O corpo escolarizado
Por Ana Júlia Pinto Pacheco (Autor).
Em II EnFEFE - Encontro Fluminense de Educação Física Escolar
Integra
A Negação da Materialidade Humana.
A escola é uma instituição social que se encontra em constante relação com a sociedade na qual se insere. As práticas escolares trazem a marca de sua cultura e refletem o controle corporal que na escola assume características específicas.
A história da educação nos mostra que o ensino formal concentra suas preocupações na aquisição de habilidades como a leitura e a escrita e, simultaneamente, traz um discurso sobre o corpo dirigido para a domesticação, inculcação da obediência e promotor de decoros e tabus corporais (PORTER, 1992).
Ainda Foucault (1987) mostra, em suas análises históricas, como o controle externo foi se internalizando e se transformando em autocontrole. Esta forma específica de poder, o poder disciplinador, que segundo o autor surgiu a partir do séc. XVII, agia nas mais diversas instituições sociais: prisões, fábricas, escolas etc.. A atuação de forma coercitiva sobre o corpo limitou seus espaços, tempos e movimentos para torná-lo um corpo dócil e colaborando para a eliminação da vivência subjetiva da corporalidade.
"A aprendizagem de conteúdos é uma aprendizagem sem corpo, e não somente pela exigência de o aluno ficar sem movimentar-se, mas, sobretudo, pelas características dos conteúdos e dos métodos de ensino, que o colocam em um mundo diferente daquele no qual ele vive e pensa o seu corpo" (Gonçalves, 1994, p.34).
Neste sentido, a escola promove um processo de ‘descorporalização’ (ibid.), no qual o corpo gradativamente vai sendo posto em plano secundário, contido e torna-se quase um desconhecido. Distanciar-se do corpo, ao mesmo tempo, implica num afastamento das experiências emocionais, sensitivas e sentimentais diretas, portanto a vida escolar também desencadeia a ‘desafetivação’ dos corpos.
Como sermos um corpo sem vivê-lo?
As práticas escolares polarizam e compartimentalizam a vida humana reservando momentos e locais específicos para a ‘razão x emoção’, o ‘útil x agradável’, o ‘prazer x dever’, a ‘festa /alegria x produção/trabalho’. A construção do conhecimento, o contato com mundo são fragmentados, abstratos e restritos, bem como são prioritariamente processos mentais. O discurso verbalista escolar é impessoal e racional, sem lugar para demonstrações emotivas. Não bastasse, hierarquiza os saberes, prestigia as disciplinas consideradas detentoras do ‘saber objetivo’, ‘racionais’, e desvaloriza outras formas de conhecimento, interpretação e interação com o mundo como a música, a dança, a filosofia etc..
A escola homogeneiza, padroniza os modos de pensar, sentir, agir e mover. O modo de a escola disciplinar o corpo consiste na dissociação da totalidade humana e na supervalorização das operações cognitivas, bem como progressivamente tende a anular as experiências sensoriais e corporais: um olhar vertical. Podemos assim observar como a escola contribui, direta ou indiretamente, para esse processo através de seus regulamentos, dos seus hábitos metodológicos, de seus discursos, dos livros didáticos, dos conteúdos das disciplinas, da organização do tempo escolar e da determinação arquitetônica da distribuição espacial.
Como sermos inteiros se vivemos pela metade? Como sermos criativos/as sem espontaneidade?
O nosso corpo é escondido, contido, só nos restando abrir os olhos. Aprender o mundo com os olhos. Com os olhos vivemos os movimentos dos outros e não os nossos. Com os olhos nas telas exploramos as possibilidades alheias. Com os olhos vislumbramos o futuro, que é o tempo da escola. A escola habita um futuro idealizado, sempre baseada no que seremos, e não no que somos, no que poderemos fazer, e não nas experiências concretas que podemos ter.
A estrutura escolar ainda leva a pensar que o movimento corporal somente é característico e natural da infância. Interpreta como biológica a sedentarização que ocorre com o ser humano através de sua vida e, portanto, desconsidera o processo sócio-cultural que vai retirando aos poucos toda empatia pelo movimento e dinamismo corporal. Por que, em muitas vezes, a educação de jovens e adultos/as não oportuniza a estes/as a vivência de atividades corporais?
Qual o tempo reservado para a vivência corporal e quanto tempo é consumido na negação da nossa corporalidade? Qual o tempo e o espaço do corpo nas escolas?
As esporádicas e espremidas aulas de educação física? Entretanto, tempo de se sentir corpo ou tempo de adestrar o corpo? Em geral, as aulas de educação física vêm ratificar o controle escolar do corpo. Essas poucas e esparsas experiências de movimentos se transformam em gestos vazios, em normas motoras, no pré-determinado, na repetição e na competição. Contudo, se pensarmos nesta escola dicotômica entre corpo-mente, quais foram os argumentos para a inclusão e permanência da educação física? Os fundamentos médicos-higienistas, os desportivistas (seleção de talentos) e os desenvolvimentistas, entre outros. Não podemos mais compartilhar das posições que justificam a atividade física a partir de um conceito de saúde eugênico, ou através de uma proposta seletiva, portanto exclusiva, ou muito menos mediante sua influência no desenvolvimento cognitivo. É a máxima "mens sana in corpore sano", que traz implícita uma visão dualista de ser humano e ainda a subordinação do corpo à mente. O cuidado com o corpo, a prática de atividades físicas, se apoiam na necessidade de um invólucro suficientemente forte e saudável, que portanto não atrapalhe e contribua para o florescimento da mente/espírito.
Não temos argumentos outros que legitimem a prática de atividades físicas, que reconheçam que o ser humano é mais que ter um corpo, é ser um corpo? Ou continuaremos presos e presas ao discurso de que "toda criança que recebe estímulos para atingir um pleno desenvolvimento motor, automaticamente também está recebendo estímulos para um bom desenvolvimento cognitivo" ?
Além disso, só a educação física deve se preocupar com o corpo?
Embora, o corpo também seja um produto da educação, a escola não ensina o que é ser um corpo. Temo que estejamos formando autômatos que movem-se mecanicamente, incapazes do gesto criativo, que falam pelas vozes de outros, incapazes de sua próprias palavras e que vivem as emoções das telas, incapazes que são de autosentirem-se.
Contudo, se a escola reproduz as estruturas predominantes da sociedade ao pensar sua corporeidade, a própria escola pode tornar-se um espaço de resistência, transformação e de exercício da criatividade.
Por um Ensino também Corpóreo.
A idéia central é que a escola possa produzir uma cultura corporal de movimento, o que não significa ficar alheia ao mundo para além de seus muros. Em outras palavras: ao invés de a escola reproduzir as práticas corporais da sociedade (ou a falta delas!?), ela deve realizar uma filtragem crítica, uma transposição didática que também trabalhe essas práticas já consolidadas, sem as absorver simplesmente, mas que estabelecendo uma relação de fluxo e refluxo (VAGO, 1996).
E aqui nos interessa que a educação tenha no movimento um dos seus principais aliados para transformar adestramento em legítima aprendizagem; realizar o jogo entre o que é sentido e o que simbolizado; resgatar as possibilidades de comunicação, expressão e criação corporais, principalmente, a arte de viver o corpo.
Apesar de a escola ter destinado pouca atenção às questões do corpos, cada vez mais aumentam os discursos sobre o corpo liberado, surgem uma pluralidade de terapias corporais e abrem-se de locais, cuja intenção é libertar, ensinar a viver este corpo reprimido. Por que a escola não se preocupa com este corpo liberto e prazeroso? Se a escola pública e gratuita pretende a democratização cultural, por que determinados aspectos da cultura permanecem elitizados e somente acessível àqueles que ‘têm dinheiro’? Reforçando o argumento inicial deste tópico, nada tenho contra a ‘estas novas experiências corporais’, mas me atenho ao modo como estas práticas corporais entram na escola, não é possível um simples incorporação. Ademais, faço outras ressalvas.
Primeiro, que escola queremos? Que valores pretendemos na escola? Esses discursos sobre o corpo pregam um corpo criativo, saudável, natural etc. Contudo, afirmam o corpo como expressão de individualidade. Não sei se é possível o indivíduo isolado da sociedade, mas com certeza podemos ignorá-la, reduzindo todos os conflitos e problemas ao ‘eu’. Será que propostas corporais que enfatizam sobremaneira a individualidade correspondem a objetivos como de justiça social? Trabalhos de consciência corporal não deveriam ser mais que o auto-conhecimento, mas articular o individual com o coletivo, com uma consciência social?
Segundo, qual o papel das atividades físicas, da educação física, na escola? Continuaremos ter nas atividades corporais escolares objetivos extrínsecos como, por exemplo, um corpo liberto, ‘um efeito restaurador e de limpeza do corpo’, para livrarmo-nos do estresse, da agressividade, como válvula de escape, apenas diversão, satisfação ou ainda simples modismo?
Acredito que a educação deva ser corpo, alegria, prazer e festa, mas porque estas características aparecem destacadas e muitas vezes são designadas como função apenas de determinadas disciplinas como música, educação física ou educação artística. Agora é hora de extravasarmos, de brincarmos, vamos descer para a aula de educação física! Educação física é só brincadeira? Atividades corporais na escola deveriam também ser só divertimento e relaxamento? Costuma-se perguntar "porque a promoção da satisfação deve estar fora dos objetivos da educação"? E eu pergunto, por que a sociedade, a comunidade escolar e os/as professores/as vêem a satisfação como encargo único de certas disciplinas? Deveria a educação física ter como objetivo principal o alívio, a satisfação? Deveria este objetivo ser somente das atividades corporais e artísticas? Ou pretendemos algo mais?
Por fim, movimentar-se engloba sentidos bem mais amplos e complexos do que executar uma seqüência de movimentos. O ‘movimento pelo movimento’ no mínimo é uma postura ingênua, pois toda movimentação comporta valores culturais, sociais e pessoais situados historicamente. Ignorar essas questões faz do movimento corporal humano uma repetição mecânica de gestos, por mais agradáveis e belos que estes possam nos parecer. A utilização de outros aportes que nos permitam melhor compreender o fenômeno ‘ser humano/a em movimento’ e o desenvolvimento de uma consciência crítica/reflexiva é que trazem significado ao movimentar-se.
Neste sentido, muitas críticas têm sido feitas ao tecnicismo, ou seja, à valorização da boa execução técnica como um fim em si mesma. Ao mesmo tempo, propõe-se o movimento expressivo e criativo. Se levarmos em consideração a estreita ligação entre forma/conteúdo ou método/conteúdo, podemos arriscar dizer que se mudamos nosso modo de trabalho corporal, estaríamos modificando também nossa concepção do que é movimentar-se. Contudo, a consciência de que uma proposta de trabalho comporta um modo de perceber e ser no mundo, nem sempre parece acompanhar a opção por um outro modo de conduzir o processo de ensino-aprendizagem. Por exemplo, tem-se uma visão apologética da criatividade, ‘precisamos ser criativos’, mas por que e principalmente para quê?
O estímulo à criatividade, utilização de diversos materiais, exploração de inúmeras possibilidades de movimento, novas maneiras de se organizar o antigo, o esforço pelo inédito, o rompimento com os códigos aceitos pretendem o quê?
De que servem abordagens da criatividade isoladas em si mesmas? Não estaríamos trocando de códigos só para nos adaptarmos melhor? Códigos outros, mas em continuidade às representações postas? Assim não estaríamos trocando o tecnicismo por outro ‘ismo’ vazio, o ‘criativismo’? Ou nestas mudanças há incorporada uma perspectiva de alteração profunda e consciente dos significados, um legítimo ato criativo que questiona o existente, aposta num novo, num novo revolucionário? Os processos criativos pretendem a autonomia dos indivíduos que se reconhecem enquanto sujeitos históricos, dentro de uma coletividade, e que exercem sua capacidade de construir e transformar a realidade?
Educar está além de ensinar respostas, bem como além de estimular respostas inusitadas. Passa também e principalmente por permitir os/as alunos/as para que interfiram e sejam capazes de construir e transformar. O sentido de plenitude de uma realização está intimamente relacionado com a ludicidade e o prazer da criação. A magia do fazer. O ato criativo intencional e intuitivo baseado na troca faz parte da dimensão simbólica humana, da capacidade de imaginar, do potencial de sonhar. Todavia, propostas de ensino-aprendizagem que trabalhem com a criatividade, isto é, com o imprevisível e inconstante, ainda causam impacto naqueles/as que se fundamentam nos preceitos de uma didática tradicional. Posto que,
"O ato de criação, ou seja, a invenção de novas finalidades, a concepção e a realização de novas formas de vida, é o modelo de ato político no sentido mais nobre do termo, ou seja, ato revolucionário de desprendimento das rotinas da ordem estabelecida, de seus "valores", de suas rígidas hierarquias, esforço para o novo (...) e uma cultura que criem as condições nas quais cada homem possa vir a tornar-se um homem, isto é, um criador, um poeta" (Garaudy, 1980, p.182).
E mais, convido todos/as que de algum modo estão envolvidos com o ensino reflitam sobre os significados de seus corpos, movimentos e atitudes, mas não como algo que está posto, algo ‘natural’, e sim como algo construído e passível de ser reconstruído.
Assim, há que se ultrapassar as fronteiras do ‘balé das formas’ puramente estéticas e entender o compromisso, para além da criatividade, com o gesto intencional carregado de significado que se traduza numa comunicação verdadeira. Uma comunicação que represente o/a homem/mulher e que clame por sua condição humana, por sua ‘liberdade’ de expressão corporal, por sua emancipação, uma comunicação que se efetive no reconhecimento do indivíduo como sujeito no processo de construção criação e transformação da realidade.
Esses temas merecem ser mais ampla e profundamente discutidos, sendo necessário redimensionar e discutir o corpo na educação, no sentido de contribuir para trazê-lo de volta à vida cotidiana escolar sem preconceitos de classe social, gênero, religião, orientação sexual e etnia. Não se trata de uma valorização excessiva do corpo, mas de resgatar a parcela perdida da corporalidade humana, também, em situações formais de ensino. Penso que são necessários esforços no sentido de romper com esta escola que por tanto tempo negligenciou e desconheceu o corpo, o movimento, a paixão, o prazer.
Referências Bibliográfica
FoucaltMichel. Vigiar e punir. Petrópolis: Vozes, 1987.
Garaudy, Roger. Dançar a vida. 2.ed. Rio de Janeiro : Nova Fronteira, 1980.
Gonçalves, Maria Augusta Salin. Sentir, pensar e agir: corporeidade e educação. Campinas: Papirus, 1994.
Porter, Roy. História do corpo. In: BURKE, Peter (Org.). A escrita da história: novas perspectivas. São Paulo: UNESP, 1992.
Vago, Tarcísio Mauro. O ‘esporte na escola’ e o ‘esporte da escola: da negação radical para uma relação de tensão permanente. Movimento, ano 3, n.º 5, 1996/2, p.4-17.