Resumo

As inquietudes existenciais levam-me a beber constantemente na fonte judaico-cristã, apoiado nas muletas da filosofia grega. É esta a matriz da nossa cultura ocidental; devido a ela, ao contrário do que a ignorância e a demagogia de alguns fantoches políticos propalam, somos gregos, judeus, cristãos e até islâmicos. Este facto contém várias implicações; hoje atenho-me a algumas, pela sua pertinência na abordagem da política da austeridade.

1. Como se sabe, as religiões abraâmicas e do livro (judaísmo, cristianismo, islamismo) atribuem subida relevância à questão do 'último dia', o da prestação de contas pelas obras realizadas durante a existência. Esse dia não é somente o último; o julgamento acontece todos os dias. Sobre nós pesa a obrigação de submeter, diariamente, a nossa conduta ao tribunal da consciência. O exame deste tribunal estende-se a tudo e a toda a gente, às atividades espirituais e materiais, à esfera privada e à pública. A tal ponto que a história da nossa vida, do mundo e da civilização é a do seu julgamento.

No fundo, cada um tem que superar os impulsos animais e responder pelo que faz da sua vida, pelo modo como se comporta, como persegue os seus interesses, porém sem descurar as consequências que resultam dos nossos atos para os outros, visando o alcance do maior bem possível para todos. O resultado desse exame determina a condição futura e eterna: o mais alto benefício ou o mais duro castigo.

Mais do que enfatizar o prémio pelo bem feito ou a condenação pelo mal praticado, a doutrina convoca-nos para caminharmos pela senda correta, pela via da justiça e retidão, mesmo que seja com tropeços e quedas. No dizer de Santo Agostinho (354-430), mais vale andar pelo caminho mancando do que correr fora dele.

Somos intimados, por códigos, mandamentos, mitos, narrativas, parábolas e tábuas de lei, a ser inimigos ativos e declarados da injustiça, tanto da que cometemos como da que observamos, a não assistirmos calados, indiferentes e passivos ao mal que, atingindo os outros, a todos afeta e compromete. No dizer de Platão (428 ou 427 – 348 ou 347 a.C.), a eliminação da injustiça pressupõe que os não penalizados por ela se indignem com veemência igual ou superior à dos injustiçados.

Esta exigência perpassa as normas religiosas, o que é bem evidenciado num preceito do islamismo que postula o seguinte: "Quem vê uma injustiça deve remediá-la com as próprias mãos; se não o pode fazer desse jeito, deve condená-la com a língua, isto é, com a palavra, ou, no mínimo, deve reprová-la com o coração."

Esta última modalidade de reprovação da injustiça é vista como a mais débil e afastada da fé. O mesmo é dizer, a maneira ajustada para combater a injustiça são, em primeiro lugar, os atos; e, em segundo lugar, as palavras.1

Aprendemos no catecismo, peca-se tanto por ações como por omissões, pelo que fazemos e deixamos de fazer, de proclamar e dizer. Ora o pecado da omissão cívica, da demissão de denunciar a perversidade das políticas e os governantes impostores, inscreve-se no rol das contas que somos chamados a prestar perante o tribunal da consciência, quer o individual, quer o da Humanidade.2

2. Há muitas lições a tirar dos ensinamentos bíblicos para a análise da conjuntura. Por exemplo, revisitar o episódio da Torre de Babel reveste-se hoje da máxima urgência. Não é aceitável impor às pessoas uma linguagem e um pensamento únicos, como vêm fazendo os prepotentes mandantes e paus-mandados do sistema da globalização financeira e neoliberal, que desprezam e rejeitam visões diferentes sobre a vida e a sociedade, e sobre o método de enfrentar os problemas com que nos debatemos.

Estamos a assistir à invasão e anexação de todas as instituições, inclusive de igrejas e da universidade, por uma mundanidade decadente e execrável que as conforma a empresas de negócios pouco ou nada escrupulosos e lhes destrói a idiossincrasia e missão. Eis algo muito grave! As instituições, responsáveis pela formação de um povo, carecem de autonomia e liberdade de ação e decisão nas diversas áreas do seu desempenho, para se pronunciarem criticamente sobre a realidade quotidiana.

Os construtores da soberba torre de marfim da austeridade antepõem o projeto às pessoas. Não os incomoda que estas caiam dos andaimes; se caírem, basta abatê-las como um mero número nas folhas de Excel. Dói-lhes, sim e muito, que se perca tempo ou inutilize algum material na construção do monstruoso edifício. O êxito deste é mais importante do que o remedeio e a solução das fragilidades humanas; o avolumar da miséria conta muito pouco ou nada, não merecendo que se gastem energias com a tentativa da sua eliminação ou, sequer, redução.

Precisamos, pois, de reavivar e valorizar a diversidade de linguagens e o pensamento divergente, porque a variedade é enriquecedora das perspetivas e olhares; e faz-nos muita falta para questionar a 'tecnização' do mundo, prenunciada pelo filósofo alemão Martin Heidegger (1889-1976). Não basta que as coisas sejam tecnicamente bem concebidas e elaboradas; é indispensável que sejam eticamente aceitáveis, à luz dos 'imperativos' morais, estabelecidos por outro pensador germânico de nome Immanuel Kant (1724-1804), que não concedem à nossa consciência o remanso da sonolência.

E precisamos também de romper com o credo das receitas e soluções acabadas, formatadas para aplicação em toda a parte. Por um lado, qualquer verdade imitada deixa de ser verdade, quando transposta sem considerar as circunstâncias do contexto e lugar. Por outro, a vida, tal como a sociedade, não é uma situação estática; concretiza-se num transcurso dinâmico.

3. Desde eras imemoriais, o ser humano é concebido como carente de atenção e cuidado. Epimeteu distraiu-se ao inventar, por incumbência de Zeus, os seres que povoam o mundo; deixou para o final o sujeito humano e este surgiu nu e desprovido de tudo para conseguir sobreviver e fazer face às exigências da existência. Arrependido pediu ajuda ao seu irmão Prometeu; este valeu-lhe, indo ao Olimpo roubar aos deuses o fogo, as artes, as técnicas e a linguagem para as entregar aos humanos, tornando-os 'seres de possibilidades', aptos a criar, admirar e preferir o belo, o magnífico e sublime e a estranhar e afastar-se do feio, do horrendo e grotesco.

Há poucas décadas, numa das suas obras, Ser e Tempo, Martin Heidegger agarra-se à antiga e famosa fábula greco-romana de Caio Júlio Higino (Gaius Julius Higinus, um sábio que viveu no Egito no I séc. a. C.), para formular ilações de cariz ético. O essencial da fábula ou mito conta como Cuidado criou uma figura a partir do barro da Terra, pedindo depois a Júpiter que lhe insuflasse o fogo do espírito. Levanta-se então uma disputa sobre quem deveria dar o nome a essa figura, direito reclamado pelos três.

Saturno (o deus do tempo, equivalente ao deus grego Cronos) foi escolhido para arbitrar a contenda, tendo lavrado a sentença nestes termos: a nova criatura será chamada 'Homem', por ter sido fabricada a partir do humo (ex humo) da terra; na morte, Júpiter acolherá o seu espírito e a Terra ficará com o seu corpo. Mas, enquanto ela viver, será Cuidado quem a manterá com toda a solicitude. Saturno destinou a Cuidado esta tarefa, precisamente devido às carências e necessidades de atendimento, educação, desenvolvimento e manutenção do ser humano até ao fim da vida.

Foi nesta conformidade que Heidegger concebeu o cuidado e o cuidar como estrutura originária e obrigação indeclinável da existência. O que seria do ente humano sem o cuidado, sem o cuidar e sem ser cuidado? Numa busca de resposta, o filósofo propõe a 'ética do cuidado', do nosso e do próximo, como um dos pilares centrais da civilização e da Humanidade.

4. Em síntese, um ideário político baseia-se em valores vitais; é uma projeção do modo de encarar o outro, o semelhante e o diferente, de conviver com ele, de respeitar os seus direitos e procurar suprir as suas agruras, debilidades e penúrias. O que é que nos mostra a política da austeridade neste capítulo?

A austeridade e a sua aceitação espezinham o legado civilizacional implícito na 'ética do cuidado'. São expressão do mal endógeno e exógeno, do diabo que nos leva a aplicar aos outros o que não é bom para nós, a agir de forma distinta com o próximo e connosco. Indo mais longe, a austeridade revela facetas aterradoras: é um apagão ou banalização da noção do diabólico, suprime as fronteiras de demarcação do bem e do mal; torna patente o instinto do mal, retira o bem da realidade e introduz-lhe aquele, molda-a segundo as baixezas intrínsecas ao nosso ser.

Por mais que custe ouvir aos defensores da austeridade, ela é terrorista pelos meios que usa e pelos fins que propala, é criminosa pelos resultados e vítimas que provoca, é cruel pela angústia, pelos gemidos, pelo horror, pelo sacrifício e sofrimento que causa, é desumana pelo desespero do abismo sem fundo que origina e pela insensibilidade que irradia, é arrasadora da espiritualidade pela idolatria do dinheiro.

Os advogados da austeridade representam o triunfo da maldade, do fundamentalismo e fanatismo de falsos profetas; semeiam o inferno e o ódio, pregando a abastança, o gozo e a vida para uma minoria e a infelicidade, a miséria e a morte para a maioria. Eles estão a pedir o raio da ira de Deus.

Os profetas do Antigo Testamento não cometeram heresia, quando recomendaram que o atendimento das necessidades urgentes das pessoas prevalece sobre o culto de Deus. O sofrimento humano não pode esperar; já Deus, porque é eterno, tem tempo para ser honrado e louvado. Por outras palavras, atender as ansiedades e precisões dos humanos é servir Deus. Logo, antes de servirem o deus do dinheiro, os sacerdotes da austeridade devem honrar e venerar o ser divino que é a pessoa. Todavia, não agem assim. Não passam no tribunal da consciência de Deus e dos Homens!

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