Integra
É incrível pensar que não consegui publicar um único texto ao longo dos Jogos Olímpicos de 2012. Isso não quer dizer que eu não estivesse mobilizada por muitas questões ao longo dos 17 dias que abalaram o mundo esportivo… O Segredos do Esporte, programa diário que foi ao ar pela ESPN, junto com Paulo Calçade, foi altamente mobilizador tanto por ter sido ao vivo como por ser uma proposta inédita e inovadora no jornalismo esportivo. Falamos de muitos temas que já foram abordados, mas isso não representou mesmice ou continuidade.
E como diz o sábio… antes tarde do que mais tarde, tentarei deixar aqui a minha impressão daqueles que foram os jogos da XXX Olimpíada moderna.
4 anos se passaram desde que vi um ônibus de dois andares ao som de Led Zeppelin fechando os Jogos Olímpicos de Pequim. Lembro-me de ter achado o máximo a proposta ali apresentada de aproximar tradição e modernidade, imagem que a Inglaterra cultiva com o mesmo cuidado que David Beckham cuida de seu visual de metrossexual.
Com um logotipo polêmico por ser moderno demais, uma necessária campanha de engajamento da população local aos Jogos e um orçamento estourado, pondo por terra a falácia de que gringo sabe fazer planejamento e não rouba, os Jogos Olímpicos de Londres começaram com uma festa digna de espanto: do bucolismo da vida rural às maravilhas da revolução industrial, passando pela exploração dos trabalhadores e a vida de formiga, sem escalas. É sabido que o mentor daquela festa toda é um sujeito com formação política e crítica, crítica essa exercida com maestria no momento em que apresentou ao público uma homenagem ao sistema público de saúde inglês. Quando é que alguém poderia imaginar que hospitais pudessem fazer parte de uma festa de abertura olímpica, momento de exaltação de símbolos nacionais? Isso quer dizer que a saúde era isso até o fim o Estado de bem-estar social promovido por Miss Thatcher.
Embalados por Harry Potter, Mary Poppins, Peter Pan e muito rock’n roll os Jogos Olímpicos de Londres começaram para o Brasil com uma promessa assumida de conquista de pelo menos 15 medalhas e apresentações inesquecíveis, afinal já somos uma “inquestionável nação olímpica”.
Entre luzes, câmeras e muita ação os 17 dias de competições reservaram, como sempre inúmeras emoções protagonizadas por atletas de diferentes nações e culturas, como as mulheres muçulmanas que enfrentaram a fúria do status quo de seus países e pisaram nas arenas olímpicas levando junto a seus corpos suas tradições, assim como Oscar Pistorius que imprimiu sua marca desafiando a “perfeição” do corpo humano, correndo com suas pernas ficcionais.
Para mim o que os Jogos Olímpicos de Londres 2012 deixam de expectativa é como o mundo esportivo se portará depois de tantas denúncias de anti-fair-play. Deixe-me fazer entender. Durante muitos anos assisti a infindáveis discussões sobre a importância do “jogo limpo” no esporte, inclusive a condição dessa moralidade como um dos pilares fundamentais do olimpismo… Coisa da moral cavalheiresca, tomada como universal, mas sabidamente uma invenção da aristocracia inglesa, aquela mesma que impedia os grupos de trabalhadores que jogavam futebol e rugby de participar de seus campeonatos porque esses outros não eram “amadores”. Passados mais de 100 anos assistimos, não passivamente, ao longo do século XX a situações como a de Jim Thorpe, um misto de indígena americano e de europeu considerado uma dos atletas mais versáteis do esporte moderno e campeão olímpico no pentatlo e no decatlo em 1912, perder seus títulos e medalhas olímpicos por ter jogado beisebol profissional, isso sim uma afronta ao espírito olímpico!!! Foi preciso uma campanha internacional e o empenho dos filhos e de algumas personalidades do esporte mundial para que seus títulos fossem resgatados após 30 anos de sua morte, em 1983. Ou à excentricidade do caucasiano Mark Spitz, que nos Jogos Olímpicos de Munique, em 1972, depois de conquistar a marca até então inédita de 7 ouros olímpicos na natação, subiu ao pódio com seu par de tênis Adidas pendurado ao pescoço, expondo um patrocinador que, impedido pelas mesmas regras que puniram Jim Thorpe, lhe pagam vultosas somas para usar as três listras da marca alemã. E nada lhe aconteceu.
Quanta moralidade em um ambiente repleto de imoralidades!!!
Em Londres assistimos à desclassificação de quatro equipes de badminton por usarem o limite de suas forças para perder os jogos. Oh my God!!! O que diria o nobre Barão de Coubertin sobre essa ignomínia? Onde estaria o fair play? Na leitura das regras, diriam os pragmáticos. E nessa hora me lembro do Prof. Jorge Bento em sua última passagem por São Paulo, quando em meio a uma palestra emocionada sobre a bancarrota do mundo acadêmico que perde sua essência em nome do cumprimento das regras produtivas, dizia que sob a desculpa do pragmatismo se aceita e se desculpa a imoralidade. E essa discussão avança para as muitas equipes dirigidas por excelentes e experientes técnicos pragmáticos que analisando o desencadeamento do sistema de classificação de suas modalidades determinam a suas equipes que ganhem ou percam para que no futuro próximo possam enfrentar adversários escolhidos a dedo para seus futuros espetáculos.
Confesso que já vi muitas coisas no esporte, mas nunca tinha assistido a tamanho descaramento de técnicos e dirigentes como nesses casos. Infelizmente, apenas as regras do badminton podiam punir os atletas que atentaram contra o espírito esportivo negando-se a competir, oferecendo ao adversário e ao público, seu melhor jogo. As demais apenas jogaram “dentro das regras”.
Esporte não é mercado financeiro onde o grande especulador joga na bolsa com um nome, uma marca ou uma empresa sem que ela exista e promove, às vezes, verdadeiros desastres por vender vento e ilusão como se fosse algo tão concreto e grandioso como as pirâmides do Egito. O verbo especular não guarda qualquer relação com o adjetivo espetacular. Não é apenas porque um verbo sugere uma ação, enquanto o adjetivo qualifica o substantivo, mas acima de tudo porque o esporte exige a busca da excelência, condição ambicionada também em outras ações humanas nas quais o esporte se espelha.
Quero crer que, como em outros momentos da história uma situação gera a reflexão e a transformação de quadros já estabelecidos, os jogos entregues e os resultados acertados de antemão produzam um movimento de resgate do fair play, atualizando-o para as condições de um esporte que há muito se distanciou de valores básicos, tão caros àquela competição do passado que mobilizava pessoas ao redor do mundo pelo desejo puro da competição limpa. Falo aqui de valores humanos essenciais e não de valores financeiros que mobilizam tantos interesses nesse fenômeno quase universal.
Quero ver jogos como da equipe brasileira feminina de vôlei que levou alguns ao pronto atendimento cardiológico, mas afirmou uma luta justa por um resultado espetacular. Quero assistir a uma luta digna como a de Diogo Silva, que mesmo sem perder nenhuma disputa não conquistou a tão desejada medalha, mas mostrou que não estava ali apenas para participar de uma festa. Quero ver as boxeadoras e os boxeadores brasileiros vencerem a profecia auto realizadora de que brasileiros não são bons nisso.
Enfim, quero ter o orgulho de ver Villa Lobos, maracatu, Iemanjá, samba, bossa nova, Quarup e até Pelé participarem de uma festa que em nada deixou a dever ao consagrado rock’n roll e pop britânicos, embora naquele momento nada estivesse em disputa.