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Em 21 de maio de 1984, o Corinthians foi eliminado, após um empate no Maracanã, pelo Fluminense na semifinal do Campeonato Brasileiro. Na ocasião, o Corinthians vinha de uma gloriosa vitória nas quartas de final, contra o Flamengo, após ter sido derrotado no primeiro jogo. Contra o Fluminense, o mesmo roteiro se repetia. O time alvinegro perdia de 2 a 0 na primeira partida do confronto (desta vez em casa - o que findava os sonhos de repetir uma invasão no Maracanã na partida seguinte). Nos dois jogos contra o tricolor carioca, o elenco corintiano não fazia boas exibições. No segundo jogo, no Maracanã, o Corinthians não lutou para reverter o placar e, num insosso zero a zero, voltou para casa. 

Alguns pontos tornam essa derrota corintiana marcante. Em primeiro lugar, cabe destacar que a experiência conhecida como democracia corinthiana sofria um forte abalo naquele momento. A democracia corinthiana foi um período em que os jogadores do elenco alvinegro podiam participar de todas as decisões do departamento de futebol, por meio de votação direta. Além disso, tais jogadores se engajaram politicamente, participando de manifestações, partidos e sindicatos. Sócrates era uma de suas lideranças, mas nessa partida contra o Fluminense, havia sido anunciado que o  jogador havia sido vendido ao Fiorentina. Era seu último jogo pelo elenco da democracia corinthiana. 

Em segundo lugar, estávamos há aproximadamente um mês após a derrota da emenda Dante de Oliveira, a proposta legislativa que visava restaurar a votação direta para a presidência da República no país, suspensa desde 1964, quando o Brasil viveu um período de ditadura civil-militar. Por ocasião da votação dessa emenda constitucional, o país fervilhava em manifestações políticas de rua durante os anos de 1983 e início de 1984, num ciclo de protestos conhecido como as "Diretas Já". Na campanha das Diretas Já, milhões de brasileiros e brasileiras foram às ruas para manifestar seu apelo à retomada da democracia no país. Socrates participou desses atos. No último, em São Paulo, o jogador anunciava que se a emenda Dante de Oliveira fosse aprovada, ele, que vinha sendo assediado por clubes italianos, permaneceria no Brasil. A derrota da emenda Dante de Oliveira fez com que Sócrates deixasse o Brasil. 

Após a partida contra o Fluminense, a última de Sócrates pelo Corinthians, ele afirmou, em entrevista à Folha de S. Paulo, que não havia ido antes para o exterior porque ainda tinha uma missão a cumprir no Brasil. Após a derrota das Diretas Já,  ele decidiu que sua missão no futebol brasileiro, ao menos naquele momento, havia se encerrado.  Sócrates também afirmou que a democracia corinthiana continuaria apesar da sua saída e dos "maus agouros" que a rondavam. Ele completou:  "O povo acostumado com vinte anos de ditadura ainda não compreende muito bem uma experiência democrática". O tom soturno e derrotado na fala do jogador articula a derrocada de duas experiências que enfrentavam períodos de trevas no país. Ou seja, a derrota do Corinthians para o Fluminense representava uma série de contrapés para a democracia, na confluência entre o solapar dos ares democráticos que queriam transformar o país e no enterro de uma das experiências mais arejadas que o futebol brasileiro já havia vivido. 

Trinta e oito anos depois, cabe destacar que essa foi a última vez que o Fluminense derrotou o Corinthians em algum confronto eliminatório de uma competição de futebol. Ontem, 15 de setembro de 2022, a vitória do Corinthians sobre o Fluminense dá continuidade ao período de freguesia do tricolor carioca. Essa sequência poderia significar também a permanência dos ares democráticos no país, que viraram no pós 1985, com a eleição de um presidente civil e o restabelecimento das eleições diretas.  Portanto, se há trinta e oito anos, o Corinthians era derrotado pelo Fluminense, num momento em que a democracia brasileira, no âmbito legislativo, também sofria uma derrota, queremos acreditar que a vitória do Corinthians ontem pode se articular a da democracia no Brasil nas próximas eleições. 

Evidentemente, não há nada de democrático no elenco do Corinthians hoje. Talvez, a única referência relevante é que a única camisa de clube que o presidente de extrema direita não veste é justamente a corinthiana. Ou talvez, essa analogia entre democracia e futebol, ansiando para que eles se articulem, seja nossa esperança que insiste em se apresentar em cada cantinho em que podemos vê-la nos iluminando. Em períodos de trevas como vivemos, entretanto, qualquer pequena fagulha é um alento. 

Se há trinta e oito anos atrás, Sócrates dizia que éramos um povo acostumado à ditadura que ainda não compreenderíamos bem uma experiência democrática; hoje, esperamos que esses anos democráticos que tivemos, tenham nos ensinado a defender o respeito, a tolerância; valorizar todas as pessoas, as formas de vida, de amor, de expressão. São valores muito caros à democracia e que precisam ser preservados. 

Como corinthiana e progressista, espero que a vitória do Corinthians hoje signifique, de alguma forma, que se inverteu o que aconteceu há trinta e oito anos. Daqui a três semanas saberemos um pouco desses próximos capítulos na democracia brasileira. Até lá, fazemos campanha pelo fim do período de trevas e torcemos para que o Corinthians possa ser campeão da Copa do Brasil :)

16/09/22