Integra

De que ponto de vista falamos?

Abordar qualquer prática pedagógica desenvolvida nas/pelas escolas requer olhar as relações desta instituição com o sistema social em que estamos inseridos - assim, como percebemos as escolas com o conjunto da sociedade? Alguns autores nos dizem que certas análises possuem uma visão unilateral desta relação: na perspectiva do funcionalismo a escola é considerada redentora, responsável por grandes transformações individuais e sociais - Gomes (1984), nos dá como exemplo deste grupo as idéias educacionais de Émile Durkheim. Em outra perspectiva encontra-se a visão dos autores chamados reprodutivistas: a escola é capaz apenas de reproduzir as determinações sociais, inclusive as desigualdades - Soares (1992) nos diz que Pierre Bourdieu é um dos que assim a vê. No entanto, Gadotti (1988) nos sinaliza que, principalmente a partir do início dos anos 80, percebemos com mais força uma outra forma de análise: a dialética. Nesta concepção a escola pode ser tão contraditória quanto o meio social em que está inserida - sendo capaz de reproduzir e transformar ao mesmo tempo.

Em uma perspectiva de educação emancipadora, em que a complexidade, a contradição e o conflito estão presentes, pesquisar sobre o brincar, o divertimento e o prazer torna-se imprescindível quando queremos entender, em sua plenitude, todo o processo de formação do ser humano - a brincadeira representa a nossa primeira forma de interação com os outros seres e o mundo imediato, antecedendo a linguagem oral e escrita, nos acompanhando em nosso trajeto de existência. Por isso, a sua importância está relacionada com o processo de humanização - na medida em que se tornar humano significa estabelecer uma rede de relações com outros seres humanos, os quais nos auxiliam na constituição de nossa identidade pessoal e, ao mesmo tempo, social.

Considerando o ´lúdico` como jogo, divertimento, prazer, alegria, podendo acontecer em qualquer momento do cotidiano - como nos diz Camargo (1998) -, a abordagem sobre o lúdico pode inserir-se de forma importante e singular em uma proposta educativa que busque consolidar a capacidade de ser sujeito presente em cada um, reconhecendo e respeitando suas especificidades biológicas e fisiológicas, assim como a história, cultura e necessidades do contexto em que este ser em formação está inserido. Elementos para pensar as crianças, mas também os adolescentes, jovens e adultos - pois, além da dimensão lúdica ser um dos componentes formadores de um ser humano integral, os momentos de diversão, lazer e prazer são negados para uma determinada parcela da população que não tem tempo liberado do trabalho e das obrigações diárias de sobrevivência.

Educação básica e ensino superior

O que significa garantir o direito à educação? Aprender precocemente os conteúdos escolares? Sendo jovem e adulto, considerá-lo uma obrigação, pois o ´tempo de aprender passou`? Como fica o direito ao lúdico, à expressão livre e criadora, à curiosidade, ao desejo de aprender mais, cada vez mais?

Pensando a formação de professores isoladamente? Apenas os elementos específicos da sua área de formação? Talvez, por isso muitos acreditam e afirmam como certo, predominante, principal contribuição da Educação Física Escolar, a formação de corpos saudáveis, robustos, disciplinados...

Em se tratando de Educação Infantil, tem menos de um século a criação e desenvolvimento de locais especializados em cuidar de crianças entre zero e seis anos que possuíssem famílias, ou seja, que não fossem abandonadas ou órfãs. A organização pela redemocratização da sociedade brasileira nos anos 80 - o qual inclui o movimento de democratização da escola pública - possibilita, na Constituição de 1988, o reconhecimento da educação em creches e pré-escolas como um direito da criança e um dever do Estado.

Observando as séries iniciais do ensino fundamental, encontramos o predomínio da organização seriada, tratamento disciplinar dos conteúdos escolares, pouca ênfase no jogo e na motricidade. Ou, em outro lado da mesma moeda, impera-se a perspectiva propedêutica - como a psicomotricidade, que ganha espaço em função de objetivar preparar as crianças para o processo de alfabetização ou, com a perspectiva de corrigir possíveis distúrbios motores (os quais também poderiam comprometer a aprendizagem da leitura e da escrita).

Dentro deste quadro, também existem experiências que procuram refletir sobre o corpo em movimento, sem fragmentar nosso ser, sem negar as possibilidades da beleza, da criação, do desejo como parte do processo ensino-aprendizagem desenvolvido pela instituição escolar, questionando o ideal de aluno ser aquele que não fala, não sai do lugar que lhe foi designado como seu... Principalmente se o prazer e o divertimento forem motivadores do ´agito`!

Neste processo, é de fundamental importância pensarmos sobre a atuação do educador - na medida em que o desenvolvimento de uma proposta pedagógica requer comprometimento profissional crítico aliado à competência técnica, à visão de coletividade, ao respeito mútuo. Construindo, assim, base para uma ação pedagógica efetiva, a qual pode tornar-se, ao longo do seu desdobramento, uma intervenção política sócio-cultural.

Pensar a formação do profissional da Educação Física em diálogo com a formação dos profissionais da Educação Infantil e séries iniciais do Ensino Fundamental, pode representar um dos espaços em que os educadores reflitam sobre o processo pedagógico, coletivo, que pretendem auxiliar a construir e desenvolver nestes níveis de ensino - os quais representam o máximo de escolarização da maioria da população brasileira.

Compreendendo a ludicidade enquanto manifestação cultural, possuindo os significados do contexto sócio-histórico em que se constitui e, ao mesmo tempo, auxilia a constituir, surgem algumas indagações: como é codificada a realidade conhecida - seja através de palavras, práticas costumeiras e rituais, sua arte, religião, esportes e jogos, tecnologia, ciência, política, formas de brincar e lazer, etc?

Ao querer entender o lúdico em sua realidade histórica, cultural e, portanto, social, percebemos o quanto não é tratado da mesma forma por todas as pessoas, grupos sociais? Como os conteúdos a serem trabalhados na escola podem ter associação com o fenômeno lúdico?

Na tentativa de construir possíveis respostas para estas perguntas, as atividades lúdicas deixam de ter um caráter apenas de simples "passatempo" e passam a ter um caráter histórico e social. Neste processo, os professores/as podem vir a reelaborar o conceito predominante, na sociedade e na escola, sobre a ludicidade.

Associando estas idéias com o mundo da cultura, as diversas formas de ludicidade tornam-se expressões, criações de realidades vividas, historicamente criadas e socialmente desenvolvidas - possíveis, portanto, de habitar o interior das escolas, como elementos constituintes do projeto pedagógico desenvolvido. Existe diferença entre uma política do lazer e uma política cultural? Dumazedier (1975), diz que sociologicamente não, pois "toda cultura é um apanhado do conjunto das atividades quotidianas" (p. 53). Ao questionarmos a visão de mundo hegemônica, buscamos a superação da maneira como o lúdico é predominantemente percebido: como uma atividade banal, sem vínculos com a produção material da sociedade.

Identificamos estas noções quando avaliamos como "nossos espaços arquitetônicos e urbanos são organizados na perspectiva da sociedade de consumo." (SENAC, 1998, p. 29). À quem cabe a tarefa de educar para a reflexão da relação trabalho, recreação e lazer, exercitando a capacidade crítica, assim como vivências lúdicas e recreativas? Acreditamos que é nesse momento que o trabalho coletivo, desenvolvido nos cotidianos escolares, poderá potencializar a contribuição da ludicidade nos processos de socialização e de aprendizagem. Ao buscarmos identificar aproximações da temática com o trabalho realizado pelos professores da Educação Física com os da Educação Infantil e séries iniciais do Ensino Fundamental, também questionamos os quatro preconceitos sobre o lúdico, apontados por Camargo (1998): diversão é preocupação de ricos; trabalho é mais importante do que o lúdico; a diversão atrapalha o trabalho, o dever; trabalhar é difícil, divertir-se é fácil.

Pequena contribuição, à guisa de encaminhamentos

Desejando contribuir com uma proposta de educação em que o corpo e a ludicidade estejam incluídos, trazemos três pontos para refletir com àqueles que pensam o trabalho do profissional da Educação Física Escolar em parceria com os profissionais da Educação Infantil e das séries iniciais do Ensino Fundamental: como linguagem; como aprendizado e; como um dos grandes elementos do prazer, da ludicidade.

Afirmando a idéia de educar / formar com uma perspectiva crítica, em um processo sócio-interativo, compreendendo a existência da reciprocidade na relação entre os homens com o meio sócio-cultural, os diversos profissionais da educação, as diferentes áreas do conhecimento podem interagir neste processo, com as múltiplas referências que os formam. Assim, inclui-se o movimento humano, o qual podemos compreender enquanto manifestação cultural, possuindo os significados do contexto sócio-histórico em que se constitui e, ao mesmo tempo, auxilia a constituir.

O Coletivo de Autores (1992) caracteriza as diversas formas de danças, lutas, jogos, etc, como produção humana e, portanto, cultural - podendo ter a sua história e contextos evidenciados. O ser humano é um ser que aprende por sobrevivência e por curiosidade: tudo nos é necessário aprender - e com que fascínio as crianças pequenas olham o mundo ao seu redor! Não nascemos, como alguns insetos, com todas as informações necessárias à nossa existência, assim, aprendemos a comer, andar, brincar, falar o idioma materno, etc, etc, etc, em um processo contínuo de aprendizagem...

Seguindo autores, como Vygotsky e Wallon, o desenvolvimento cognitivo é um processo sócio-histórico, sendo constituído em nichos culturais, os quais pertencem a uma sociedade mais ampla. Por isto, nos é importante pensarmos nos ambientes de aprendizagem, nos recursos e intercâmbios como recursos de aprendizagem. Os tempos, espaços, atividades variadas nos trazem elementos de diferentes práticas sociais, com diversas habilidades e significados. Assim, através de diversas formas, aprendemos a perceber nossas necessidades, ampliamos as formas de relação com as pessoas e o mundo.

O movimento como linguagem é uma das formas de expressão da cultura - nossa primeira forma de comunicação com os outros seres e o mundo imediato não se dá através do movimento e da expressão corporal? Antecedendo a linguagem oral e escrita, nos acompanhando em nosso trajeto de existência?

Assim, a abordagem sobre o movimento e a expressão corporal pode inserir-se, de maneira importante e singular, em uma proposta educativa, contribuindo com a capacidade de ser sujeito presente em cada um - estando as ações educativas pautadas no dinamismo e intensidade peculiar ao cidadão que hoje o educando é -, reconhecendo e respeitando as suas especificidades biológicas e fisiológicas; a história, cultura e necessidades do contexto em que está inserido e; ainda, procurando ultrapassar o pensamento linear e propedêutico que elege como objetivo principal da educação a "preparação para"...

Por quê restringir as nossas diversas formas de comunicação e interação humana? Talvez por considerarmos as linguagens, assim como o próprio conhecimento, como estruturas hierarquizadas, cadeias linearmente encadeadas. Em uma outra perspectiva, podem ser compreendidos como uma rede de significações, capaz de múltiplas conexões.

Compreendemos e inserimos, em nossas propostas educativas, a imaginação, a criação e o prazer? Pesquisar, procurar entender melhor sobre o brincar, o divertimento e o prazer torna-se imprescindível quando queremos entender, em sua plenitude, todo o processo de formação do ser humano. Encontramos uma dimensão clara disto quando percebemos que a brincadeira representa a nossa primeira prática social elaborada, forma de inserção, possibilidade de representação do vivido.

Porém, paulatinamente menosprezamos, desprezamos o divertimento e o prazer como parte de nosso ser integral. Separamos o sério da fantasia, da imaginação, banalizamos as atividades lúdicas e as dissociamos do que é produzido socialmente. Aprendemos que não podemos "perder tempo" porque "tempo é dinheiro". O que dizer dos jovens e adultos que, em função das desigualdades e da necessidade de sobrevivência não possuem tempo liberado do trabalho? Seja para sua formação permanente, para estar com a família, para a convivência com os amigos ou, simplesmente para apreciar o que o encanta?

Muitas vezes valorizamos e incentivamos brincadeiras entre as crianças, determinamos o momento e o local para isto e, não compreendemos quando decidimos o momento de parar, mas a criança não obedece ou, quer repetir uma mesma brincadeira. Assim, ao esperar que ela compreenda como a nossa maneira de adulto, não continuamos a pensá-la como um "adulto em miniatura"?.

Todo este processo não é de responsabilidade de um só profissional, na medida em que percebemos a complexidade com o universo educacional e social - por isso, os professores de Educação Física, Educação Infantil e séries iniciais do Ensino Fundamental podem ser verdadeiros parceiros, através de trabalho comum, propiciando aprendizagens significativas, com as quais interagimos por completo: olho no olho, face na face, sentindo, descrevendo, discutindo, argumentando, lançando mãos de todas as habilidades que possuímos... Assim, este movimento pode representar uma das formas possíveis de concretizar um cidadão, ser humano mais pleno, sensibilizado para os problemas e as realizações deste século e milênio que começamos a construir...


Obs.
A autora, professora Ms. Rosa Malena de Araújo Carvalho (rosamalena@rionet.com.br) é do ISERJ / BENNETT / UERJ e doutoranda na UERJ

Referências

  • Camargo, Luis. Educação para o lazer. São Paulo: Moderna, 1998.
  • De Marco (Org). Pensando a Educação Motora. Campinas: Papirus, 1995.
  • Coletivo de Autores. Metodologia do Ensino da Educação Física. Campinas: Papirus, 1992.
  • Dumazedier, Joffre. Sociologia empírica do lazer. São Paulo, Perspectiva, 1975.
  • Gadotti, Moacir. Pensamento Pedagógico Brasileiro. 2a ed. São Paulo: Ática, 1988.
  • Gomes, Cândido. Enfoques Teóricos em Sociologia da Educação. Rio de Janeiro: Fórum Educacional, 1984, v. 8, n. 2.
  • Senac, DN. Lazer e Recreação. Rio de Janeiro: SENAC Nacional, 1980.
  • Soares, Magda. As Muitas Facetas da Alfabetização. São Paulo: Cadernos de Pesquisa, 1992, n. 52.