nas Aulas de Educação Física. Rio de Janeiro: Ao Livro Técnico, 1985.