Integra

  A análise do título de um evento, ou mesmo de uma conferência, pode contribuir para revelar a intencionalidade e as visões de mundo e de sociedade de quem o sugeriu. Além disto, pode tornar-se um interessante ponto de partida para reflexões sobre a temática destacada no título. No caso desta conferência, os organizadores incluíram no título três expressões que tomaremos como marcos iniciais para norteamento de nossos comentários: educação física escolar, relação teoria e prática e cotidiano do professor.

A escolha da expressão - educação física escolar - se por um lado mantém o termo educação física (tradicionalmente consagrado em língua portuguesa há mais de duzentos anos), por outro adjetiva-a. Ora, a teoria do conhecimento na qual nos estamos baseando sugere que uma área de conhecimento (ou disciplina acadêmica) configura-se, em primeiro lugar, a partir de sua especificidade epistemológica como modo de conhecimento e, apenas secundariamente, em termos da demanda como trabalho, com um valor de troca que uma sociedade concreta lhe impõe. Isto significa que, se a educação física possui especificidade epistemológica como área de conhecimento, é este o critério que se deveria aplicar para assegurar sua identidade, e não seu envolvimento com áreas que demandam sua intervenção, como a escolar, por exemplo. Mesmo admitindo-se a possibilidade desse envolvimento, a especificidade não é estabelecida a partir dele, mas sim a partir da especificidade epistemológica como área de conhecimento. Dessa maneira, parece contraproducente falar de campos de trabalho, como a educação física escolar pois, na medida em que se admite que a educação física possui especificidade epistemológica, este passa a ser o critério aplicado em primeiro lugar. Assim, educação física escolar não teria existência própria como campo de conhecimento, mas somente quando referenciada à totalidade da área de conhecimento denominada educação física. Em síntese, "se o singular é uma propriedade que não se repete, e que é próprio apenas a uma formação material dada (coisa, objeto, processo), o particular é a própria formação material, a própria coisa, o próprio processo, o próprio objeto. O particular é simplesmente o singular, mas é igualmente o geral. O particular é a unidade do singular e do geral" (CHEPTULIN, 1982. p.195).

  Finalmente, admitindo-se a especificidade epistemológica da educação física pode-se concluir que a ela está reservada, em um quadro geral da ciência, uma posição como área específica de conhecimento, nos moldes da Matemática, da Química, da Geografia, da História. Assim, da mesma forma que não se fala em matemática escolar, química escolar, geografia escolar, história escolar, não parece conveniente adjetivar a expressão educação física (educação física escolar). Consequentemente, julgamos não ter sentido destacar a educação física escolar como campo de confluência para atividades acadêmicas no nível da pós-graduação ou se constituir temática central de eventos no âmbito universitário, espaços propícios para a produção de conhecimento. Parece-nos mais pertinente discutir nestes espaços a educação física em sua totalidade

  O segundo ponto escolhido para reflexão refere-se à relação entre teoria e prática que o título sugerido evidencia. Certamente, como hoje se admite consensualmente, esta não é uma questão nova, uma vez que tem estado presente ao longo da história do pensamento humano e, de modo especial, da filosofia ocidental. Para Vera Maria Candau e Isabel Alice Lelis (1988) essa questão afeta todas as áreas do conhecimento, ainda que não com a mesma intensidade, mas essa problemática seria particularmente aguda nas chamadas áreas aplicadas de campos que incidiriam mais diretamente sobre a prática social.

  No campo da educação física a questão também não constitui novidade pois há décadas começou a ser tratada em trabalhos de vários autores estrangeiros (SÉRGIO, 1978; 1982; BRESSAN In: MASSENGALE, 1987; LAMOUR, 1989; BAYER, 1990) e nacionais (FARIA JUNIOR, 1987; PEREIRA, 1988; FANTINEL; FARINATTI; SILVA In: IV Simpósio...1994), GAMBOA, 1995; KUNZ, 1995; MARCELLINO, 1995; MELO, 1995; SANTOS FILHO, 1995; WAJSKOP, 1995). Foi tema de alguns eventos, como no IV Simpósio Paulista de Educação realizado, em 1994, pela Universidade Estadual Paulista (UENESP), em Rio Claro [a relação teoria e prática na educação física], e de número especial (1995) do prestigioso periódico Motrivivência [educação física: teoria e prática].

As muitas formas de conceber a relação entre teoria e prática podem ser reunidas em dois agrupamentos segundo as concepções que as marcam: dicotômicas e de unidade. As relações dicotômicas podem ser sub-divididas em dissociativas e associativas. Na visão dissociativa teoria e prática são isoladas e opostas (por exemplo, a primazia da teoria, defendida pelas abordagens ideal-racionalistas e a primazia da prática, reclamada pelas abordagens pragmático-utilitaristas). Portanto, o título sugerido pelos organizadores para esta conferência prende-se à visão dicotômica.

  Por outro lado, na relação associativa, teoria e prática são separadas mas não opostas. Entretanto, o primado é da teoria. A inovação vem sempre da teoria e a prática só terá relevância na medida em que for fiel aos parâmetros da teoria (abordagem positivista). A unidade teoria-prática constitui uma totalidade que se pode conceber sem que haja identidade entre elas. Haveria, portanto, no âmago de uma unidade indissolúvel, uma distinção entre teoria e prática.

  Por outro lado, sob a ótica do materialismo dialético prefere-se empregar o termo práxis, cuja noção é usada "para circunscrever o desejado vai e vêm contínuo entre a prática e a teoria" (BAYER, 1990. p.36). O conceito de práxis, na visão marxista, faz referência inicial à prática social, "totalidade de realizações cujo objetivo é a transformação da organização social" (ibid). Nela, a categoria da práxis é uma categoria central e é à luz dela que se devem abordar os problemas do conhecimento, da história, da sociedade e da própria realidade. Assim, através da práxis o homem, a sociedade e a história poderiam ser conhecidos e transformados. A práxis está comprometida com a modificação da realidade objetiva tendo em conta em conjunto os domínios do político e do econômico, da cultura e da ética.

  Finalmente, o terceiro ponto para reflexão refere-se ao estudo do cotidiano do professor, conforme o título proposto pelos organizadores. De nossa parte preferimos falar de cotidiano escolar, cujo estudo implica na existência de idéias diversas que incluem diferentes visões de mundo, de sociedade, de educação e de concepção de escola. Evidentemente, todas essas concepções se intercambiam pois, por exemplo, a compreensão da escola em uma sociedade capitalista, não poderia deixar de lado as contradições inerentes a esse modo de produção, com todas as suas implicações.

  Reconhece-se hoje em dia que a sociedade capitalista cria instituições capazes de legitimá-la através de uma ideologia dominante. Entretanto, sob a ótica de uma abordagem dialética da realidade social pode-se perceber que, paralelamente aos mecanismos de opressão e dominação, de luta pelo poder, existe contraposição ao sistema, através de movimentos de resistência, ainda que sob diferentes formas. Assim, em resumo, a realidade social se configura contraditória, expressando no seu cotidiano, por exemplo, o antagonismo de interesses entre classes sociais.

  A escola, como constitutiva da práxis social e não produtora dela, vê refletidas no seu cotidiano as marcas contraditórias de um sistema que mercantiliza as relações, as pessoas e as coisas, ao mesmo tempo que mercantiliza a força de trabalho, geradora de mais valia. Daquela mesma forma, convivem no dia-a-dia escolar movimentos que favorecem a consolidação da ideologia dominante e dos interesses do capital, com outros de resistência e confrontação que criticam a ordem vigente e estimulam a classe trabalhadora a lutar por seus direitos, por sua cidadania.

  Assim, estudar o cotidiano escolar é alcançar a sua práxis que, em certo sentido, sofre todo um conjunto de determinações da práxis social mais ampla, mas é marcada por particularidades da escola como instituição socializadora e transmissora do saber. O estudo do cotidiano escolar pode ser visto como uma unidade que apresenta três aspectos principais interrelacionados: o clima institucional que age como mediador entre a práxis social e o que acontece no interior da escola; a situação pedagógica da aula onde interagem professores e alunos, incorporando a dimensão social e a totalidade da dinâmica escolar; as formas de representação social através das quais a pessoa age, se posiciona, se aliena, se perde ou se recupera ao longo do processo educacional.

  Assim, admitindo-se o cotidiano escolar como unidade talvez seja mais producente focalizar o cotidiano da educação física na escola e não limitá-lo ao cotidiano do professor. O viés da proposta dos organizadores talvez se prenda à influência dos trabalhos pioneiros sobre o cotidiano escolar que seguiram as tendências internacionais, quase integralmente, pois saltamos a etapa dos estudos vinculados ao paradigma presságio-produto. As pesquisas no Brasil se iniciaram pela análise do que ocorria em aula, procurando descrever o ensino tal como ele ocorria nas classes de educação física (FARIA JUNIOR, 1980). Em que pesem as numerosas e importantes informações proporcionadas por aqueles estudos pioneiros (FARIA JUNIOR, CORREA, BRESSANE, 1982) sobre o que ocorria nas aulas, esses trabalhos apresentavam algumas limitações. Desenvolvidos em um estágio epistemológico em que predominava o paradigma processo-produto, aqueles estudos não levavam ainda em consideração o contexto (sócio-político-econômico) em que o ensino se desenvolvia e as características particulares e idiossincráticas das escolas.

  Nosso país, ainda que às vezes não se admita, sempre foi marcado por grande diversidade nos aspectos étnicos, raciais, lingüísticos, religiosos e de classe social. As instituições e as estruturas do Estado apenas ajudam a moldar as várias configurações da diversidade cultural. Os processos, os mecanismos e as razões de por quê e como essa diversidade opera, bem como seus efeitos na educação, têm sido subestimados. Entretanto, uma educação voltada para a perspectiva multicultural de nossa sociedade deveria, além de acautelar o acesso e a permanência da classe trabalhadora na escola, assegurar um ensino de qualidade e garantir o direito ao pluralismo cultural.

Assim, apesar de há muito os setores progressistas defenderem que a educação física "... há-de garantir a igualdade de oportunidades, independentemente da condição social dos educandos ..." (SÉRGIO, op. cit.), sob a ótica desse direito, o modelo de desenvolvimento da educação física brasileira tem permanecido "extremamente injusto [...] uma vez que inúmeros segmentos [oriundos da classe trabalhadora principalmente] a ele não têm acesso, encontrando-se por isso marginalizados" (FARIA JUNIOR, In: COSTA, 1981).

  Na tradição do pensamento progressista brasileiro a luta por uma educação e um ensino de qualidade envolve uma noção de qualidade vinculada estritamente ao enfrentamento às desigualdades, às discriminações, às dominações e às injustiças de qualquer natureza. Alertamos aqui que nesta nossa intervenção a concepção que usamos para o termo qualidade não deve ser confundida com a acepção que lhe atribui a nova direita, vinculando-a noção a uma ótica econômica, de mercado, ou administrativa, gerencial.

  Estudos recentes sobre o cotidiano escolar mostram que racismo, sexismo, ageism e classismo são manifestações endêmicas na educação brasileira em geral, e na nossa educação física em particular (FARIA JUNIOR, 1989 In: FARIA JUNIOR, 1993). Estudos sobre a práxis de nossa educação física, confirmam a hegemonia de uma concepção de educação física burguesa, branca, católica e machista, que se vê reforçada na literatura especializada. Isto se evidenciou na análise que fizemos de livros textos de educação física, em particular dos que tratam dos jogos infantis e brinquedos cantados. Muitos exemplos em relação a classismo e a discriminação religiosa se avolumam nesses livros. Encontramos, também, livros eivados de conotações racistas, fazendo distinções maniqueístas das pessoas pela cor da pele (o negro, pegando criancinhas, representaria o mal) além de se revelarem preconceituosos e estereotipados (colocando em destaque a figura do homem preto, que faz medo). Manifestações de ageism também se avultaram, reforçando comportamentos reprováveis como arremedar um idoso, além de reforçar preconceitos e estereótipos em relação à mulher idosa.

  Outros estudos mostram ainda que, através do reforço da masculinidade e da feminilidade, a educação física funciona como agente determinante na reprodução da divisão sexual do trabalho. Análises mais recentes desenvolvidas "sob a ótica da teoria crítica têm possibilitado avançar para além das relações de classe e gênero sob o capitalismo. Eles acrescentam a questão da opressão e do controle patriarcais" (FARIA JUNIOR, 1995. p.21). Ainda quanto ao sexismo, Carlos Fernando Cunha Junior e Victor de Andrade Melo, após estudar experiências vividas por homossexuais na vida escolar, denunciam processos discriminatórios da educação física no que concerne à orientação sexual dos alunos. Em resumo, processos opressores e discriminatórios na educação física têm sido constantemente experimentados por muitos em nossa sociedade. Privilégios para uns e óbices para outros têm estabelecido os limites de participação (FARIA JUNIOR, 1995).

  Por outro lado, parte da nova geração de professores de educação física vem se tornando mais consciente das desigualdades existentes na sociedade brasileira entre ricos e pobres, brancos e negros, homens e mulheres, jovens e idosos. Entretanto, a maioria dos nossos docentes ainda têm predominantemente experiências em ambientes monoculturais, em escolas, clubes, comunidades e academias e por isso tendem a estar pouco sensibilizados em relação às questões da diversidade cultural. Exercer o magistério em uma sociedade multicultural exige muito mais do que tolerância pela diferença cultural. Exige respeito e apreciação pela diferença! São temas como esses que almejo ver discutidos nesse evento.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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