Integra

 Devido ao forte relacionamento da educação física com o esporte, a partir da década de 60, começa-se a perceber a importância da sistematização teórica do conhecimento da técnica, no sentido de se conseguir obter um melhor rendimento motor.
Isto aconteceu pelo fato de que com a grande difusão do esporte a nível internacional e nacional, nesta época, ele passou a ser utilizado pelos diversos governos, como uma forma de estratégia política para demonstrar a supremacia de uma nação sobre a outra, através do número de medalhas que eram conseguidas em competições (Ghiraldelli Júnior, 1988).


 Com a sua evidência nos meios de comunicação e possibilidade de controle da massa, no sentido de tentar provocar a desmobilização popular, o esporte no Brasil foi utilizado por facilitar o desenvolvimento dos valores que eram necessários para continuar a hegemonia da classe dominante, ou seja, manter a perspectiva de uma sociedade funcionalista, que já vinha sendo trabalhada em concepções anteriores de educação física, como a Higienista e a Militarista, classificadas por Ghiraldelli Júnior (ibid.).
Nesse sentido, é nessa época denominada por Ghiraldelli Júnior (op. cit.) de Educação Física Competitivista, que podemos perceber o deslocamento do caráter científico dado a educação física. Com o aprimoramento técnico, surge a preocupação de se desenvolver nos alunos outros componentes motores que tiveram sua relevância deixada a segundo plano, em detrimento do preponderante desenvolvimento biológico que era supervalorizado anteriormente.


 Assim, as áreas de conhecimento que davam o embasamento teórico à educação física, ou seja, aquelas provenientes da área biológica, não conseguiam mais fornecer os respaldos necessários, onde percebemos então, o desenvolvimento de outras áreas de conhecimento.


 Com isso, temos o crescimento de áreas como aprendizagem motora, biomecânica, fisiologia do esforço e treinamento desportivo já que essas áreas tinham a fundamentação necessária para estudar e preparar o homem para o seu desempenho nas competições desportivas e, além disso, por possibilitarem o desenvolvimento do conhecimento da técnica. Não podemos desconsiderar que havia também um apoio da tendência educacional que se firmava no Brasil nessa fase, denominada por José Carlos Libâneo (1985) de Pedagogia Liberal Tecnicista.


 Por se desenvolver em meio a essas características no contexto nacional, há uma supervalorização do ensino de um modelo de técnica, onde as respostas já são determinadas de acordo com este modelo que tem que ser seguido, sendo este baseado no esporte de alto rendimento.


 Assim, com o desenvolvimento do esporte e sua influência sobre a sociedade, a escola e, da mesma forma, a educação física, passam também a sofrer a sua influência. Devido ao que Valter Bracht (1989) chamou de perda da autonomia pedagógica, ou seja, a educação física incorporar os conteúdos trabalhados fora da escola sem fazer uma análise dos mesmos, começou-se a trabalhar "o esporte na escola". Desta forma, esse é o conteúdo que passa a ser utilizado pelo professor, sendo este entendido enquanto o esporte de rendimento.


 Neste sentido, para o estudo científico da técnica, a biomecânica tem fundamental importância por ser o corpo de conhecimento responsável por estudá-la. Dependendo da forma pela qual é trabalhada, ela pode ajudar a perpetuar essa relação entre a técnica e o tecnicismo desenvolvida. Assim sendo, o objetivo deste estudo é discutir como a biomecânica tem trabalhado o estudo da técnica na educação física brasileira.


  A Biomecânica e sua Produção Teórica para a Educação Física


 Devido ao fato da biomecânica ter se desenvolvido numa pedagogia tecnicista e numa concepção de Educação Física Competitivista, ela sofreu suas influências e isso facilitou para que tivesse uma maior relação com a questão do esporte de rendimento. Com isso, a biomecânica tem recebido algumas críticas no sentido do seu afastamento com relação a educação física ministrada nas escolas, seja no que diz respeito à suas pesquisas ou em seus livros didáticos (NOZAKI, 1996).


 Podemos perceber que existe a presença dessa relação entre a biomecânica e o esporte em seus livros didáticos, quando estes tratam seus conteúdos relacionando-os com as técnicas desportivas como forma de fornecer uma fundamentação para o trabalho realizado entre treinador e atleta. Assim, James Hay (1981) afirma que
"os conhecimentos de biomecânica armam o técnico para a escolha da técnica de execução apropriada e para descobrir a causa das falhas mais importantes, permitindo melhorar seu desempenho atlético" (p.4).


 Os livros de uma maneira geral, seguem essa mesma linha de abordagem, entendendo o esporte sob a vertente meramente competitiva, do alto rendimento. Em análise mais detalhada dos mesmos, Rejane Valvano Correa da Silva (1996) ressalta que durante as explanações termos como atleta, nadador, ginasta, arremessador hábil, mergulhador, são muito utilizados "dando um entendimento que não são pessoas, alunos, crianças, indivíduos que realizam os movimentos, mas indivíduos especializados e já bem condicionados" (p. 57).


 Podemos mostrar outro exemplo quando Susan Hall (1993) discorre em seu livro-texto da produção da biomecânica do esporte. A autora afirma que esforços têm sido feitos no sentido de melhorar o desempenho dos atletas, onde por exemplo constatou-se que
"...os melhores corredores do mundo têm passadas mais rápidas e maiores e um tempo de sustentação menor que seus competidores menos destacados.(...) Fatores que parecem contribuir para um melhor desempenho no salto em distância são a velocidade horizontal do atleta no início do último quarto da passada de aproximação e mudança na velocidade horizontal durante a próxima fase de suporte. Outros fatores que podem ser previstos são: as velocidades horizontal e total do atleta na decolagem e a distância de vôo. (...) Também foi documentado que embora alguns nadadores de alto nível se destaquem porque mantêm uma velocidade para frente relativamente constante, os ciclos de braçada de outros nadadores são caracterizados por velocidades extremamente altas, com flutuações moderadas" (p. 4).


 Outra conclusão tirada por Silva (op. cit.) é que para exemplificar os conceitos de biomecânica, esses livros utilizam a área desportiva em 87,5% dos casos analisados, assim como abordado anteriormente, numa perspectiva do alto rendimento.
Percebemos então um problema, já que a biomecânica trabalhando nessa abordagem voltada para o rendimento de alto nível, pode fazer com que o professor ao trabalhar com esse conteúdo dentro da escola, embasado pelas áreas ditas científicas da educação física, utilize-a para a seleção de futuros atletas para o esporte em níveis competitivos. Luiz Antônio dos Anjos (1990) por exemplo, nos relata que


 "...existem milhares de "laboratórios" prontos para serem utilizados. Refiro-me às escola de 1o e 2o graus, onde concentra-se o maior número de profissionais da atividade física, que, treinados cientificamente, terão condições de produzir conhecimento sobre nosso povo. Com relação ao esporte, deve-se começar a estudar a criança, pois o que acontecer com ela determinará a qualidade dos futuros atletas campeões" (p. 111-112).


 Nesse sentido, poderemos estar contribuindo para que o paradigma da Aptidão Física (Coletivo de Autores, 1992) continue sendo utilizado no interior das escolas, onde "o conhecimento que se pretende que o aluno apreenda é o exercício de atividades corporais que lhe permitam atingir o máximo rendimento de sua capacidade física" (p.36). Com isso, a educação física e biomecânica estarão ajudando a trabalhar com a elitização do esporte dentro da escola, onde estas terão o papel de selecionar talentos para brilhar no esporte de rendimento.


 Alguns autores que pesquisam a biomecânica parecem discordar dessa relação. Para Hans - Joachim Menzel (1992) a biomecânica pode ser dividida em três sub-grupos: do rendimento, antropométrica e preventiva. Em relação à questão da biomecânica do rendimento, este autor (ibid.) ressalta que não necessariamente ela está voltada para o esporte de alto nível, devendo ser visualizada como uma análise da técnica do movimento.


 Concordamos com este autor, no entanto, não percebemos no seu texto uma abordagem que privilegie a técnica do movimento fora do alto rendimento. Mesmo que de forma sutil, este mantêm de forma subjacente relações com o esporte de rendimento. Podemos perceber nos seus exemplos, o fato de se referirem a pessoas como ‘velocistas’, ‘atleta’, tendo o mesmo tipo de abordagem revelada por Silva (op. cit.).


 Mesmo quando tem-se tentado sair da questão do esporte de rendimento, como nos aponta Menzel (op. cit.) em relação ao esporte escolar e lazer, essa contribuição tem sido insatisfatória. Para ele, a biomecânica tem sua importância no sentido de direcionar e diagnosticar algum déficit da condição física, trazendo benefícios para prevenção e compensação de desgaste desfavorável na vida cotidiana. No entanto, não discute baseado em que se direciona e se diagnostica essa condição física. Estamos mais uma vez reproduzindo os modelos do esporte?


 Podemos perceber, desta forma, que a discussão em biomecânica está voltada para a melhor execução do movimento para um desempenho em competições de alto nível. No entanto, não se discute quais estratégias devem ser adotadas para fazer com que se consiga tais respostas motoras. Nesse sentido, perguntamos: mesmo na perspectiva do alto rendimento, qual a finalidade de se saber o melhor gesto motor se não soubermos como ensiná-los? Além disso, temos que ter a preocupação de como se ensinar tais elementos, não esquecendo o caráter pedagógico prioritário que se deve ter quando falamos da escola.


 Para James Hay e J. Gavin Reid (1985) o professor de educação física e o técnico precisam responder algumas perguntas que se fazem presente na sua prática pedagógica diária, como por exemplo "Qual a melhor técnica?"; "Devo ensinar esta técnica para meus alunos ou ela recomendada apenas para atletas de alto nível?", "O que está neste movimento e como posso corrigi-lo?".


 Assim considerando, para Carmen Lúcia Soares (1986) todo o movimento, seja ele codificado (ex: gesto desportivo) ou criado (ex: expressão corporal na dança), necessita de uma técnica para o seu desenvolvimento. Essa técnica deve ser entendida como o aspecto mais operacional de uma atividade humana. Em função disso, para o ensino da educação física a técnica se faz de suma importância "enquanto utilização mais adequada do corpo com finalidade ulterior, ou seja, não existe técnica descolada da atividade humana e é só nela que adquire sentido e significado" (SOARES, 1994, p. 26).


 Não podemos, no entanto, fazer uma relação equivocada entre a técnica e o movimento. Assim como ressalta a autora (ibid.), quando se faz uma associação imediata da técnica ao tecnicismo ou a uma execução de um gesto de performance de rendimento, desconsidera-se a compreensão da técnica ao ensino da educação física na escola. Ela é de suma importância enquanto uma utilização adequada do corpo com fins posteriores, como forma de atingir outros objetivos (que não, necessariamente, o da performance de alto rendimento). Desta forma, a técnica "é um elemento constitutivo e singular das formas culturais de atividade física tematizadas pela Educação Física como o Jogo, o Esporte, a Ginástica, a Dança entre outros" (p. 26)


  Considerações Finais


 A maneira como tem sido produzido o conhecimento em biomecânica possibilita que façamos uma relação desta com o paradigma da Aptidão Física (COLETIVO DE AUTORES, op. cit.), na medida em que não se tem discutido outras forma de movimento existente na nossa cultura corporal. Além disso, quando se privilegia a questão do esporte como objeto de estudo, este é retratado na perspectiva do alto rendimento, fazendo com que o conteúdo relevante a ser ensinado na escola esteja representado pelas técnicas de cada esporte sem que se faça uma análise crítica desse conteúdo.


 Como nos aponta Hay e Reid (op. cit.), começa-se a perceber que há a necessidade de estabelecermos uma relação diferenciada entre a técnica exigida pelo alto rendimento e a técnica que pode ser ensinada aos alunos de educação física na escola.
Devemos perceber que a técnica não pode estar entendida como um fim em si mesma, reduzindo o movimento a um plano estritamente biomecânico, mas é necessário que ela ajude na realização do mesmo, ou seja, que contribua como um meio para sua execução (Soares, 1986).


 Da mesma forma, a biomecânica precisa ser revista, no sentido desta ter uma contribuição numa perspectiva diferenciada do que ela vem sendo utilizada, permitindo que se estabeleça uma nova visão da mesma.
 Atualmente, a técnica e a biomecânica ainda estão muito relacionadas com a um projeto de educação física hegemônico baseado no paradigma da Aptidão Física, onde seus conteúdos estão baseados no modelo esportivo não tendo espaço para englobar outras formas de movimento.


 Faz-se premente a busca de outras perspectivas para trabalharmos em biomecânica, onde se procure uma real contribuição para o processo pedagógico que é de suma importância para o enriquecimento das aulas a serem ministradas, e que não se fique restrito apenas a questão do esporte de rendimento como conteúdo de ensino.

Referências Bibliográficas

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