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Era quase inverno de 2022 no hemisfério norte, época pouco usual para competições previstas para a temporada de verão, e como previsto, a bola começou a rolar em campos no meio de deserto onde brota combustível fóssil. “Quanta ousadia levar o esporte nascido na terra de gentlemen para a casa daqueles que quase dominaram a Europa séculos atrás”, pensou o Barão.

Ressuscitado depois de quase 100 anos, devido à uma contenda nunca antes imaginada, ele tentava entender o que acontecera em menos de um século com o esporte que ele tanto ajudara a construir. Tudo bem que o futebol já não gozava de todo o seu respeito desde que Jules Rimet, o presidente mais longevo da FIFA, entendera que as regras do amadorismo não se aplicavam a si, levando à retirada do esporte bretão do programa olímpico dos Jogos de Los Angeles, de 1932. Incrédulo, aquele senhor de sobrancelhas hirsutas e bigode marcadamente personalizado, matutava como podia um seu conterrâneo desafiar as regras que regiam de forma tão objetiva o universo da bola. “Eu já começava a sentir o peso dos anos, a falta de recursos pessoais materiais e o frio das terras helvéticas, quando isso aconteceu”, lembrou o Barão surpreso com o impacto que aquela ousadia ainda causava em sua alma.

O mundo, naquele tempo, ainda guardava a objetividade dos séculos anteriores. Dividido entre colonizadores e colonizados, pela força das armas ou do capital, o planeta tinha no Norte a determinação gráfica de estar acima e no centro do mapa mundi. Ali se concentravam os colonizadores. Abaixo de uma linha batizada com o nome de uma nação, que curiosamente estava mais para o Sul do que para o Norte, estavam basicamente os colonizados, fornecedores de preciosas matérias-primas, denominados “Novo Mundo”, que aliás de novo só havia o desconhecimento dos “velhos” sobre limites desconhecidos por eles. Foram necessárias algumas décadas para que um sociólogo lusitano reconhecesse a importância dos saberes produzidos naquelas terras habitadas por uma humanidade chamada de selvagem, bárbara ou outros adjetivos carregados de preconceito, aos quais denominou epistemologias do Sul.

Pensador reconhecidamente eclético, afinal tinha formação em história, pedagogia e filosofia, o Barão olhava para o estádio repleto de uma gente tão diversa quanto as dúvidas que lhe passavam pela cabeça. E nesse momento lembrou-se de uma conversa lá no outro plano com um pós-atleta olímpico que pouco ou nada tinha da tropicalidade de onde vinha, a começar do nome. Olhos claros, fala empolada esse brasileiro que chegou a ser o segundo dirigente mais longevo da FIFA, fazia questão de se gabar da virada de jogo que promovera na instituição depois de pôr a escanteio o inglês que havia sabotado o Brasil na Copa de 1966. E com um misto de perplexidade e lamento, emendou: “O Jean Marie bem que me explicou, mas eu não tinha condições de entender... Para se ter e manter o poder de uma instituição global era preciso incluir os países colonizados que pouco ou nada representavam para o mundo europeu esportivo do meu tempo. C’est la vie! O mundo já não é mais o mesmo, mesmo! Mas, daí a permitir que eles levantem o caneco, já é demais!”

E entre imagens e lembranças pretéritas e pretéritas mais que perfeitas, olho fixo no gramado onde a bola já rolava no jogo semifinal daquele campeonato mundial, um texto escrito em 1905 veio à mente daquele nobre defensor dos valores morais criados por Thomas Arnold, ampliados para outras instituições para além da Rugby School. Nele explicitava como a sua França via a África colonizada e estabelecia o tipo de relacionamento possível entre o norte e o sul. “A França será livre para trazer a paz com o comércio para o coração do velho Marrocos no dia em que deixar de considerá-lo como um Estado, para ver nele algo diferente de um agregado de comunidades com as quais é permitido negociar separadamente e que poder ser organizado passo a passo”.

Os anos se passaram e o futebol continuava a reservar surpresas aos nobres detentores dos poderes esportivos

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