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Durante muitos séculos o sol e as estrelas do céu foram a orientação para viajantes, navegantes e andarilhos de toda espécie. Na falta de mapas, gps ou quaisquer sinais para referenciar uma localização ou ponto de chegada o céu era o maior fornecedor de pontos de referência. Diariamente, fizesse chuva ou fizesse sol, mesmo que as nuvens impedissem uma leitura atenta o astro sol ou as estrelas estavam lá. E se além de tudo o navegador tivesse um pouco de conhecimento sobre astronomia ainda era possível fazer muitas interpretações. Tudo está lá, para quem quiser e puder ver. Assim como o oceano, o céu também foi motivo de curiosidade para o ser humano desde a Antiguidade. A observação dos fenômenos relacionados àquele espaço infinito, e de nenhum controle, tornou essa arte numa ciência. Decodificar os movimentos celestes, atribuir significados a eles, relacionar frequência e relação com fatos terrestres demandou de estudiosos e cientistas séculos de estudos. E nas sociedades marcadas pela proximidade com o transcendente deu-se a relação com os deuses e os temas da mitologia, o que fez com que diferentes povos e tribos nomeassem de maneira distinta as suas constelações. A União Astronômica Internacional reconhece atualmente 88 constelações ocidentais, sendo que metade delas já era conhecida por Ptolomeu dois séculos antes de Cristo, ou seja, olhar para o céu, ver estrelas e tirar delas orientações para diferentes finalidades não é algo novo.
Fiz toda essa digressão para tentar entender porque é que as pessoas que conquistam destaque em suas funções e posições são chamadas de estrelas. A resposta mais rápida e óbvia parece ser porque elas brilham nessas atividades. Essa denominação começou com os artistas destacados do cinema e, com o advento das transmissões do esporte pela TV, passou a ser utilizado também para se referir aos atletas das grandes competições e eventos esportivos. Essa visibilidade cercada de um imaginário de figura pública espetacular levou inclusive Edgar Morin a cunhar o termo “olimpianos” para definir a representação que artistas de todos os tipos e atletas representam para a sociedade atual. No contemporâneo esse termo foi trocado pelo banal “celebridade” que tanto pode se referir a um ministro como a um anônimo que ganha destaque por estar confinado em um cenário cheio de câmeras a invadir o limite de sua privacidade em troca de visibilidade.
Claro está que no processo de profissionalização do esporte a condição de olimpiano se amplificou em função da utilização da imagem dos atletas para inúmeros fins comerciais, atrelando à sua imagem vitoriosa inúmeros produtos. Porém, a regulamentação disso tudo é muito recente e infelizmente muitos foram explorados sem qualquer tipo de retribuição.
Mas, a imagem de atletas não é (ou foi) usada apenas para fins comerciais. Mais do que um pacato cidadão que cumpre seus deveres e paga seus impostos o atleta desde sempre é confundido com a figura mítica do herói que inclusive nomeia algumas constelações. E isso é fácil de explicar se as analogias forem feitas com os devidos cuidados. O atleta, assim como o herói ou a heroína, destaca-se da média de seu grupo social seja pela força, seja pela velocidade, pela resistência ou por uma habilidade específica. Num primeiro momento essa distinção causa um estranhamento que pode levá-lo ao recolhimento, no caso da falta de condições para que essas habilidades se desenvolvam, ou ao desenvolvimento disso que é denominado um “dom” ou uma “maldição”. É quase sempre nesse momento que surge a figura, também mítica, do mestre que orientará o neófito na busca do desenvolvimento de suas habilidades, dando início assim a uma jornada mítica heroica, e no caso específico do atleta, esportiva. Seja um professor, um pai atento, um tio diferente, um amigo esquisito, um vizinho descolado cada atleta olímpico tem uma história diferente para contar sobre o início de sua trajetória. O fato é que, depois de iniciada essa saga ela acompanha de perto aventuras não muito distintas dos trabalhos de Hércules, da Odisseia de Ulisses, a Guerra de Troia para Aquiles, só para citar os gregos. A iniciação quase sempre envolve o distanciamento da família e do lugar de origem por conta da busca das melhores condições de treino e de desenvolvimento das habilidades, o enfrentamento de situações que sugerem discriminação e preconceito pela condição de forasteiro, o desânimo, o medo, enfim, não há quem não tenha chegado ao topo sem ter convivido com isso, por mais ou por menos tempo.
Entendo que é nesse processo que começa a se desenhar a linha que une as estrelas do céu dando origem a uma constelação. Cada treino acabado com esmero, cada conquista de um bom resultado, cada medalha – por menor que seja o torneio –, vai pontuando no céu único do atleta o seu brilho de estrela. E então essa luz começa a iluminar o seu caminho e chamar a atenção sobre si, principalmente em um mundo tomado pela escuridão. E em se tratando de discussão sobre um arquétipo (o herói) vale lembrar que onde há muita luz há também a sombra proporcional.
Rapidamente esse atleta percebe que se não houver cuidado todas as dimensões de sua vida se tornam públicas e a depender de quem o cerca ele passa a ser aquilo que os interesses comerciais e o público desejam que ele seja, afinal, o atleta tem que ser um “exemplo” de conduta para a sociedade. Ele tem que ter uma vida regrada, disciplinada, virtuosa em todos os sentidos porque é isso que o leva a ser um campeão. Isso desloca o atleta da vida em sociedade para uma vida segregada voltada apenas para a rotina de treinos e competições, uma vez que qualquer coisa fora disso representa a possibilidade de contato com a sombra da sociedade e do esporte: a derrota.
Nesse caso não há espaço então para posicionamentos políticos e ideológicos, não há permissão para contestação ou formação de opinião, não há qualquer possibilidade de recolhimento em função da tristeza ou depressão. Esses estados são antagônicos ao fazer esportivo que exige ação e brilho ininterruptos, 24 horas por dia, 7 dias por semana, 365 dias por ano. A isso eu chamo de desumanização do esporte. Não há como um ser humano, mesmo dotado de habilidades incomuns, suportar tudo isso por muito tempo.
Não é à toa que notícias sobre o afastamento de um atleta da vida esportiva cause sensação. Porque aos olhos do público essa é a vida que todo e qualquer humano deseja para si. Glamour, viagens, visibilidade, assédio, dinheiro… incrível no que a sociedade se transformou e transformou o esporte. São esses os valores?
Essa semana li duas notícias vindas da natação que me levaram a escrever esse texto. Uma se refere a aposentadoria de Joanna Maranhão das competições aos 26 anos. Joanna disputou três edições de Jogos Olímpicos (Atenas-2004, Pequim-2008 e Londres-2012) e foi a quatro Jogos Pan-Americanos (Winnipeg-99, Santo Domingo-2003, Rio de Janeiro-2007 e Guadalajara-2011) onde ganhou cinco medalhas (duas de prata e três de bronze). Nos Jogos Olímpicos de Atenas conquistou um quinto lugar inédito e único até o momento nos 400 m medley com 17 anos. Seu brilho agora irá iluminar a ONG Infância Livre, onde cuidará de crianças exploradas sexualmente, ela que é ícone dessa luta por causa de tudo o que passou.
A outra notícia vem da Austrália e traz notícias do também nadador Ian Thorpe, estrela dos Jogos Olímpicos de Sydney onde ganhou cinco medalhas de ouro e de Atenas onde conquistou mais duas. Ele encerrou sua carreira em 2006, aos 24 anos com um total de 9 medalhas olímpicas e 6 de ouro em um mesmo mundial. Diz o jornal que Thorpe foi detido pela polícia enquanto perambulava pela cidade apresentando comportamento estranho. Já é do conhecimento de muitos que o atleta apresenta quadro de depressão e alcoolismo.
Aí está. Essas questões tão comuns a jovens parecem imperdoáveis a atletas porque fogem ao estereótipo ação, determinação, enfrentamento e coragem, óbvio dentro das regras do jogo. E para quem escreve as regras, ser atleta é respeitar de forma inconteste as regras, com o risco de se perder a carreira e o brilho.
Porém, uma vez olímpico a constelação desse atleta está ali descrita para sempre no firmamento. E assim como a constelação de Órion, figura de um caçador com seus cães, ferido mortalmente por escorpiões se põe no oeste, enquanto a de Escorpião nasce no leste, numa perseguição incessante, os atletas continuam a perseguir suas próprias identidades e desejos para além das piscinas, pistas, quadras e campos.
9.2.2014