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Um dia após o falecimento de João Saldanha, Villas-Bôas Corrêa, com seu talento de grande cronista, publica no Jornal do Brasil aquele que talvez seja o maior tributo jornalístico a Saldanha. (Zuca Sardan)
O futebol brasileiro fica devendo a João Saldanha a paixão de toda uma vida consumida no fogo de alma indomável, iluminada por uma das mais lúcidas e prontas inteligências que conheci, a bravura do exemplo e de um tipo de coragem que não media diferenças e invadia os espaços da temeridade. O futebol e o esporte, como o jornalismo especializado, nele tiveram um inovador a revolucionar o estilo de comunicação e crítica de jogo.
No ramo, era bom como cronista de linguagem despojada e a fantástica capacidade de escrever no mais puro coloquial. Segredo do João: falava a língua do povo para tratar de temas populares.
Ótimo na televisão, saltando do comentário do futebol para a crônica do cotidiano. Brilhou nas mesas redondas, com o jeito de topar brigas e dizer as coisas sem papas na língua. Enfrentou sempre duras paradas com o mesmo ímpeto desabusado de quem não media adversários.
Sempre sustentei, entretanto, que João Saldanha foi inigualável no rádio. Esse o seu espaço, onde realmente se espraiava num à vontade de quem está em casa. Durante anos, saltando de emissora, sustentou a posição indisputada de maior comentarista do rádio brasileiro em todos os tempos. O seu ibope podia ser aferido, nos tempos de Maracanã superlotado nas tardes de domingos e nas noites de qualquer dia, por constatação de ouvido: era só prestar atenção que era possível acompanhar, emendando o som dos rádios de pilha, o comentário do João seguindo o rastro de sua voz por todo o estádio, das cadeiras à geral.
Ninguém como ele empunhando microfone. Enxergava além do óbvio, antevia o desenvolvimento do jogo, descia à análise de táticas. O torcedor ouvia o João para entender o que estava vendo. E para concordar, sempre, até nos desencontros da paixão clubística.
Mas, como técnico da seleção de 1970, em trajetória tumultuada pelos impulsos do temperamento, João Saldanha deixou lições eternas e nunca aprendidas. Convidado, aceitou de pronto e no mesmo embalo anunciou a convocação dos 22. Com o gesto audacioso e exemplar de escalar a seleção titular e a reserva.
Foi o que se viu, apesar dos muitos pesares. A seleção de 1970 nasceu pronta, necessitou de retoques para os ajustamentos finais. Quer dizer que uma vez definida pôde começar treinando, buscando entrosamento, acertando táticas. Nunca esqueci o ensinamento: time só existe depois de escalado. O tempo que se gasta antes de definir a escalação é puro desperdício. E quantos títulos atiramos pela janela da indecisão e do tempo perdido nas famosas experiências que não levam a nada?
Há muitos anos que carregava o privilégio da amizade de João Saldanha, cultivada em convivência intercalada pelos compromissos profissionais, sempre preservada pela cordialidade das conversas e até no choque eventual de opiniões. João tinha suas arestas. Mas, o gosto da conversa, do papo saboroso, ponteado de casos recontados com a graça do pitoresco e em jorro inestancável da memória prodigiosa, detalhista, deixa em cada um dos que com ele privaram a saudade que mergulha na dura conformação com o irreparável.
A melhor homenagem que posso prestar ao amigo que morreu como sempre quis, cobrindo a Copa da sua despedida, se resume a esta singela constatação: desde que ficou doente, driblando a morte, surpreendi-me com a estima e o carinho dos humildes. Aqui no JB, na TV Manchete, todos se somavam no mutirão das angústias. Sem distinção. Porque eis um traço do João: não estabelecia diferença. Tratava igualmente a todos que para ele eram realmente iguais.
E isso não se finge nem mistifica. Era, talvez, o melhor do João.
Jornal do Brasil, 13/07/1990