O ensino dos gestos técnicos do esporte na Educação Física
Por Diná Teresa Ramos de Oliveira (Autor).
Em V EnFEFE - Encontro Fluminense de Educação Física Escolar
Integra
Educação física e esporte - prática social
O conhecimento da Educação Física está representado pela cultura corporal e um dos seus temas, eixo de reflexão deste trabalho, é o esporte. A preocupação central desta análise está no tratamento pedagógico dado ao ensino das técnicas específicas ou gestos técnicos específicos das modalidades esportivas nas aulas de Educação Física.
A Educação Física trab¬¬¬alha com temas da cultura corporal - o jogo, a dança, a ginástica, as lutas e o esporte - elementos construídos com um sentido e significado diante de um contexto sociocultural-histórico. Portanto, as aulas Educação Física, diante da perspectiva da qual me coloco, tem como objetivo possibilitar a apreensão, o questionamento, a reconstrução e (re)significação do conhecimento acumulado na esfera da cultura corporal.
Ao considerar que o esporte, bem como os demais elementos da cultura corporal, assume e exprime valores sociais, ideológicos, morais, "(...) que envolve códigos, sentidos e significados da sociedade que o cria e prática" (Soares e Col., p. 219, 1992), que por sua vez, estão na sociedade brasileira predominantemente permeados de preconceitos e discriminações raciais, sexuais, estéticas, religiosas, classistas, etc. (Faria Jr, 1996), aponta-se para a Educação Física a necessidade da resistência e do confronto para a superação de tal quadro, que exige um tratamento pedagógico contextualizado e não limitado ao modelo hegemônico esportivo - do alto rendimento, do esporte espetáculo e seus conseqüentes desdobramentos.
O esporte moderno e seu ensino
O esporte moderno, com suas origens no século XVIII, é fruto das decorrentes transformações advindas com a Revolução Industrial, e produto das transformações sociocultural-histórica e econômica da Europa, principalmente Inglaterra e posteriormente emanadas pelo mundo (Bracht, 1997; Brunhs, 1993). Na atualidade, o esporte apresenta-se de tal forma organizado, que muitas modalidades são conhecidas mundialmente, com suas regras, jogadores, espaços próprios, pontuações, aspectos táticos, sistemas de jogo, formas de disputa, torcida, etc. bem como, são conhecidos os gestos técnicos específicos de cada modalidade esportiva - elementos que também foram construídos, modificados e ressignificados pelos homens nos mais diferentes contextos em que podem ser observados.
A preocupação com o ensino do esporte, ao considerá-lo uma prática social, orienta-se pela perspectiva de uma abordagem que supere as características predominantes que assume o esporte moderno, que segundo Bracht (1997) são: a competição, o rendimento físico-técnico, o recorde, a racionalização e cientifização do treinamento; a estas características acrescento ainda o sexismo, a exclusão dos menos hábeis, ágeis e fortes, a hierarquização, o selecionamento, a disciplina e o respeito incondicional as regras e normas. Das características aqui apontadas fica evidente o tipo de Educação e Ed. Física priorizada e realizada - não crítica, disciplinadora, reprodutora, e perpetuadora do modelo hegemônico esportivo e social.
As principais propostas metodológicas para o ensino do esporte coletivo não tem considerado o esporte enquanto fenômeno sócio-cultural, uma vez que perspectivam o seu ensino de forma fragmentada, isolando o ensino de suas técnicas específicas (1); trabalham indiferentemente as modalidades esportivas na perspectiva das regras oficiais; realizam sessões com repetições exaustivas de gestos técnicos, que tem como modelo as equipes de alto rendimento; dentre outros aspectos que poderiam ser destacados. Uma proposta para o ensino do esporte que pretenda superar estas lacunas apontadas anteriormente terá que considerar o esporte e suas técnicas específicas enquanto construções humanas e praticas sociais. Em que, a realização dos gestos técnicos específicos das modalidades deve ser desenvolvida de forma contextualizada, com movimentos que atendam a realidade dinâmica do jogo de maneira mais eficaz.
Técnicas esportivas, técnicas corporais - construções humanas
Assim, é da compreensão das técnicas específicas do esporte, que se pretende aprofundar este trabalho, uma vez tais técnicas ou gestos técnicos específicos foram e são produzidos, aperfeiçoados e realizados de forma significativa pelos homens ao longo do tempo nas mais diferentes modalidades existentes (e por existir). Para orientar esta discussão a respeito do esporte com suas técnicas específicas, portanto técnicas corporais e também a questão sobre o que é eficaz, recorro aos estudos de Marcel Mauss e Jocimar Daolio.
Na obra de Mauss (1974), em seu texto sobre a "Noção de Técnica Corporal" (2), na verdade texto originado de uma palestra de 1935, há importantes contribuições para a área da Educação Física. Apropriando-se das discussões iniciadas por Mauss, temos Daolio (1995, 1997) direcionando este tema para a Educação Física, em que discute, dentre outras idéias, a questão das técnicas específicas do esporte e também a eficiência e eficácia simbólica, pontos aos quais trata a seguir este texto.
Um dos primeiros autores, senão o primeiro, Marcel Mauss apresenta a noção de técnicas corporais, que é para ele "as maneiras como os homens, sociedade por sociedade sabem servir-se de seus corpos" (1974, p. 211). Para Mauss uma técnica é um "ato tradicional eficaz" (1974, p. 217), que apresenta valores determinados socialmente, que são aprendidos através da "imitação prestigiosa", modificados e ressignificados pelos grupos ao longo do tempo e leva-me a afirmar, que imprimem ao corpo certas marcas. Uma vez que, todo gesto e movimento humano representam uma técnica que faz parte de uma tradição social, afirma Daolio (1995), "toda técnica corporal é uma técnica cultural e, portanto, não existe técnica melhor ou mais correta senão em virtude de objetivos claramente explicitados e em relação aos quais possa haver consenso entre professores e alunos" (p.95). Dessa forma a execução de um gesto técnico esportivo é, ou deveria ser, um movimento que o jogador realiza de maneira a atender de forma mais eficaz cada momento do esporte, principalmente quando se trata dos jogos esportivos.
É muitas vezes encontrado na Educação Física um entendimento limitado quando se trata da questão das técnicas corporais do esporte, pois ainda há uma grande ênfase no ensino das técnicas de maneira isolada. Algumas vertentes da Educação Física tem priorizado na observação dos indivíduos o aspecto biológico, deixando para segundo plano e até mesmo desconsiderando os aspectos social, psicológico, histórico, etc. como se fosse possível apreender o homem de forma isolada e estática. Dessa forma, continua a Educação Física promovendo sessões de aula com longas repetições de movimentos, com os chamados fundamentos do esporte. Neste caso, consequentemente, desconsidera-se que as técnicas corporais específicas das modalidades esportivas são atos construídos para atender da melhor maneira o esporte e o jogo (que é imprevisível). Assim nega-se o lúdico, pois fazer séries com um mesmo movimento todas as aulas não diverte; coibi-se a criatividade dos alunos, que perdem a possibilidade de jogar de maneira dinâmica como exige um esporte coletivo e a sociedade em constante transformação; padroniza-se os movimento e impede-se a ressignificação do esporte e dos seus gestos, também tolhe-se as possibilidades de superação e reinvenção do esporte, bem como determina-se um único modelo de execução dos movimentos.
Outro aspecto da obra de Mauss a ser destacada é sua grande contribuição sobre a questão das técnicas corporais "naturalizadas", uma vez que toda a nossa expressão corporal a qual diz-se "natural", é de fato cultural, fruto de um aprendizado social, de uma imitação prestigiosa(3). Para exemplificar tal questão cito a discussão feita por Mauss, que trata do andar humano, ao apontar que cada modo específico de andar é adquirido e não é uma forma natural de andar. Assim, inicia-se aqui uma discussão quanto a questão da "naturalização" dos gestos técnicos esportivos. Ou seja, o modo de andar das pessoas é um ato cultural, bem como, a execução de certos movimentos do esporte também o é, e por sua vez, a maneira de correr dos jogadores de basquete, também é determinada culturalmente, e mantém-se no esporte porque atende com eficiência e porque não, com eficácia simbólica o contexto esportivo. Por exemplo o arremesso do basquete, que representa uma técnica corporal específica da modalidade, pode ser realizada pelo jogador com "naturalidade", assim observa-se que a tal "naturalização" das técnicas corporais-esportivas, dos gesto humano e culturais trata-se de incorporações (4) humanas. No esporte essa "naturalização" é entendida como a automatização do movimento, que supões proporcionar maior eficiência do movimento quando da sua execução.
O conhecimento da educação física - o ensino do gesto técnico esportivo
Aqui está a defesa das técnicas do esporte e do seu ensino, pois enquanto produções culturais elas também foram construídas e aprendidas pelas pessoas e são dotadas de significados, portanto podem e devem ser ensinadas. A grande questão que se coloca aqui é a maneira de possibilitar a sua apropriação pelos nossos alunos evitando os problemas apontados anteriormente. Neste sentido as discussões traçadas por Garganta (1995) e Graça (1995) com relação aos jogos esportivos coletivos irão nos auxiliar.
Tratando do ensino do esporte coletivo Garganta (1995) afirma que ensina-se o modo de fazer (técnica), separado das razões do fazer (tática / lógica do jogo). Uma perspectiva as proposta de ensino da Pedagogia Tradicional para o esporte coletivo é abandonar este aspecto dicotômico, em que o ensino dos gestos técnicos específicos de uma modalidade representa uma repetição isolada de certos movimentos. Na Pedagogia Tradicional os alunos/jogadores ficam por muito tempo executando um gesto de maneira fechada (Graça, 1995), ou seja, faz-se certos movimentos, por exemplo o toque do voleibol fora de contextos próximos à realidade do jogo, e mais do isto, esta forma fragmentada de ensino desconsidera, além da dinâmica interna do jogo, a própria dinâmica do esporte e suas modalidades.
Deve-se portanto ensinar as técnicas específicas das modalidades esportivas, mas de maneira aberta. E assim, possibilitar aos jogadores domínio do jogo, tanto dos aspectos da sua lógica (fatores que dão razão a certos atos), quanto das possibilidades de realizar determinados movimentos que correspondam a decisão tomada. Predominantemente no esporte coletivo os acontecimentos são imprevisíveis, assim os participante precisam decidir, quase que instantaneamente, qual a melhor opção àquela circunstância da partida, para tanto é preciso que tenham uma flexibilidade do pensamento (logo: domínio da lógica do jogo) e domínio das técnicas corporais específicas.
Defende-se portanto, de acordo com as discussões apresentados por Graça e Garganta (1995), um ensino centrado em atividades abertas, que seria aquele que trabalharia o jogo de forma mais ampla, em que as atividades propostas solicitassem sempre as capacidades decisórias dos alunos, favorecendo assim a execução das técnicas corporais específicas e a sua possível incorporação, bem como a criatividade, porém sem a necessidade de repetição do movimento isoladamente, e que essa repetição só viesse a ocorrer quando o jogador identificasse que a sua limitação no jogo devia-se a dificuldades com a execução de gestos técnicos específicos da modalidade, portanto ocorrendo de forma contextualizada.
As discussões da Educação Física sobre a pedagogia do esporte, que consideram o esporte uma prática social e colocam-se diante da perspectiva da emancipação humana e da transformação social, necessitam ampliar as discussões sobre o ensino do esporte e das técnicas corporais específicas do esporte. Dessa forma, são necessárias novas pesquisas e reflexões, favorecendo assim a ampliação da compreensão da Cultura Humana e especificamente da sua cultura corporal esportiva.
Notas:
1. Podemos considerar alguns autores que discutem as propostas de ensino do esporte coletivo, dentre eles: Valter BRACHT (1992); Heloísa Reis (1994) e Dinah Terra (1996).
2. Todas as referências encontradas sobre Marcel Mauss neste texto referem-se ao artigo "Noção de Técnica Corporal" pág. 211-218 da obra "Sociologia e Antropologia" - EPU-EDUSP - 1974.
3. "Imitação Prestigiosa" é um termo cunhado por Marcel Mauss (1974) que trata da transmissão cultural das técnicas corporais, que ocorre através da imitação de atos que obtiveram êxito em pessoas em quem confiamos e são dotadas de certa autoridade sobre nós. Observamos aqui o "homem-total" diante das suas técnicas corporais.
4. InCORPOração é um termo adotado por Daolio (1995), em que afirma que "O homem, por meio do seu corpo, vai assimilando e se apropriando de valores, normas e costumes sociais, num processo de inCORPOração (a palavra é significativa)." (p.39)
Obs.
A autora, profa. Diná Tereza Ramos de Oliveira é professora da Universidade Cruzeiro do Sul (Educação Física) e mestranda na Faculdade de Educação Física da Unicampx
Referências bibliográficas
Bracht, Valter. Sociologia Crítica do Esporte: uma introdução. Vitória: UFES, Centro
de Educação Física e Desporto, 1997.
Brunhs, Helóisa Turini. O corpo parceiro e o corpo adversário. Campinas: Papirus, 1993.
Daolio, Jocimar. Da cultura do corpo. Campinas: Papirus, 1995.
___________. Cultura: educação física e futebol. Campinas: Editora da UNICAMP, 1997.
Garganta, Julio. Para uma teoria dos jogos desportivos colectivos. In Graça, A., Oliveira, J. (Orgs). O ensino dos jogos desportivos. 2 ed., Porto: Universidade do Porto, p. 11-25, 1995.
Graça, A., Oliveira, J. O ensino dos jogos desportivos. 2 ed., Porto: Universidade do Porto, 1995.
Mauss, Marcel. Noção de Técnica Corporal. In. Mauss, Marcel. Sociologia e Antropologia. São Paulo, EPU - EDUSP, 1974, vol. 2.
Reis, Heloísa Helena Baldy dos, O ensino dos jogos esportivizados na escola. Santa Maria: Universidade Federal de Santa Maria, 1994. Dissertação (Mestrado em Educação Física) Faculdade de Educação Física da UFSM, 1o de Agosto de 1994.
Soares, Carmen Lúcia, Taffarel, Celi Nelza Zulke e Escobar, Michele Ortega, A Educação Física escolar na perspectiva para o século XXI. In Moreira, Wagner Wey, Educação Física/Esporte: perspectivas para o século XXI. Campinas: Papirus, 1992. P. 211-224.
Terra, Dinah Vasconcellos, O ensino crítico-participativo no contexto das disciplinas técnicos-desportivas dos curso de licenciatura em educação física: análise do impacto de um projeto de ensino no handebol. Dissertação (Mestrado em Educação Física) Faculdade de Educação Física da Universidade Gama Filho, Agosto de 1996.