Resumo

Quando os Professores Jorge Bento e António Marques me convidaram para fazer o elogio do Professor Nuno Grande, no âmbito da homenagem que a FCDEF lhe presta a propósito da sua jubilação, confesso que a minha primeira tentativa foi a de mergulhar no seu currículo e detectar um conjunto de intervenções e de aspectos-chave capazes de, de uma forma impressionista, proporcionarem um retrato que eu desejaria pertinente mas que seria, necessariamente, tosco e incompleto. Esta tarefa, à partida fácil na medida em que se confinava à moldura do seu currículo, revelar-se-ia, pelos mesmos motivos, de uma dificuldade abissal. O seu currículo tem, como todos sabemos, a profundidade da Fossa das Marianas. O risco de, mesmo utilizando o meu batiscafo pessoal, não ter luz suficiente para a essa profundidade distinguir as formas pregnantes, isto é, o que interessa, era muito grande. Abandonando a ideia do retrato, decidi-me por uma paisagem. Uma paisagem com uma geometria variável que pudesse funcionar como um mosaico fluido, uma paisagem fractal. Ou seja, uma paisagem sem escala. Construindo uma paisagem sem escala, permitiria que os múltiplos heterónimos de Nuno Grande surgissem na sua configuração habitual e, mantendo-me no registo plástico, poderia ainda piscar os olhos a Abel Salazar, seu mestre em termos de intervenção cívica, científica e cultural e, nesse sentido, meu metamestre, o mestre do meu mestre. De facto, formalmente, Nuno Grande foi meu mestre. Fui seu aluno de anatomia no ICBAS e seu assistente na FCDEF, mas também de facto, formalmente, o discípulo formal que fui pode hoje ser considerado um traidor: o assistente de Anatomia virou professor de Pensamento Contemporâneo. Se uma análise superficial legitima esta história de uma traição, uma análise mais atenta diz o contrário. Estou hoje convencido que o Professor Nuno Grande sempre foi meu professor de Pensamento Contemporâneo. Porque, para lá do fulgurante professor, que transformava a aula num momento único de comunicação, de tal forma que aquela que era por definição a cadeira menos comunicativa de um curso de Medicina ou Ciências do Desporto se transformava, num passe de mágica, em campeã absoluta de audiências, para lá desse professor-total, havia uma inteligência cintilante que fazia da disciplina do cadáver uma arte do vivo. O sortilégio da vida. A Anatomia de Nuno Grande era uma disciplina do olhar, um método de dissecação da realidade. A sua lição de anatomia era uma lição de vida. O seu teatro anatómico era o mundo contemporâneo. A possibilidade de pensar o mundo e intervir sobre ele. Com um mestre desta natureza nada mais natural que um discípulo que passasse a olhar o corpo como um território de acelerações e inscrições múltiplas. O corpo passaria a ser para mim, e o culpado era Nuno Grande, o lugar onde a Anatomia e o Pensamento se cruzam. Ou melhor, o lugar onde o pensamento da Anatomia se cruza com a anatomia do Pensamento. É por isso que hoje continuo a sentir-me seu discípulo de Anatomia e continuo a senti-lo como meu professor de Pensamento. Continuo a sentir que um pensamento morfológico da realidade centrado no corpo é absolutamente essencial na compreensão do mundo contemporâneo. O pensamento morfológico é o pensamento da diferença e a Anatomia Normal é a anatomia da variação. A anatomia da variação é a anatomia da vida. Estou convencido que a minha aproximação ao caos do