Integra

1-Introdução

Este trabalho objetiva "interpretar" (Geertz,2001) em duas obras literárias do século XIX, de Machado de Assis e de Aluísio Azevedo, indícios de possíveis concepções de corpo neste período. Consideramos que textos literários podem constituir fontes documentais valiosas para a investigação historiográfica.

Em primeiro lugar, entendemos que a natureza "polifônica" (Bakhtin,1968) da narrativa machadiana engendra a possibilidade analisarmos os diferentes interlocutores em ação no seu interior, bem como interpretar a "configuração social"(Elias,2000) decorrente deste diálogo. Segundo Bakhtin, em uma estrutura polifônica ou dialógica nenhuma das personagens[ou a maioria delas] fala pelo autor do ponto de vista do autor.

Também o historiador Carlo Ginzburg (1983) nos esclarece a respeito do conceito de polifonia. Para ele a estrutura dialógica pode ser "explícita", como "na série de perguntas e respostas que pontuam as conversas entre o antropólogo e seu informador" (p.207) ou "implícita" , como "por exemplo, nas notas etnográficas referentes a um ritual, um mito, um utensílio." (idem)

Essa dupla dimensão (explícita e implícita) se encontra presente em Assis. A primeira nos diálogos propriamente ditos entre as personagens; a segunda na diferença tácita entre as "cosmologias" (Geertz,2001; Pina Cabral,2003) do autor e do narrador como veremos mais à frente.

Em relação à obra de Azevedo (1981), fundadora da escola literária naturalista, consideramos que seu esforço por retratar a realidade social aproxima seu texto de uma narrativa etnográfica. Azevedo pode ser caracterizado como um "observador participante" e um "proto-etnógrafo" (Pina Cabral, 2003:116) de seu tempo. Pina Cabral chama de proto-etnógrafo a alguém que, não sendo antropólogo, escreve com a sensibilidade de um, sendo "minucioso e fiel nas suas descrições, preocupando-se explicitamente com a fidelidade do que relata." (idem:116)

No presente trabalho pretendemos utilizar este mesmo recurso metodológico para pensarmos eventuais concepções de corpo presentes no século XIX.

2 - Corpo em Machado de Assis

Em Assis (1981) é possível encontrarmos indícios de uma concepção integral do ser humano.
No trecho seguinte é possível visualizarmos uma descrição, até certo ponto holística de Escobar, procedida por Bentinho, seu companheiro de seminário e personagem principal do livro "Dom Casmurro":

"Era um rapaz esbelto, olhos claros, um pouco fugitivos, como as mãos , como os pés, como a fala, como tudo. Quem não estivesse acostumado com ele podia acaso sentir-se mal, não sabendo por onde lhe pegasse. Não fitava de rosto, não falava claro nem seguido; as mãos não apertavam as outras, nem se deixavam apertar delas, porque os dedos, sendo delgados e curtos quando agente cuidava tê-los entre os seus,já não tinha nada. O mesmo digo dos pés, que tão depressa estavam aqui como lá." (Assis,1981:78-9 - grifo nosso)

A relação inextricável entre corpo e espírito; aparência física, movimentos corporais e temperamento é bem sintetizada aqui. Tanto assim que Escobar, segundo Bentinho, "não fitava de rosto" - movimento corporal - "não falava aro nem seguido" - atitude lingüística. Havendo nisso uma conexão indissociável.

Esta concepção holística, entretanto não e única na cabeça de Bentinho. E é aqui que a natureza polifônica da narrativa machadiana se revela em seu nível mais profundo. Embora nas narrativas de Bentinho o corpo seja uma via privilegiada para se pensar e descrever o ser humano ; este mesmo corpo, juntamente com seus instintos, milita contra o espírito.

É assim que Bentinho, já seminarista, pensa em determinado momento: "As visões feminis seriam de ora avante consideradas como simples encarnações dos vícios, e por isso mesmo contempláveis, como o melhor modo de temperar o caráter e aguerri-lo para os combates ásperos da vida." (idem:81)

Esta fórmula é, com efeito, a síntese de um diálogo travado no interior da personagem, o qual decorre do conflito entre sua própria concepção antropológica holística, por um lado; e sua formação cristã dualista, por outro.

Não obstante, em Assis, verifica-se uma ambigüidade relativa a sua concepção de corpo, que não se vincula propriamente ao caráter polifônico de sua narrativa.

Primeiro: no interior de seus textos e personagens o corpo e pensado-descrito-vivido como indissociável da personalidade humana. O corpo na literatura machadiana parece ser formulado como uma síntese do temperamento. Parte integrante deste e vice-versa.

Segundo, e contrário ao enunciado precedente: nota-se ao longo de todo o texto a reminiscência da idéia de superioridade das funções intelectuais em detrimento das atividades corporais.

É assim, por exemplo, que Bentinho, não querendo ser padre, pensa em estudar Direito, Humanidades, Medicina, etc. Há, de fato, uma grande valorização das atividades intelectuais humanas ao longo de todo o texto.

Nota-se, portanto que, tanto na formulação da personagem Bentinho, quanto no âmbito mais geral da narrativa machadiana não existe uma concepção monológica de corpo. Ao contrário, há nesta literatura um verdadeiro diálogo de concepções no sentido atribuído por Bakhtin. Ou seja, o encontro de vozes que falam sobre o corpo, o encontro de forças conflituosas sobre a idéia de corpo.

3 - O corpo em Aluisio Azevedo

Azevedo (1981) é o fundador da escola literária denominada "Naturalista". Esta corrente buscou retratar, via literatura, a realidade concreta sobre a qual se referia.

Milliet (in Azevedo, 1981:6) define o propósito do Naturalismo literário quando sugere que Azevedo, em sua obra "O Cortiço" apresenta "em um só quadro a vida cotidiana da alta sociedade e da camada popular".

De uma forma aproximativa poderíamos estabelecer uma analogia entre os tipos de reações interpessoais narradas por Azevedo e o processo de "pessoalização das relações sociais" descritas pelo antropólogo Marcio Caniello. Segundo ele:

"As ‘cidades pequenas’ são contextos em que a sociabilidade e largamente condicionada pela pessoalização... os sujeitos são reconhecidos uns pelos outros em virtude de suas marcas pessoais, e o mapeamento da rede que produz essas marcas é amplamente dominado pela coletividade." (Caniello,2003:33)

A pessoalização das relações sociais se caracteriza pelo fato de que ser a "pessoa", e não o "individuo"; o "privado"; e não o "publico" as categorias centrais dessas relações.

Nesse contexto o corpo é de igual modo pensado sob a ótica das relações privadas.

As personagens são aí descritas corporalmente como animais. A dimensão sexual é fortemente explorada pelo autor e a suplantação relativa desta condição animal grandemente valorizada, como se vê no trecho seguinte: "A filha tinha quinze anos, a pele de um moreno quente, beiços sensuais, bonitos dentes, olhos luxuriosos de macaca. Toda ela estava pedir homem, mas sustentava ainda a virgindade e não cedia..." (Azevedo, 1981:39)

Também a descrição, na pagina 36, das atividades matinais dos habitantes do cortiço, todas elas ligadas às funções orgânicas, sintetiza a natureza animal atribuída ao corpo. E esta concepção é sumariada na última frase desta mesma página como se segue: "Sentia-se naquela fermentação sangüínea, naquela gula viçosa de plantas rasteiras que mergulham os pés na lama preta e nutriente da vida, o prazer animal de existir." (idem:36 - grifo nosso)

O apelo de Azevedo a uma caracterização intrinsecamente orgânica do corpo, sobretudo do corpo das camadas populares, não é gratuito. Ao contrário, todo o esforço do autor é por explicitar a luta cotidiana pela sobrevivência da casse pobre no século XIX. Uma luta vivenciada, a um só tempo, com sofrimento e alegria.

O corpo é nesse contexto, um instrumento narrativo privilegiado para expressar essa luta. As atividades de trabalho são caracterizadas por sua natureza neuromuscular; as atividades de lazer por sua natureza sexual. Ambas concorrendo unicamente para a satisfação das necessidades orgânicas desse corpo. Corpo privado de quase tudo que não se vincule a sobrevivência mesma.

O autor não esta apenas descrevendo o corpo dos habitantes do cortiço; esta narrando as relações de poder a que estes estão submetidos, como grupos inferiores economicamente.

Com efeito, estas relações de poder foram explicitadas por Norbert Elias:

"Quando os grupos outsiders têm que viver no nível de subsistência, o montante de sua receita prepondera sobre todas as suas outras necessidades. Quanto mais eles se colocam acima do nível de subsistência, mais a sua própria renda - seus recursos econômicos - serve de meio para atender a outras aspirações que não a satisfação das necessidades animais ou materiais mais elementares, e mais agudamente os grupos nessa situação tendem a sentir a inferioridade social - a inferioridade de poder e de status de que sofrem." (Elias,2000:33 - grifo nosso)

O corpo em Azevedo é, portanto, um corpo oprimido, vilipendiado, exaurido mesmo na força dos braços das lavadeiras. Ele é ferramenta para a manutenção dolorosa da sobrevivência, e gozo para os minguados momentos de lazer.

4 -Considerações finais

Ao fim deste trabalho gostaríamos de salientar dois aspectos que consideramos importantes.

O primeiro de caráter metodológico: em outro trabalho (Cupolillo e Santo, 2003) defendemos a "pesquisa participante" como importante metodologia a ser incorporada pela produção do conhecimento em educação física. No presente estudo procuramos avançar, junto com Daolio (2004) para além desta perspectiva sociológica e adentrar na questão simbólica. Acreditamos que muito poderíamos ganhar com uma consideração mais séria das abordagens etnográficas e semióticas. Neste estudo arriscamos algumas aproximações nesse sentido.

O segundo aspecto relacionado à(s) concepçõe(s) de corpo em nossa sociedade.

Medina (1994:19) nos diz o seguinte: "Portanto, se vivemos num sistema capitalista... o corpo e suas manifestações culturais serão produtos ou sub-produtos das estruturas que caracterizam este sistema."

Ora, baseados nas reflexões aqui relatadas, não defendemos esta concepção, que consideramos determinista. Ao contrário, observamos que tanto no interior da literatura machadiana, como no seu confronto com o livro de Azevedo, existe um embate de concepções.

De modo que o corpo é negociado - é fruto de uma disputa entre hegemonia e contra-hegemonia das idéias a seu respeito. E estas idéias podem ser negadas ou corroboradas pela educação física de acordo com a consciência que dela tenhamos, os professores da disciplina.

Os autores, Patrícia Rocha Lima é professora contratada da rede pública estadual do Rio de Janeiro e pós graduanda do curso de Especialização em Educação Física Escolar da UFF e Wecisley Ribeiro do Espírito Santo é professor efetivo da rede pública municipal de Rio das Ostras.

5 - Referências bibliográficas

  •  Assis, Machado de. Dom Casmurro - São Paulo: Abril Cultural, 1981 (Grandes Sucessos)
  • Azevedo, Aluísio. O Cortiço - São Paulo: Abril Cultural, 1981 (Grandes Sucessos)
  • Bakhtin, Mikhail. Marxismo e Filosofia da Linguagem - São Paulo: Hucitec, 1986, terceira ed.
  • Caniello, Márcio. "O ethos sanjoanense: tradição e mudança em uma ‘cidade pequena’" in Mana: estudos de Antropologia Social - Rio de Janeiro - PPGAS - Museu Nacional - UFRJ. 2003, v.9, número 1.
  • Cupolillo, Amparo Villa e Santo, Wecisley Ribeiro do Espírito. "Teoria e prática pedagógica em educação física: um estudo sob a perspectiva da pesquisa participante" in Revista Universidade Rural, série Ciências Humanas - Seropédica, RJ, EDUR, v.25, suplemento, 2003.
  • Daolio, Jocimar. Educação física e o conceito de cultura - Campinas, São Paulo: Autores Associados, 2004 (Coleção Polêmicas do nosso tempo).
  • Elias, Norbert e SOTSON, John L. Os Estabelecidos e os Outsiders: sociologia das relações de poder a partir de uma pequena comunidade. Tradução: Vera Ribeiro - Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.,2000.
  • Geertz, Clifford. Nova Luz sobre a antropologia. Tradução: Vera Ribeiro - Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.,2001.
  • Ginzburg, Carlo. A micro história e outros escritos - Baltimore, 1983.
  • Medina, João Paulo S. O brasileiro e seu corpo: educação e política do corpo - Campinas, SP: PAPIRUS, 1994, quarta Edição.
  • Pina Cabral, João de. "Semelhança e verossimilhança: horizontes da narrativa etnográfica" in Mana: Estudos de antropologia social - Rio de Janeiro: PPGAS - Museu Nacional. UFRJ. 2003, vol.9, número 1.