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O rei do abacaxi

          Tive lá minhas dificuldades quando, na Universidade, o professor mandou que eu aprendesse sobre Adam Smith e as regras gerais do capitalismo. A lógica era compreensível, mas aplicada a seres humanos, complicava. A tese da “mão invisível”, com suas idéias sobre interesses comuns não batiam com o que a gente via na prática, esse mundo de gente passando fome, injustiça, miséria. Por outro lado, o mercado, para Adam Smith, distribui oportunidades de vida; ou seja, o mercado decide sobre a vida e a morte de cada pessoa. Os salários deveriam se localizar sempre abaixo da linha de subsistência. Uma parte da população seria eliminada por isso. Não preciso dizer que minhas notas, nesse quesito eram um desastre, especialmente quando, ao final das descrições, eu colocava minha opinião pessoal; eu achava que o bem comum não tinha chances e o professor achava que sim.

          Até que um dia me deparei com um relato de um sujeito que esclareceu, mais que qualquer teoria que eu tenha lido, as teses de Adam Smith. Reparto-o com vocês, deixando ao autor a tarefa de contar sua própria história.

          “Onde eu morava, todo mundo vivia de vender abacaxi na beira da rodovia. A terra era horrível; quem a visse juraria que ali planta nenhuma cresceria. Era um areião escuro, seco, ruim até de pisar. Mas, se a gente plantasse abacaxis, eles cresciam como em nenhum outro lugar. Eram grandes, amarelos, suculentos, doces. Cada morador tinha um pedacinho de terra e quando os abacaxis amadureciam, bastava arrancá-los e vendê-los na beira da rodovia ou mandar para as feiras das cidades em volta. Assim fez meu avô, meu pai e, mais recentemente, eu. Ninguém ficava rico, mas dava para os gastos. Até que uma manhã acordei com aquela idéia: e se eu fizesse alguma coisa diferente para vender meus abacaxis? Todo mundo colocava os abacaxis  uns em cima dos outros na beira da rodovia e os vendia assim, inteiros. Eu poderia mudar isso. Pronto: no dia seguinte ofereci abacaxis inteiros, descascados, em pedaços grandes, em pedaços pequenos e suco de abacaxi. Foi um sucesso; vendi mais que meus vizinhos. Gostei, fui adiante, me informei. Olha o que descobri: minha mãe e minha vó sabiam várias receitas de doces de abacaxi, minhas tias também. E tinha um livro velho lá em casa com uma seção de coisas que se podiam fazer com abacaxi. E na pequena biblioteca da nossa cidadezinha tinha livros de receitas, e eu li tudo. Uma pequena lista do que descobri em apenas uma semana:

- delícia de abacaxi

- abacaxi no espeto, com canela e açúcar

- abacaxi em calda

- pavê de abacaxi

- bolo de abacaxi

- suco de abacaxi com hortelã

- salada de abacaxi

- mousse de abacaxi

- torta de abacaxi

- geléia de abacaxi

- sorvete de abacaxi

          Isso tudo só em uma semana de pesquisa. A cada semana eu oferecia alguma coisa nova, e criei até uma rotina. Na segunda-feira a especialidade, além do abacaxi fresco, eram a delícia de abacaxi e o pavê. Na terça o suco com hortelã e o mousse. No sábado eu deixava o abacaxi grelhando na brasa. Havia fila em certos momentos na minha barraquinha. Os fregueses minguavam nos vizinhos. Comprei a tendinha do vizinho mais próximo, um concorrente a menos.

          Quando eu já tinha me tornado o maior vendedor de abacaxis da região, inventei de fazer uns arranjos mais ousados: com arte e paciência, eu descascava o abacaxi e esculpia figuras. Passei a vender abacaxi em forma de leão, de gato, de cachorro, de urso. Os gatinhos eram os favoritos, por causa das crianças. Um abacaxi fresco custava um real; esculpido custava cinco. Isso começou a eliminar de vez a concorrência. Mais cinco vizinhos me procuraram para vender as tendas; comprei-as, mas mantive os antigos donos como empregados meus, vendendo meus produtos nas suas ex-tendas. Eles tinham seus empregados, mas não pude mantê-los para não onerar minha produção. Um utilitário Chevrolet fazia o transporte de abacaxis para todas as tendas que agora eram minhas. Meus empregados recebiam salários mínimos, nunca com atraso.

          Hoje monopolizo o comércio de abacaxis na região. Comprei todas as tendas, eliminei as deficitárias, fiz todos os cálculos e tenho pontos de venda exatamente de acordo com a demanda. Quando chega o verão, aumento o número de pontos de venda, quando chega o inverno, diminuo. No momento, testo minha última invenção: esculpo, na frente do freguês, seu próprio rosto em abacaxi. Caríssimo, de cinqüenta e cem reais, dependendo dos detalhes, mas é pela arte. Não falta quem queira. O interessado leva para casa a escultura em uma embalagem especial de isopor e a guarda no freezer. Já estou treinando alguns auxiliares nas esculturas para ampliar minha renda.

          Quem passar por minha tenda nos finais da tarde, verá uma estranha e longa fila de pessoas pacientemente aguardando. Recebem as sobras de abacaxis e derivados não vendidos. São ex-donos de tendas da região e seus antigos empregados. Sirvo a todos, de acordo com meus princípios cristãos de fraternidade. Certamente, cabe-lhes mais, a cada dia, do que o que conseguiriam por conta própria caso mantivessem suas próprias tendas.”

          Como dizia um amigo meu: o capitalismo está mesmo na essência de cada ser humano.

13/2/2009

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