Integra

1. A sedução pela desigualdade é constituinte de nós. Somos seduzidos pelo que nos falta, não somos e não temos, pelo que cava a diferença. Nesta conformidade são factos inescapáveis e altamente valorizados a superioridade de competências, de habilidades e potencialidades, o espírito competitivo, a procura e a demonstração de performances excecionais, indivíduos incomuns, a aptidão e a motivação para realizar bem qualquer tarefa, a iniciativa individual, a faculdade de aprender coisas novas e com mais rapidez, o génio e o talento desigual.

Mas isto não implica que para cada vencedor tenha que haver um ou muitos perdedores, que os excelentes e muito bons, os inteligentes e espertos tenham que esmagar os bons e os medíocres, os lerdos e retardados, sob pena de transformarmos a existência num jogo de soma zero.
Um pouco de humildade far-nos-ia muito bem. Tal como deitar água fria na fervura da soberba e arrogância, atendendo à advertência de La Rochefoucault (1613-1680): "O mundo recompensa com mais frequência as aparências do que o próprio mérito."1
A natureza distribui desigualmente a inteligência, a beleza, a atração e não sei quantos dons. Porém não outorga à sociedade o direito de discriminar negativamente os indivíduos desfavorecidos. Antes, coloca o preceito de fazer bom, correto e proveitoso uso daquela distribuição. De minimizar a possibilidade de as pessoas se tornarem desestimuladas ou ressentidas com tais desigualdades naturais, com comparações ofensivas dos tipos de aptidão e dos níveis de proficiência.
Para tanto deve-se valorizar as diversas capacidades e diferenças, encará-las como traços de união entre todos; e não partir delas para preconizar e absolutizar as desigualdades. Não se pode permitir que estas abram brechas no contexto social onde elas brotam e têm lugar, que não sirvam para potenciar e aumentar o bem comum. Cederíamos à tentação de ter vergonha dos nossos pais e de os desprezar, se eles fossem eventualmente analfabetos ou semianalfabetos, só por nós possuirmos um estatuto intelectual e académico superior ao deles? E, se agíssemos deste jeito, que julgamento incidiria sobre nós?

2. Por conseguinte é curial submeter à aclaração e reflexão o ambiente hipercompetitivo que envolve e se instalou em todas as esferas da atividade, comparando, medindo, numerando, pressionando e discriminando tudo e todos. 
A ideia da competição entronca nos conceitos de 'agonismo' e 'arété', que os gregos nos legaram e constituem um pilar da cultura ocidental. A contemporaneidade agarrou estas noções, perverteu-as e levou-as ao limite do tolerável. A 'competitividade' é hoje um dos termos dogmáticos em alta, decretados pelo reformismo neoliberal para ter validade em todos os setores, com a pretensão de elevar a fasquia da produtividade, da eficácia, da eficiência e da meritocracia.2
Ela (mais o 'empreendedorismo' e o 'sucesso') é erigida em padrão exclusivo, sem ter em conta ou questionar minimamente aonde está a levar o exacerbamento do dogma e a sua aplicação generalizada, sem lhe por o freio da relativização. 
Obviamente a competição favorece o alcance de patamares mais altos em vários domínios. Mas, quando desvirtuada, fecunda igualmente comportamentos, estados de espírito e medidas que não se compaginam com o registo do humano. A competição, prevalecente nos nossos dias, não repara que torna arrogantes os vencedores e doentes os perdedores, que a felicidade de uns pode ocasionar a infelicidade de outros. Faz tábua rasa de que o caminho para a felicidade passa mais pela cooperação incorporada do que pela competição desenfreada.
Ademais, os dados, colhidos em vários estudos sobre a longevidade e a saúde, são alarmantes; revelam que os vencedores vivem mais tempo do que os perdedores e que as doenças decorrentes do estresse competitivo e da instabilidade têm aumentado nas sociedades ditas desenvolvidas. Por exemplo, não faltam vozes autorizadas a atribuir a esta atmosfera asfixiante o crescendo e a imensa maioria dos distúrbios e doenças do foro mental e cancerígeno.
Segundo notícias publicadas em vários jornais, o Papa Francisco, numa missa celebrada em Seul em 15.08.2014, advertiu para o "cancro do desespero" que aflige as sociedades materialistas. Na homilia, numa referência à elevada taxa de suicídio na Coreia do Sul, o papa alertou para a "cultura da morte", em rápido crescendo nos países desenvolvidos, onde os pobres são marginalizados. Apelou ainda aos sul-coreanos para combaterem "o espírito de competição desenfreada, geradora de egoísmos e conflitos" e para rejeitarem "modelos económicos desumanos".

3. O neoliberalismo militante bebe no darwinismo para sustentar que a competição é a única força operante na natureza. Vai daí desconsidera a cooperação e a motivação para uma causa conjunta, a aliança de vontades individuais para gerar uma grande, aumentada e multiplicada vontade coletiva.
Gabriel L. Mota, um economista doutorado em economia da felicidade, é insuspeito e assertivo ao propor que "talvez seja melhor pensarmos na cooperação como um mecanismo que também é capaz de (subir e) aumentar os patamares de eficiência mas que promove a felicidade coletiva ao mesmo tempo. No fundo, somos todos muito mais iguais do que diferentes e a cooperação torna-nos mais próximos, enquanto a competição é mais potenciadora da inveja, da idolatria e do individualismo."
A proposta insiste em que "o caminho para uma felicidade coletiva passa mais pela colaboração rizomática..." Logo o desiderato de "uma democracia evoluída" implica potenciar a cooperação "como força da sociedade", porque "muito do que fazemos pode ser mais colaborativo e menos competitivo", sendo possível minimizar os interesses incompatíveis e os potenciais conflitos, "ao mesmo tempo que promove a tolerância e a capacidade de compromisso entre ganhadores e perdedores".3
Estas formulações poderão soar a utopia. Contudo são viáveis e não alienantes uma sociedade e uma instituição (como, p. ex., a Universidade) orientadas pela visão da cooperação, embora os dilemas não se dissipem de maneira espontânea. O fito não é o de suprimir a competição, mas o de a subordinar a fins superiores e de entender que a orientação estritamente competitiva não conduz à 'vida boa e correta', buscada pelo labor filosófico, desde Aristóteles até ao presente.
Não chegaremos lá, sem o desenvolvimento de normas de cooperação, de estruturas que alinhem os interesses entre os que delegam e os que recebem a delegação para exer-cer funções de governança, sem uma ética pessoal que não passe as culpas para uma putativa ética social. Ou seja, emerge a necessidade de coincidência entre a ética pessoal e a social, entre aquilo que eu faço e aquilo que exijo às outras entidades. A ética social e universal é soma e expressão da ética pessoal, de todos, de mim e de ti. Portanto requer travão a transferência da culpa e da responsabilidade individual para a sociedade.
Gabriel Mota traça um diagnóstico que dá muito que pensar: "Uma coisa é certa, uma sociedade onde tudo é calibrado para despertar o lado mais competitivo do ser humano é uma sociedade tensa e insustentável: pela falência dos indivíduos face à pressão ou pelo desencadear sucessivo de conflitos. Os exemplos abundam: a transformação do desporto numa atividade profissional exclusivamente competitiva deu azo a que o doping, a corrupção e a perfídia se tornassem regra, pois que a vitória (em vez do mérito) é o único valor; a abertura dos mercados financeiros a todo o tipo de especulação fez com que se instalasse um clima de competitividade cega entre os agentes que conduziu às crises, instabilidade e insustentabilidade que hoje vivemos; os climas escolares e profissionais excessivamente competitivos têm desvirtuado os valores da aprendizagem e do crescimento em nome do ficar em primeiro a todo o custo, com consequências para a saúde e o bem-estar psicológico dos indivíduos (vejam-se as estatísticas das doenças mentais que não param de crescer ou mesmo a situação caricata dos EUA, o paradigma da sociedade competitiva, que corre o risco de começar a ver diminuir a esperança média de vida dos seus cidadãos).
Penso que vivemos em 'overdose' competitiva e que é altura de inverter a tendência: há mais vida para além da competição e só uma sociedade mais cooperante será capaz de produzir um futuro mais feliz!"4

4. Esta overdose competitiva e demencial extravasou o campo desportivo e assentou armas e bagagens em todo o lado, com particular e paradoxal relevo na Universidade. Aqui e agora, esta parece mais um hospício de formatação da insanidade e menos uma casa da erudição e racionalidade. Tornou-se uma organização regida por contratos de resultados, onde se compete ufanosamente por eles, segundo estratégias, normas e padrões estra-nhos à matriz da criação do conhecimento e à ideia de formação. O culto dos rankings deixa ao léu uma absurda e gritante estupidez: a finalidade primeira das universidades é competir entre si; é este o tipo vigente de relacionamento entre elas.
A produtivista competição universitária pode produzir génios, mas produz também uma luzidia, ufana e insuportável casta de neuróticos e esquizofrénicos, ausentes num planeta longínquo, indisponíveis para se solidarizarem com os prejudicados pelo figurino estabeleci-do, mergulhados numa introversão narcisista que até mete dó. São personagens, parafraseando Hegel, necessitados de aprender a subir às alturas do infinito bom humor, para observar abaixo de nós a eterna tolice dos humano, amar a própria insignificância e rir de si mesmos.
Mais, alguma parcela de responsabilidade pela passividade, falta de empenhamento cívico e alheamento ético de muitos estudantes é atribuível aos exemplos recebidos dos docentes. Todos o sabemos, "é vasta a lista de exemplos de fraudes cometidas por cientistas, com que se pode rebater a crença segundo a qual eles nunca atuam à revelia da ética."5 
Isto enquadra-se no endeusamento e fundamentalismo de um rasão avaliativo único, que faz da "estatística guião e da econometria bíblia", aplica "medidas de desempenho estereotipadas, normalizadas e gerais a tudo o que é diverso", reduz "culturas e contextos díspares à mesma escravatura de resultados", cuida que pode medir e indexar tudo a índices e rankings. Muito certeiramente Santana Castilho rotula este panótico de avaliação e controlo radicais (que nos interpela e segue em toda a parte) e a sua aceitação e veneração passivas como "uma certa versão moderna de fascismo."6
As afirmações anteriores são chocantes, mas não é difícil desfiar um rol de sintomas que indiciam a periculosidade da metamorfose e deriva epidémica que assola o espaço académico, precisamente um domínio que é suposto ser referência inspiradora da atuação do conjunto social. Nele impera uma sobrecarga de rotinas, tarefas e trabalhos que convida e, por vezes, força os docentes a descurar o aprimoramento cultural, espiritual e intelectual da sua personalidade, o ócio criativo e a dimensão da vida afetiva e familiar, revertendo isto em desfavor e deslustre do desempenho cabal e nobilitante da sua missão. Um tal condicionamento comportamental assemelha-os a entes secos de espiritualidade e sentimentalidade na face e na alma!
Sufocados pela burocracia esterilizante e alienados pela competição infrene, resta a muitos professores ser repetidores mecânicos dos arquétipos que conseguiram fazer dos seus projetos de vida o oposto do que estão fazendo com o deles. Debaixo do tapete da desculpa do cumprimento das imposições, escondem-se a mediocridade e a falta de criatividade e ousadia para reagir a uma situação degradante.

Destarte o feitiço vira-se contra o feiticeiro: a função do docente universitário já não é o que era, afasta-se a passos largos do imaginário que a edificou e habitava. Ele é um cumpridor lesto e submisso de determinações e ordens de cariz policial, um tarefeiro obediente que as executa à risca, não se atrevendo a inquirir a respetiva justificação, nem tampouco os objetivos de todo este deprimente enredo. O grau desta decadência foi proclamado por Hegel (1770-1831): "Naquilo com que um espírito se satisfaz, mede-se a grandeza de sua perda."

1 Escrito na Pedra, Jornal Público, p. 47, 02.08.2014. Os costumes da era de La Rochefoucault continuam hoje vigentes em todos os setores; quiçá, mais exacerbados. O contexto universitário, infestado de 'papermania', também não se subtrai a esta estocada do escritor e moralista francês.

2 Como é público e notório, vivemos numa era de incessantes mistificações linguísticas, que encobrem e pervertem intencionalmente o lídimo significado das palavras. Por exemplo, os vocábulos 'neoliberal' e 'neoliberalismo' pertencem ao estendal do léxico inapropriado e enganoso, que anda por aí à rédea solta. Com efeito, as ideias, que neles se acoitam, são velhas e não revelam um acrisolado amor pela liberdade. Esta é privilégio de alguns e não um bem universal, porquanto o alastramento da desigualdade, justificada como 'positiva' e 'inevitável' pelos pregadores neoliberais, cria diferentes graduações de liberdade real e cava um fosso de acesso a ela para uma maioria crescente de indivíduos. A desigualdade na sociedade é vista pelos putativos neoliberais como 'justa', por constituir, para os privilegiados, uma recompensa pelo seu talento natural e esforço; enquanto, para os excluídos, é um castigo pela sua falta de engenho e empenho. Esta visão do 'mérito' de uns e do 'demérito' dos outros não resiste à mais leve crítica. Se a 'meritocracia' neoliberal é assim tão defensável, porque é que os seus arautos não são adversários ferozes de todas as heranças e rendas provenientes das condições de nascimento, da captura do Estado pelos grupos de interesses e do reforço dos privilégios mediante o tráfico de influências?!

3 Gabriel Leite Mota, Competição e felicidade: uma equação complexa, Jornal Público, p. 37, 07.08.2014.

4 Gabriel Leite Mota, ibidem.

5 Santana Castilho, Uma certa versão moderna de fascismo, Jornal Público, p. 37, 27.08.2014.

6 Santana Castilho, ibidem.

Acessar