Integra

É incrível como a memória se assemelha a um mecanismo mágico. Penso isso por várias razões.

A primeira delas é de ordem absolutamente pessoal. Minha avó materna, Maria, irá comemorar 101 anos de vida em maio. Não bastassem tantos anos ela ainda celebra a vida, e sua capacidade cognitiva e sua memória são de fazer inveja a muito jovem desse mundo contemporâneo. Imaginem só alguém que nasceu em 1913. Ou seja, ela vivenciou a 1ª Grande Guerra, muito embora fosse apenas uma criança pequena. Mas, danada que só ela, consegue lembrar coisas de uma infância muito tenra, dos brinquedos e brincadeiras, comidas e coisas de um Brasil da República Velha!!! Depois foi o período entre guerras, e para nós, um fato marcante que foi a Revolução Constitucionalista. Desse episódio ela lembra de coisas com requintes de detalhes, como estar em Itabira e as forças revolucionárias passarem por lá, tiros, trincheiras entre outras coisas. E depois veio a 2ª Guerra, e ela já casada com meu avô, lembra dele trabalhando na base aérea de Santa Cruz e da convivência com os pilotos americanos que estavam por aqui tentando defender o mundo do nazismo. Foi com eles que aprendemos a comer ovos com bacon ou costeletas no café da manhã. E ela fazia isso como ninguém! E assim vai até chegar à memória presente. Não escapa nenhum neto ou bisneto e ai de quem disser que em breve ela será trisa. O que lhe causa tristeza é ver que todos os falecimentos recentes são de pessoas mais novas que ela. E então vem a máxima: “acho que Deus se esqueceu de mim”, porém em nada isso significa que ela acredite que sua hora já chegou! E a memória viva que ela é torna-se uma tênue linha que hoje a prende à vida. Para ela a memória é a própria razão de viver.

A segunda razão para essa conjectura sobre memória é que estou envolvida com um projeto de exposição junto ao SESC Itaquera a respeito de uma figura lendária do basquetebol brasileiro, o que traz para o presente muitos feitos gloriosos do esporte brasileiro. O homenageado dessa exposição será Rosa Branca. Bicampeão mundial, duas medalhas olímpicas, convite para jogar no Harlem Globetrotters, muitos, mas muitos títulos mesmo, tanto paulistas, como brasileiros e mundiais. Não bastasse isso era alguém do bem. Depois de atleta tornou-se professor, instrutor, técnico, um verdadeiro mestre. Sua memória está indissociavelmente ligada a uma fase em que o basquete brasileiro era a segunda modalidade mais popular do país, perdendo apenas para o futebol, óbvio. Não há quem não se lembre disso com orgulho, afinal, estar entre os grandes por mérito é fato para ser lembrado em programa de tevê, em aula na escola e porque não nos livros informativos ou didáticos. É assim que se transforma de fato um país: mantendo vivas as razões porque se tem orgulho da terra em que se nasce. E é por isso que a memória dessa modalidade e daquele momento parece mágica, porque a realidade atual está tão distante disso que faz o passado se assemelhar a uma ficção.

Durante um dia dessa semana fui interpelada logo cedo por uma mensagem indignada de um membro do Grupo de Estudos Olímpicos. Ricardo Richter, embora estudioso do futebol, não deixa escapar as mazelas de outras modalidades assoladas pela má gestão. Afinal, fazer doutorado na Alemanha significa ter olhar clínico, quase cirúrgico, sobre questões que aos olhos de outros passariam despercebidas. Recebi dele a notícia de que a seleção brasileira fora “convidada” a participar de campeonato mundial pela Confederação Internacional de Basquetebol.

Não vejo problema nenhum em ser lembrado para receber honrarias ou homenagens, mas não parece ser esse o caso. Esse convite esconde mais uma daquelas mazelas que colocam em risco os valores olímpicos.

O convite foi feito em função de quatro vagas que sobraram dos campeonatos classificatórios, ou seja, espaço privilegiado para que as seleções nacionais demonstrassem suas habilidades, competências, resultados de políticas públicas e institucionais para o desenvolvimento do esporte em diferentes países. O Brasil teve sua chance e isso aconteceu na Copa América, realizada em 2013, e para desgosto geral da nação perdeu todos os jogos que disputou. Isso mesmo. Perdeu todos os jogos do torneio e ficou sem a chance de disputar o campeonato mundial, 50 anos depois de ter sido bicampeão mundial. Como é cruel ter boa memória nessas horas…

Mas, voltando ao convite. Como em outras esferas da sociedade há eventos e eventos, convites e convites. Calma, isso não é um exercício tautológico. Faço esse esforço apenas para reforçar que quando se convida alguém para alguma coisa isso significa um gesto de desprendimento em função de afetividade ou interesse. Convidam-se pessoas para jantar, para festas, para estudar ou até para trabalhar. E isso decorre de interesses ou do prazer de estar junto. Há convites, porém, declaradamente mercantis, cuja finalidade é gerar negócios ou renda. São as tais ocasiões em que se faz um banquete para arrecadar fundos para alguma coisa pagando para isso quantias que ressarciriam não apenas as despesas de uma pessoa, mas de famílias inteiras. Mas, desde o princípio se tinha clareza que a finalidade do convite era arrecadar fundos sabe-se lá para o quê.

É a situação que cerca o “convite” ao time brasileiro. Depois de pagar a bagatela de 820 mil euros, exatamente euros, o que equivale a 2,6 milhões de reais, a seleção que não se classificou por mérito irá agora ao campeonato mundial. Na contramão dessa atitude a Itália, Alemanha e China declinaram do convite por discordarem dessa política demeritória que pouco ou nada contribui para o desenvolvimento do esporte. Não vou entrar aqui no mérito de como esse dinheiro poderia ser mais bem gasto na preparação de times para conquistar títulos e vagas pela qualidade de sua performance.

E é aqui que desejo então resgatar a memória e associá-la ao espírito olímpico.

O que transformou a atividade atlética, chamada no Século XIX de esportiva, em um ritual foi seu caráter agonístico, a busca pelo limite das capacidades humanas – tanto físicas quanto emocionais –, fincadas na excelência, um dos grandes valores olímpicos. Quando o esporte olímpico era então um território de demonstração de habilidades não havia qualquer divergência em relação a isso. As grandes competições, o pódio, as medalhas eram reservados aos merecedores dessas posições, condição essa destinada aos que efetivamente se aplicaram para chegar a esse lugar, abdicaram de tantas outras coisas, optaram por fazer isso e não aquilo.

Entretanto, o esporte mudou. A agonística passou a ser uma palavra esquisita que mais parece agonia, uma “coisa” que causa medo porque pressupõe excesso de esforço ou pela proximidade com o fim de algo.

De fato, com as estratégias mercadológicas e políticas atuais que distanciam o esporte do mérito e o aproximam cada vez mais de um grande negócio é difícil reconhece-lo como uma atividade de busca do limite e impregnada de valores olímpicos. Afinal, se a excelência pode ser substituída por uma bela soma em dinheiro para que tanto esforço, tanta dedicação, tanta transpiração? Isso tudo fica parecendo cada vez mais coisa do passado, fora de moda. Se posso comprar, para que construir?

Quando ouço o depoimento de Rosa Branca para o projeto “Memórias Olímpicas por Atletas Olímpicos Brasileiros” vejo ali o que de fato levou aquele grupo a um bicampeonato mundial. Uma política esportiva que privilegiava o mérito, tanto de atletas como da comissão técnica. Uma comissão técnica focada na busca de um objetivo. Atletas apaixonados pelo que faziam a ponto de abrir mão de itens importantes à vida como a família, amigos, estudos e carreira profissional.

Não sou saudosista e tenho plena consciência das transformações pelas quais o esporte passou nos últimos 40 anos. No entanto, se então tantas coisas mudaram radicalmente retirando dele a sua essência fundamental que é a busca pela excelência, creio ter chegada a hora de fazer ajustes em sua rota, começando pela alteração de sua denominação. Esse esporte já não é mais o esporte. Pode ser um espetáculo qualquer que muito em breve poderá ter seu resultado definido pelo público pagante, ou como têm sido as telenovelas, para satisfazer não ao interesse mobilizador dos grandes feitos humanos, a agonística, mas para mediar os interesses mesquinhos e egoístas mobilizados pelo valor do dinheiro.

2.2.2114