Integra

  Nesta pequena reflexão, a intenção não é fazer comentários ou análises particulares sobre cada uma das políticas educacionais que temos hoje no Brasil. Em primeiro lugar porque seria impossível dar conta de todas elas dentro dos limites deste trabalho; em segundo lugar porque selecionar algumas para discutir pressupõe uma difícil escolha: as melhores ou as piores? E melhores e piores de acordo com que ponto de vista? Por isso, optei por fazer uma análise mais global inserindo o problema do cotidiano em suas várias relações práticas e teóricas com as políticas educacionais.
  Estamos na década do cotidiano! Esta utilização generalizada que temos da categoria de cotidiano é bem contextualizada, tanto do ponto de vista da teoria como do ponto de vista prático. Aliás, as análises de cotidiano que temos encontrado no campo da pesquisa educacional, atualmente, apontam cada vez mais para um entrelaçamento entre as duas esferas: a prática e a teórica. Mas isso provoca, por vezes, uma certa mistura na compreensão dos fenômenos sociais, influenciando ações no âmbito das metodologias de ensino, das políticas públicas e das representações sociais dos sujeitos envolvidos na educação, tanto quanto as produções científicas da academia.
  Recuperando um pouco o movimento nos campos prático e teórico, a partir dos primeiros anos da década de 80, estávamos vivendo uma situação no país em que as mudanças em direção à democracia começavam a ocorrer com muita riqueza na esfera da sociedade civil, empurrando o estado para uma posição mais dinâmica, mais acessível e mais permeável a pressões, organizadas ou não. Tal mudança de papéis da sociedade civil e do estado criou uma situação favorável à percepção da importância da esfera civil, da vida privada, das mudanças possíveis no campo do cotidiano e da emergência do sujeito nessa nova história que estávamos traçando naquela época. A própria educação era motivo entusiasmo; nela restaurava-se o papel social do professor e poderíamos também promover a cidadania, após longos anos de restrição a esse direito. Governos progressistas promoviam grandes transformações no campo educacional. Em Minas, a organização civil dos professores promovia um movimento de ocupação progressiva dos quadros do estado. No Rio de Janeiro, mesmo o populismo tinha um audacioso projeto (o PEE do governo Brizola, 83-87). Em São Paulo o PT mostrava seus compromissos com o setor nas diversas prefeituras que administrou, especialmente o governo de Erundina na capital paulista.
  No plano do cotidiano, associações de bairro, de defesa de direitos civis e de categorias minoritárias mostravam a força da participação na construção do processo histórico, pela soma de diversas ações cotidianas de busca da identidade e da democracia brasileira. Uma nova representação de Brasil começava a se formar e se difundir no interior da sociedade, uma crença na recuperação do atraso cultural e social do país - inclusive pela via educacional. Ações cotidianas passavam a ter dimensão política e vice-versa; podíamos quase que passar a prever conseqüências derivadas delas. Era uma espécie de maioridade social, uma responsabilidade maior no plano político pelo estímulo à lucidez da consciência no exercício cotidiano das ações sociais. O aparelho de estado torna-se sensível a demandas sociais e a sociedade brasileira, talvez pela primeira vez, começa a sentir viável para si, senão a apropriação, pelo menos o alcance democrático do estado, um estado que sempre foi apropriado por elites. As políticas públicas - inclusive as de direita - são obrigadas a incorporar demandas educacionais e, no discurso ou na prática, os governos acenam com a democratização da educação - palavra de ordem que se tornou jargão, em nove dentre dez lideranças pedagógicas e políticas do período.
  No plano teórico, começamos a suspeitar das análises de tipo estrutural que colocavam a educação no bojo dos processos superestruturais de reprodução ideológica. A incorporação da categoria de cotidiano no campo da crítica educacional acontece, portanto, pela superação das análises estruturais que vínhamos tendo até o início da década de 80. Nossas leituras começavam a orientar-se mais por Gramsci e menos por Lênin, mais por Lefebvre e menos por Althusser, mais por Foucault do que por Poulantzas, mais Heller que Passeron. Em suma, ultrapassávamos uma análise de mudança na educação que se condicionava pela tomada do poder político - tomada do estado em sentido estrito - para ingressarmos numa corrente mundial que passava a privilegiar as ações cotidianas, a organização da sociedade civil (especialmente nos seus setores mais populares) e o movimento molecular no interior das escolas em direção a uma identidade institucional mais civil do que estatal.
  Ao lado disso, a partir de meados dos anos 80, movimentos de trabalhadores no mundo inteiro começavam a apontar para os efeitos nefastos à sua organização que trariam a globalização e as inovações tecnológicas e apontavam para o esgotamento do estado de bem estar social - fosse ele socialista ou capitalista (social-democracia). O fim da URSS, em 1985, trouxe uma crise geral dos paradigmas críticos da estrutura social do modo de produção capitalista; sua desintegração atingiu em cheio nossa identidade teórica com o movimento operário mundial, colocando-a construída nas ações mais imediatas, na organização civil nas transformações operadas no cotidiano . Isso reforçava um certo retorno dos localismos e do "comunitarismo" tão propalado durante as políticas de aliança para o progresso movidas pelo governo norte-americano em países africanos, na Ásia, na América Latina e especialmente no Brasil, nos anos 60. Nesse retorno, parte da pesquisa educacional tendeu a uma metodologia etnográfica que consistia basicamente em estudos de casos, procurando acumular descrições de modo a possibilitar generalizações e saberes mais amplos, tendo a comunidade escolar como foco das atenções. Essa influência marcou, por exemplo, a pesquisa brasileira recente, a historiografia, os estudos cognitivistas, a abordagem sociológica e a didática e a questão dos currículos, campos bastante distintos entre si. A influência foi generalizada!
  Mas, ainda que para os mais ortodoxos isso fosse pura heresia metodológica, o fato é que esse tipo de pesquisa nos mostrou muito do concreto complexo da sociedade brasileira que não se reduzia às formas simples e estruturais que encontrávamos nas teorias marxistas, mesmo aquelas desenvolvidas e adaptadas à América Latina. O peso expressivo da religiosidade, da moral ibérica, da desigualdade tradicionalmente estamental da sociedade brasileira; o peso da internalização histórico-social do trabalho escravo, da manipulação ideológica promovida pelos meios de comunicação ou as marcas das vaidades pessoais no campo pedagógico, por exemplo, são componentes que não costumávamos levar em conta nas análises da educação e mesmo da escola.
  O mergulho no cotidiano passou a permitir ressaltar situações ou possibilidades de mudanças na escola - algumas até meio revolucionárias - em direção a uma sociedade mais participativa e democrática, a partir do conhecimento que passávamos a ter daqueles componentes, digamos, simbólicos, porém que possuíam força material de determinação do real, no dia a dia. Passamos a perceber possibilidades políticas emancipatórias na organização curricular, no trabalho do professor de matemática, nas aulas de educação física, na administração da cantina, nas eleições para diretores de escolas, etc. Percebemos efeitos negativos que a linguagem ou as diferenças culturais têm na aprendizagem, como a administração e as assessorias pedagógicas podem melhorar ou piorar uma escola, como os preconceitos, os estigmas e os processos de seleção ocorrem e se reproduzem no ambiente escolar e, observamos ainda, como ações de estado se enraízam na sociedade civil, se fazem cotidiano e como o cotidiano se faz a si mesmo, desestatalizado.
  Vista dessa forma, a educação, seja no âmbito das políticas públicas, seja no âmbito das ações práticas nas escolas, aparece muito mais contraditória e complexa; e qualquer síntese dialética conhecida até então, não poderia ter dado conta. De fato, teorizamos muito sobre isso; porém não o suficiente. Com a diversidade do cotidiano a contradição se dilui em diferenciação; a totalidade se constitui no instante - no máximo, nos projetos mais imediatos. E, então, aquilo que parecia ser a solução prática e teórica para as nossas aflições educacionais - o conceito de cotidiano - mostra-se uma ferramenta de difícil manuseio. Na prática, porque a compreensão dele e a intervenção nele podem ser tanto transformadoras como profundamente conservadoras, ou seja, trabalhar no plano do cotidiano não garante, previamente, compromisso histórico algum. No plano teórico, porque a cotidianidade só tem significado quando articulada numa rede de sentidos, ainda que sem uma centralidade definida. Assim, o sentido do cotidiano não está no próprio cotidiano; também não está em um lugar determinado (o nível superestrutural-ideológico), a partir do qual o cotidiano absorve suas significações e constrói sua identidade. A rede de sentidos que constitui o cotidiano nunca é inteiramente captada, seja pelos sujeitos que vivem a experiência existencial na prática, seja pelos sujeitos pesquisadores que se prendem à rede apenas por alguns de seus nós.
Se, então, o cotidiano é esse objeto tão fugaz, como abordá-lo, como agir na prática de modo eficiente e ao mesmo tempo teorizá-lo de modo rigoroso? E, principalmente, como propor/contrapor propostas de políticas educacionais para hoje, no Brasil, levando em conta o que se tem acumulado em termos de experiência no cotidiano das escolas e de pesquisas na área? Não há indicação de que estas questões venham a ter respostas simples, mas isso não nos isenta de enfrentá-las. Coloca-se aí um desafio, pois as escolas continuam a funcionar (muitas vezes à revelia do saber) e as políticas educacionais continuam a ser feitas (ou desfeitas, dependendo do ângulo).
  Daí, procuramos uma maneira de articular - como já dissemos - a teoria e a prática e organizar uma proposta política de educação que sintetize as necessidades sociais mais urgentes, porém não temos os instrumentos; estes se encontram numa esfera que ultrapassa o cotidiano, estão a nível de estado. Sobretudo, não devemos desconsiderar o papel do estado quando analisamos o cotidiano; o estado está lá, ainda que representado enquanto ausência: aquele que não paga bem ao professor, que não destina verbas, que não dá manutenção aos prédios e deixa as escolas caírem, que não dá continuidade aos projetos que propõem no discurso, em suma, que não se faz presente e está muito distante do dia-a-dia das escolas. Mesmo nessa ausência, o estado influencia no cotidiano, favorecendo práticas escolares autônomas, ainda que desarticuladas entre si. E aí reside todo o perigo teórico e prático de nos apoiarmos exclusivamente na categoria de cotidiano como possibilidade real de avançar na compreensão da educação e para tornar mais socializada e participativa a ação nas escolas. Não que isto não seja possível - de fato toda mudança social e histórica só ocorre se ocorrer no plano do cotidiano, senão não é mudança. A mudança apenas no plano estatal, o avanço dos projetos do estado, a incorporação de um discurso pleno de demandas sociais e mesmo a eleição de políticos com compromissos populares não é suficiente para garantir mudanças muito transformadoras na sociedade, se estas não estiverem enraizadas no cotidiano das pessoas, não resultarem de conquistas subjetivas, de mudanças de habitus, de valores, de cultura, de costumes, etc., a partir do interior da sociedade civil, dirigindo-se enfim à esfera política, como sua representação máxima.
Porém - sem positivismos - é preciso relativizar e considerar dialeticamente o cotidiano na sua contradição transformação-conservação, pois é nele também que se mantêm as estruturas mais fortemente instituídas, os valores mais arraigados, as mitologias sociais mais acomodadas, as formas mais inconscientes de ação reacionária, as limitações sociais mais intensas contra qualquer mudança e os mais profundos modos de alienação. É preciso estar atento para o fato que a ênfase na autonomia do cotidiano, nas ações micro-sociais e na esfera privada pode encobrir uma deliberada ausência do estado instituído a partir de pressupostos neo-liberais. Isto porque, nada melhor para esse tipo de estado do que uma sociedade que arca com suas próprias demandas, do que professores que fazem festas e jogos para arrecadar verbas que o estado, por princípio, deveria suprir, professores que procuram, por sua própria conta - muitas vezes em instituições particulares - melhorar sua formação sem nenhum apoio estatal, diretores que fazem sacerdócio, ou seja, o mergulho sem volta no cotidiano, sem olhar pelas escotilhas ou subir para respirar, pode nos afogar num saber/fazer que se pensa movimento mas não passa de repetição.
  Como podemos perceber, a educação é um campo social particularmente especial para verificarmos essas tensões; nela podemos observar as contradições sociais mais gritantes, o contínuo conflito entre visões antagônicas de sociedade e de homem, políticas educacionais diferentes e concorrentes, sejam elas elaboradas e executadas por grupos diferentes no poder de estado, sejam elas propostas e conduzidas pela sociedade organizada, através dos sindicatos, das comunidades, das universidades, etc.. É a partir dessas considerações que se coloca, então, nossa reflexão sobre as políticas educacionais atuais - existentes e inexistentes - de iniciativa do estado em sentido estrito e de iniciativa da sociedade civil.
  Sendo o cotidiano escolar sempre muito mais complexo do que pensam os agentes do estado, as políticas educacionais mal podem realizar avanços. Esses, quando ocorrem, se expressam, principalmente, de modo quantitativo (mais escolas, mais vagas, mais pessoal, uma verbinha aqui, outra li, etc.). Mas o verdadeiro movimento que as políticas educacionais devem buscar, se quiserem penetrar no cotidiano e fazê-lo avançar, tem que trabalhar, necessariamente, com os sujeitos concretos que produzem no dia-a-dia a educação: proporcionar-lhes boa remuneração, formação adequada e competente no campo teórico com acesso ao que se produz de conhecimento nas ciências mais recentes, condições práticas de trabalho dignas e incentivos morais.
No entanto, o que vemos são três tipos de políticas educacionais onde o estado incorpora as demandas sociais: primeiramente, aquela que se caracteriza por uma incorporação de modo demagógico-manipulador. Neste caso, os planos são traçados sem a participação da sociedade civil (a não ser fornecendo-lhes os conteúdos) e todo o processo de execução dos projetos pedagógicos - quando eles existem - não passa de um engodo; é o descompromisso total. Diante disso, na esfera civil, as ações cotidianas nas escolas se constituem em formas de resistência e/ou impotência; a situação é de calamidade.
  Em segundo lugar, temos as políticas populistas-messiânicas. Aqui, o estado propõe e executa projetos educacionais como que interpretando as demandas sociais, muitas vezes, sem que estas se manifestem claramente; o grupo dirigente no estado estabelece um pacto com setores da sociedade civil mais ou menos organizados, de modo a legitimar a posteriori suas ações na área educacional, por intermédio da dádiva e do assistencialismo. Essa maneira de fazer política educacional pode até trazer avanços e benefícios provisórios, mas não sobrevive às reviravoltas político-partidárias no poder. Isto porque as políticas populistas-messiânicas de estado resultam de situações históricas especiais, hegemonicamente descontínuas. O cotidiano aqui é bastante rico de entusiasmo, mas pouco organizado e não muito refletido em termos teóricos; a prática, o ativismo e o envolvimento emocional tomam o lugar da teorização, da construção consciente da prática e do comprometimento profissional.
  Em terceiro lugar, indicaríamos as políticas educacionais construídas com a participação coletiva da sociedade organizada, tanto nas propostas pedagógicas quanto nas questões orçamentárias. Neste caso, as ações civis e estatais se interpenetram: o cotidiano se politiza e o poder político se dilui na cotididianidade; a relação teoria-prática se aproxima de uma dialética mais concreta, permitindo à prática pensar a si própria, teorizar-se; ao mesmo tempo, incorporamos criticamente o saber acadêmico para permitir à teoria enriquecer-se de experiência prática. Ao mesmo tempo, a valorização dos profissionais da educação permite uma ação pedagógica mais consciente e mais tranqüila, do ponto de vista das angústias salariais e da formação docente. As ações educacionais não têm tanta repercussão quanto no segundo caso, no entanto, suas conquistas são muito mais duradouras.
Infelizmente, predominam no Brasil políticas educacionais dos dois primeiros tipos - especialmente as catástrofes do primeiro. Na verdade, o terceiro tipo é ainda um desafio e se inicia em alguns poucos (mas não pouco significativos) municípios do Brasil. Parece ser uma esperança possível no campo das políticas educacionais articuladas com o cotidiano e democráticas num sentido político mais amplo.

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