Integra

Ao ler um livro quase sempre tenho a impressão de estar num diálogo muito próximo com quem o escreveu. Página a página, entre momentos de devaneio, atenho-me demoradamente em alguns parágrafos. Concordo e discordo, estruturo perguntas que ali não couberam por falta de tempo ou de coerência talvez; o motivo real só pode mesmo ser conhecido por quem teve o fluxo da escrita preenchendo as páginas.

Acredito que seja essa a grande experiência da leitura: instigar, revelar o desconhecido e impressionar ao fazer pensar o nunca antes pensado. Às vezes me imagino num encontro com a autoria do texto, no qual posso dialogar, perguntar e ouvir a resposta com atenção e sem pressa. No momento, três pessoas persistem nessa vivência fantasiosa: a filósofa Judith Butler com sua lucidez e sarcasmo quando reflete sobre as normas sociais, a também filósofa Angela Davis e sua infinita esperança mesmo diante de cenários caóticos, e Michel Foucault - mais um filósofo - com suas indagações inquietantes, as quais pareciam desconcertar quem topasse um debate cara a cara (segue aqui a recomendação de um de seus debates, Foucault versus Chomsky sobre a Natureza Humana: https://www.youtube.com/watch?v=9_HaHtcKG9c). E sim, sempre peço desculpas à minha consciência por raramente comparecer a esses encontros uma figura brasileira.

Por ora, gostaria de comentar sobre o pensamento de Foucault e de como este pode ser aplicado às questões de gênero no esporte olímpico (tema ao qual me dedico no processo de doutorado). Sem dúvida, a prática que mais caracterizou o trabalho desse autor foi a descoberta de pontos de inflexão no decurso da história. Era de seu interesse compreender as mais variadas formas de controle social, e, com isso, dedicou-se ao estudo da história da loucura, da prisão, das sexualidades, etc. Seguiu apontando e discutindo técnicas e discursos especializados capazes de transformar comportamentos sociais considerados banais até então, em delito, imoralidade, desvio. Enquanto questionador desconfiado, vasculhava as entranhas do poder até compreender como certas verdades científicas se produziam e se sobrepunham às ideias anteriores e quais efeitos estas provocavam. Foucault, portanto, autoriza quem o lê ao exercício curioso da investigação, gerando uma necessidade latente de compreensão histórica dos assuntos humanos que abdica da frase: “isso é assim desde que o mundo é mundo”.

A questão que pretendo colocar aqui é de como as ideias de Foucault podem ser produtivas às pesquisas sobre gênero e esporte. Em minha pesquisa, aproveito-me desse esforço de historização proposto pelo autor para compreender como se construiu a máxima da superioridade masculina no esporte olímpico que até hoje resulta num quadro de segregação que separa mulheres e homens nas competições, e, restringe - quando não proíbe - a entrada de pessoas trans e intersexo nesse campo de atuação.

A princípio, esse exercício de reconstrução histórica dedicado ao entendimento e desconstrução da afirmação categórica das disparidades de rendimento entre mulheres e homens no esporte parece uma missão improvável. A Educação Física enquanto ciência que pensa o esporte é parte das ciências biológicas, e, com isso, geralmente encontra-se em meio a noções estáticas sobre o corpo humano. Nesse sentido, a única leitura possível se torna a de dois corpos absolutos e universais, um de mulher, outro de homem. O fato é que essa estreita consideração acaba ignorando a pluralidade dos gêneros e a própria multiplicidade biológica dos corpos.

Diferentemente, um olhar histórico sobre as questões de gênero no esporte olímpico revela que a participação das mulheres quando não foi proibida por lei ou por acenos recriminatórios, permaneceu sob um incentivo tímido e secundário. Mais que isso, pessoas trans e intersexo foram excluídas sem pudor - e continuam sendo - sob o aval do discurso da vantagem injusta. Portanto, o que se vê ao remexer as páginas do passado é uma dinâmica de contenção dos corpos não-masculinos na arena olímpica sustentada pela lógica da superioridade x inferioridade; lógica essa que garante a condição hierárquica suprema à categoria masculina e desloca à periferia tudo que dela escapa.

Sintetizando, talvez a maior lição que Foucault nos deixou foi mesmo a importância da indagação dos saberes, a percepção de como estes são socialmente construídos sem neutralidade e, portanto, inseridos no jogo de interesses de quem os desenha e domina. Assim, o trabalho de escavação histórico continua crucial pelo fato de expor outros pontos de vista que não somente o da história oficial, pois como diria a prêmio Nobel Svetlana Aleksiévitch: “Ainda vivemos na história, e não no cosmos”.