Integra

  Nos últimos anos, as discussões em torno da temática ’Relação teoria/prática’ têm sido relativamente constantes em nossa área de estudos. Como exemplos significativos de iniciativas mais estruturadas, podemos citar o IV Simpósio Paulista de Educação Física , cuja temática central foi dedicada ao assunto, e a recente publicação de um número da revista Motrivivência (ano 7, n.8, dezembro de 1995). Nesta edição, cerca de dez artigos se dedicaram a analisar a questão, sob os mais diversos enfoques, voltados aos mais diversos fóruns de atuação do professor de educação física.

  Na ocasião, tive a possibilidade de contribuir com um artigo, mais especificamente destinado a discutir a relação teoria-prática na formação profissional na educação física brasileira, analisada a partir de uma perspectiva histórica . Logo, ao ser convidado para contribuir com este Encontro, achei por bem recuperar algumas das discussões procedidas naquele artigo.
Entretanto, alguns desafios se lançavam. O primeiro era a necessidade de abordar o cotidiano do professor, uma lacuna no texto anterior. Depois, estava a me sentir incomodado com a reprodução exata de um texto que já fora publicado em outras duas oportunidades . O compromisso com a originalidade e novas reflexões surgidas após as publicações me instigavam. Por fim, acreditava que a especificidade do Encontro e do público presente indicavam a necessidade de uma produção diferenciada.

  Optei, então, por implementar mudanças significativas no artigo anterior, embora em certo sentido o mantivesse como base. Assim, nesta explanação pretendo: a) sem estabelecer uma relação de causa-consequência, buscar em nosso passado indicativos que permitam pensar a relação teoria/prática no presente; b) correr o risco de apontar caminhos para superar os impasses encontrados.
Isto é, espero apresentar argumentos suficientes para sustentar a hipótese com a qual venho trabalhando: desde os primeiros momentos da Educação Física no Brasil, teoria e prática se encontram deflagadamente dissociadas. A partir desta compreensão, então, pretendo sugerir possíveis iniciativas no sentido de superar tal problema.

  Reportemo-nos aos primeiros momentos da educação física brasileira. Lá buscaremos indicativos que serão utilizados como eixos de análise que podem permitir, em um continuum por nossa história, um esforço de síntese, uma determinada compreensão do problema.
Perceba-se, contudo, que não objetivo stricto-sensu desenvolver um estudo histórico. Assumo, enfim, a controversa abordagem histórica escolhida, acreditando ser adequada para os intuitos desta explanação .

Podemos afirmar que dois eram os campos de atuação dos primeiros ’instrutores’ de atividades físicas de forma institucionalizada: as escolas e as aulas específicas em espaços diversos, primórdios das nossas atuais academias, na época organizadas principalmente como Clubes de Ginástica . Perceba-se que o esporte já era uma prática cultural significativa no momento, entretanto não existia ainda uma preocupação específica com um profissional dedicado a seu ensino.
  As atividades eram conhecidas indistintamente, seja na escola ou não, como Educação Física e/ou Ginástica. Não havia uma preocupação com a uniformidade teórica em torno do conceito. Para alguns Ginástica e Educação Física eram a mesma coisa, enquanto para outros a Ginástica era o meio para a educação física.

  Na verdade, a dificuldade conceitual indica problemas de duas naturezas. Obviamente existe uma dificuldade inerente ao objeto de estudo de nossa área, uma dificuldade que se reflete diretamente nas definições e conceitos. Todavia, acredito que prioritariamente esta dificuldade esteja a expressar a falta de preocupação com tais definições. Ainda hodiernamente podemos identificar tal falha, tanto no âmbito das explanações cotidianas, quanto no âmbito das produções acadêmicas. Isto é, não é incomum o professor utilizar um termo sem ter clareza a que se refere, nem tão pouco a partir de qual(is) referencial(is) teóricos tal utilização está sendo procedida.

Notável e constante exemplo desta afirmação pode ser encontrado na utilização do termo ’esporte’, que para alguns é ’desporto’. Algumas vezes, os dois conceitos se confundem. Em outras, se adota um impreciso sentido diferenciado. Grande parte das vezes, o professor, entretanto, não compreende profundamente as diferenças, se é que existem. Na verdade, cabe ressaltar que existem diferentes conceitos de esporte (ou de desporto e esporte como querem acreditar alguns). E mais do que isso, que se pode compreender tais conceitos a partir de óticas diferenciadas.
  Retirando tal discussão do campo das possibilidades e hipóteses, posso utilizar um estudo que desenvolvi no ano de 1993 , com professores do curso de graduação do Instituto de Educação Física da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Entre outras, neste estudo cheguei a conclusão que tais professores, responsáveis diretos pela formação profissional, não tem claro os conceitos e os referenciais teóricos em torno do termo ’Educação Física’.

  A meu ver, hoje, assim como ontem, isto pode sugerir indícios de despreocupação com determinados aspectos teóricos, como estes fossem de menor importância. Poder-se-ia questionar: ora, mas em que um conceito pode influenciar na prática? A discussão, contudo, precede a tal pergunta, já que não existe trabalho sem uma preparação teórica anterior, sem uma fundamentação teórica que o embase. Existe, de fato, o desconhecimento dos referenciais; existe a não consciência acerca dos pressupostos básicos; como existe a utilização clara não assumida por medo das cobranças que já existem, fruto da mudança paradigmática que tem se operado paulatinamente em nossa área. Sendo claro: de acordo com o ambiente em que está inserido, é possível que alguns professores somente tenham alterado seus discursos para ficar de acordo com a ’moda’ do momento, mas em nenhum momento aventaram qualquer possibilidade de implementar mudanças efetivas.

  Voltemos ao século XIX, nos primórdios da Educação Física no Brasil. Naquele momento, paralelamente aos instrutores, um outro campo de relações se desenvolvia no interior das faculdades da época. Desde que o Colégio do Rio de Janeiro, antigo nome da faculdade de medicina que funcionava na Santa Casa de Misericórdia, passou a exigir teses para conceder o título de doutor, até o ano de 1889 cerca de 5 teses já tinham sido apresentadas tendo a Educação Física como objeto central de estudo , além de algumas nas Faculdades de Medicina de Pernambuco e da Bahia e outras na Faculdade de Direito de São Paulo (MARINHO, 1943) . Estas teses se dedicavam a discutir aspectos teóricos diversos acerca da prática de atividades físicas, embora deva-se levar em conta o aspecto bastante embrionário peculiar do estágio científico da época. De qualquer forma, deve-se sem sombra de dúvida considerar que estes foram os primeiros passos de uma preocupação científica em torno da Educação Física no Brasil.
  Tais médicos, entretanto, em geral não atuavam como ’instrutores’. Os ’instrutores’ normalmente eram imigrantes, que traziam de seu país o hábito de praticar as atividades físicas e no Brasil, ao se depararem com a difícil situação econômica, se ofereciam para ensinar; além dos militares, que bem precocemente demonstraram interesse pela área.

  Existem claros indícios que os ’instrutores’ não tinham acesso as teses dos médicos (a parte mais científica que embrionariamente se estruturava), devido ao inadequado sistema de distribuição de informações da época; mas também porque tal material parecia não despertar grande interesse. Na realidade, os ’instrutores’ começaram a publicar seu próprio material . Vejamos algumas características destas publicações, denunciadoras de uma condição que até hoje, obviamente de forma aperfeiçoada, se repete.
Tais publicações muito frequentemente se limitavam a apresentar exemplos de exercícios a serem copiados, conhecimento adquirido pela atuação cotidiana e/ou enriquecido pelos exemplos retirados de material semelhante trazido de países como a França ou Alemanha. No máximo, estes manuais traziam uma superficial, e quase sempre baseada no puro exercício do senso comum, discussão inicial. Longe de contribuir para organizar o pensamento, ainda o tornava mais confuso. De fato, alguns até se intitulavam ’manual sem mestre’, se considerando suficientes para abolir a figura do ’instrutor’.

  Vamos nos deter um pouco mais na discussão sobre os manuais, tão presentes no cotidiano dos professores. Ora, ao procedermos a análise anterior, de maneira nenhuma objetivamos estabelecer uma relação maniqueísta de valores. Naquele determinado momento histórico, somente o fato de se conseguir publicar já era um grande avanço, embora não possamos deixar de indicar os problemas que se apresentavam. O problema maior, na verdade, é panoramicamente perceber que no decorrer de nossa história continuou a ser usual tal procedimento: a publicação de manuais que contém verdadeiros modelos de atuação. Vejamos alguns exemplos.
Algumas editoras parecem dedicar espaços exclusivos e conseguem sucesso com livros desta natureza. Por exemplo, a Ediouro e a Hemus têm coleções dedicadas aos mais diversos esportes, individuais (tênis, tênis de mesa), coletivos (basquete, voleibol, futebol), lutas (karatê, judô) etc. A Sprint, a despeito de ultimamente estar imprimindo mudanças em sua linha editorial, ainda se destaca por obras em forma de manuais, principalmente de ginástica. Tais manuais geralmente contém um breve (aliás brevíssimo) histórico da modalidade abordada; algumas superficiais abordagens teóricas, muitas vezes confusas; e ao final uma série de exemplos a serem reproduzidos.
  A princípio não temos nada contra os manuais, se o professor não o utilizasse como uma bíblia, a ser seguida ipsis literis. Também seria necessário perceber que tal material deixa de discutir questões fundamentais, como os aspectos sociais, filosóficos, políticos. Enfim, ao utilizar tal material, o professor deveria estar ciente de sua fragilidade teórica. O problema não está no manual em si, mas na forma como a maioria dos manuais é organizado em nossa área, seguindo o modelo dos manuais técnicos de eletrônica e engenharia. O impacto e o sucesso de tais publicações se dá na medida que encontram eco entre professores ávidos por fórmulas que lhes poupem a árdua tarefa de pensar. São estes mesmos professores que invadem os cursos caça-níqueis de fim de semana, ministrados segundo o mesmo perfil prático.
  Buscando uma alternativa para tal tendência, este autor está engajado em um projeto coletivo que pretende escrever um manual sobre uma ótica diferenciada . Tal manual, ao invés de apresentar modelos básicos, apresentará as discussões teóricas básicas (a partir de óticas diferenciadas), os conceitos e a bibliografia básicos para os que querem se aprofundar. Outro exemplo de contraponto pode ser observado na obra de Nélson Carvalho Marcellino (1996) . Se compararmos sua obra, destinada a capacitação de animadores sócio-culturais, com a obra ’Curso de orientadores para atividades de lazer’ (1981) , organizada pelo Ministério da Educação e Cultura, veremos como o primeiro autor se diferencia de um manual tradicional. Aliás, é interessante observar como as estruturas governamentais têm estimulado o consumo de modelos/fórmulas fechadas por parte do professor.

  Enfim, esses são apenas alguns indícios que me permitem supor que desde os primórdios a parte teórica (científica) tenha se desenvolvido separadamente da parte prática, neste caso querendo significar um conhecimento unica e exclusivamente pautado nas experiências cotidianas, sem a preocupação de compreender e redimensionar tais experiências a partir de um determinado referencial teórico.

  De fato, muitos outros enfoques ainda poderiam ser levantados, como: a formação profissional, as diretrizes científicas determinadas pelos médicos, a separação das outras licenciaturas, entre outras. Devido ao espaço reduzido e enfoque centralizado, remeto os interessados aos artigos já citados no início. Prefiro concluir com alguns indicadores que pude colher, reflexões para encaminhar a superação da problemática.
  Urge, antes de mais nada, perceber que teoria e prática nunca estão verdadeiramente diametralmente colocadas. Por trás de toda ação prática existe sempre uma teoria embasando. O que têm ocorrido são distanciamentos de duas formas. O primeiro deles é derivado da falta de consciência teórica. Isto é, o professor não tem conhecimento, ou não quer ter, dos referenciais teóricos que podem e devem auxiliá-lo no desenrolar de suas propostas, se é que tem propostas claras.

  Já que cada grupo guarda diferenças entre si, segundo uma perspectiva que no mínimo considere e respeite os indivíduos (perceba-se que nem mesmo falei nas intencionalidades pedagógicas, dimensões fundamentais a serem consideradas), de nada valem modelos. Estes sempre estarão limitados a elementos idealizados e/ou grupos específicos. Sem dúvida, uma compreensão teórica aprofundada será necessária em todos os sentidos, sobre qualquer ponto de vista e fundamentalmente se o professor encarar sua prática como importante elemento de intervenção na estrutura social.

  Outro distanciamento se daria quando mesmo conhecedor de referenciais teóricos claros, o professor não consegue efetivá-los na dita prática. A dificuldade dessa coerência é até mesmo expressa em um ditado popular: ’na prática a teoria é outra’. Na verdade, este ditado usualmente citado para caracterizar depreciativamente os movimentos teóricos, carrega exatamente a bandeira que devemos ter em nossas experiências. É pura verdade que na prática a teoria é outra, porque na teoria a prática também é outra. E como a teoria é outra, reformula-se a teoria. E como a prática é outra, reformula-se a prática. Enfim, a teoria embasa a prática, que redimensiona a teoria, que de novo embasa a prática e assim vai em um círculo dialético interminável, até porque as situações com as quais o professor vai se deparar no decorrer da vida são tão variáveis quanto se possa pensar.

  Quero também dissertar sobre outro distanciamento: os estereótipos e até preconceitos que tem se estabelecido entre os acadêmicos e os ’da prática’. Na verdade este tipo de comportamento, que tem origem na arrogância de ambos os lados, bem faz lembrar o mesmo que ocorria no século XIX. Donos absolutos da verdade, acadêmicos produzem conhecimento e críticas contundentes sem considerar minimamente as condições da dita prática; e ’práticos’ se sentem ofendidos e melindrados pelas críticas, muitas vezes feitas de forma equilibrada e construtiva.

  Este tipo de antagonismo, longe de contribuir, somente mais distancia a possibilidade de reaproximação entre teoria e prática. Além do mais, desconsidera especificidades de cada atuação. O intelectual em si tem sua prática, que não necessariamente significa dar aulas em escolas de primeiro e segundo graus, mas que pode ser atuar no contexto do terceiro grau, orientar projetos de pesquisa, organizar seminários etc. O prático tem, como já dissemos, inerentemente uma teoria atrelada a seu trabalho. Então definitivamente, já que os trabalhos tem o mesmo valor e são inextricáveis, acabemos com estas denominações absurdas de ’teóricos’ e ’práticos’.
Finalmente, quero me colocar contra os pragmatismos utilitaristas excessivos advindos das discussões em torno das relação teoria-prática. Quero deixar claro que nem todo conhecimento produzido é operacionalmente instantaneamente aplicável. Que muitos destes conhecimentos somente no futuro terão utilidades desta natureza. Outros nem mesmo desta natureza, mas servirão de base para novas produções. Logo, são fundamentais e devem ser estimulados. O que não significa que somente se produza conhecimento desta natureza.
Equilíbrio parece ser a palavra chave que vai garantir uma produção adequada, que nem desconsidere as necessidades operacionais cotidianas, nem se limite a tais. Equilíbrio parece ser a palavra chave que vai garantir uma nova utilização ou a criação de novos tipos de manuais. Equilíbrio parece ser a palavra chave para que os professores, tanto aqueles mais ligados a universidade quanto os mais ligados às outras instâncias, possam balizar sua atuação e estabelecer o diálogo.

 Mas equilíbrio de forma alguma quer significar a escolha por ficar ’em cima do muro’. Sem dúvida, significa uma opção pedagógica clara, que passa por uma visão política e uma visão de mundo também muito claras.