Resumo

O presente estudo tem como objetivos (a) divulgar os resultados de uma pesquisa que investigou a experiência de jogos, brinquedos e brincadeiras de crianças do Colégio Pedro II (b) discutir os resultados sob a luz do referencial do multiculturalismo, priorizando a categoria gênero; e (c) discutir metodologias para o ensino de jogos e brincadeiras nas aulas de EF que desenvolvam a consciência e o respeito ao pluralismo e à diversidade cultural.

Integra

Resumo: O presente estudo tem como objetivos (a) divulgar os resultados de uma pesquisa que investigou a experiência de jogos, brinquedos e brincadeiras de crianças do Colégio Pedro II (b) discutir os resultados sob a luz do referencial do multiculturalismo, priorizando a categoria gênero; e (c) discutir metodologias para o ensino de jogos e brincadeiras nas aulas de EF que desenvolvam a consciência e o respeito ao pluralismo e à diversidade cultural.


Introdução

A origem do presente estudo está na defesa que tenho executado no sentido de (re)inserir os jogos, os brinquedos e as brincadeiras nos programas curriculares de educação física. Sua justificativa diz respeito ao potencial educativo que possui esses conteúdos, principalmente no que se refere ao desenvolvimento da consciência e do respeito ao pluralismo e à diversidade cultural.

Segundo Alfredo Gomes de Faria Júnior (In: Costa, 1981) o modelo de educação física brasileiro é extremamente injusto sob a ótica do direito de igualdade de oportunidades, uma vez que seu acesso é restrito a alguns segmentos privilegiados da população em detrimento de outros, tais como os membros da classe trabalhadora, as mulheres, os negros e os idosos. A partir disso, Faria Júnior (In: Romero, 1995) afirma que estamos diante de uma educação física burguesa, branca, machista e voltada para a criança e o jovem. Um modelo que deveria dar lugar a uma educação física concebida para atender a uma sociedade multicultural, como a brasileira.

O multiculturalismo constitui-se num conjunto de idéias que focaliza as questões pertinentes aos grupos sociais minoritários (do ponto de vista da distribuição do poder na sociedade), no que tange principalmente às desigualdades, preconceitos e discriminações sofridas por eles nas diversas instituições sociais (Sleeter, Grant, 1994). Ele traz consigo o conceito de diversidade cultural que segundo Joe DeSensi (1994) refere-se às diferenças associadas a gênero, raça, etnia, nacionalidade, classe social, religião, idade e habilidade motora, incluindo em seu sentido lato diferenças na personalidade, orientação sexual, aparência física, estado civil e status familiar. Ele ainda enfatiza a necessidade de reconhecimento do pluralismo cultural, entendido como a existência em uma nação/estado de uma variedade de diferentes e legítimos grupos culturais que variam em língua, religião, origem racial e/ou étnica ou outras significantes dimensões culturais (Lynch, 1986).

Internacionalmente, alguns autores têm efetuado considerações baseadas no multiculturalismo para a educação física, denunciando a discriminação e a opressão que historicamente vêm sendo experimentada por determinados segmentos da sociedade. Assim, privilégios fornecidos a certos grupos e a exclusão de outros têm definido os limites de participação na educação física de mulheres, negros, idosos, membros da classe trabalhadora, homossexuais, partidários de religiões marginais, pessoas com pouca habilidade motora, pessoas com necessidades especiais e outros grupos minoritários (Figueroa, In: Evans, 1993; Desensi, 1995; Ravenhill 1995). Como afirma H. J. Lenskyj (1994), a área da educação física ainda reflete e reforça os valores da raça branca, da masculinidade, da hegemonia heterossexual, assim como promove a discriminação baseada em classe social, gênero, religião, orientação sexual e habilidade motora.

O presente estudo tem como objetivos (a) divulgar os resultados de uma pesquisa que investigou a experiência de jogos, brinquedos e brincadeiras de crianças do Colégio Pedro II (b) discutir os resultados sob a luz do referencial do multiculturalismo, priorizando a categoria gênero; e (c) discutir metodologias para o ensino de jogos e brincadeiras nas aulas de EF que desenvolvam a consciência e o respeito ao pluralismo e à diversidade cultural.

Os resultados da pesquisa foram obtidos a partir da utilização de questionários abertos, respondidos por 104 crianças de 3a e 4a séries do primeiro segmento do primeiro grau, todas estudantes da Unidade Engenho Novo I do Colégio Pedro II.

Resultados

Questionamos às crianças, a respeito de quais eram os jogos, os brinquedos e as brincadeiras que elas vivenciavam cotidianamente. Os mais citados foram: piques; futebol; basquete; voleibol; bola aos cantos; queimado; pular corda; amarelinha; boneca; patins; ping-pong; dança da cadeira; natação; bicicleta; carniça; vídeo-game; 5 corta; totó; alerta; salada mista; polícia e ladrão; corredor polonês; bola de gude; taco; skate; peteca; dominó; carrinho; boneco; futebol de botão; galinha choca; adoleta; batatinha frita 1,2,3; bambolê; casinha; escolinha; bandeirinha, passa anel; e elefantinho colorido.

Quanto às diferenças relativas ao gênero, os jogos, brinquedos e brincadeiras mais citados pelos meninos foram: os piques; futebol; basquete; voleibol; queimado; bola aos cantos; natação; bicicleta; futebol de botão; dança das cadeiras; carniça; polícia e ladrão; corredor polonês; vídeogame; 5 corta; patins; ping-pong; bola de gude; totó; alerta; taco; skate; boneco; peteca; dominó; carrinho; e salada mista.

Já os jogos, brinquedos e brincadeiras mais citados pelas meninas foram: os piques; voleibol; basquetebol; pular corda; futebol, queimado; amarelinha; boneca; bola aos cantos; patins; ping-pong; alerta; galinha choca; adoleta; dança da cadeira; batatinha frita 1,2,3; salada mista; bambolê; casinha; escolinha; bandeirinha; totó; passa anel; e elefantinho colorido.

Em relação aos aspectos gerais podemos observar que os piques foram as brincadeiras mais citadas. Sem dúvida, isto vai de encontro às reflexões de Walter Benjamin (1984) que ao utilizar a terminologia perseguição demonstra que segundo a teoria gestáltica dos gestos lúdicos, elaborada por Willy Haas, esta é uma das principais brincadeiras utilizada através da história.

Outro ponto interessante diz respeito a presença maciça dos jogos desportivos, que ocuparam em seguida aos piques, as principais posições nas respostas. Além do grande prestígio que as atividades desportivas gozam junto a nossa sociedade, ocupando grandes espaços na mídia, assim como no tempo disponível de parte da população, talvez sua grande ocorrência tenha se dado pela sua invasão na esfera escolar. Como salienta Valter Bracht (1992), o desporto assume e determina quase que totalmente o conteúdo da educação física escolar. Sendo assim, o grupo de crianças estudado, que já havia passado por pelo menos três anos de escolarização contendo a educação física como disciplina, deve atribuir ao desporto grande significado.

Ainda sobre o aspecto geral, observamos a presença de jogos e brincadeiras que são praticados há bastante tempo, e que cogitávamos não mais estar presentes no repertório atual das crianças devido à falta de transmissão pelas gerações anteriores e à crescente urbanização. São eles: pular corda, amarelinha, carniça, bola de gude, taco, peteca, dominó e passa anel.

A investigação quanto às diferenças e particularidades dos gêneros apresentaram um resultado bastante rico. Observamos que o quadro de opressão e discriminação vivenciado pelas meninas/mulheres na educação física escolar pode estar sofrendo alterações. O aparecimento do futebol em quinto lugar na preferência das meninas pode ser um reflexo desse fato. Faria Junior (1995), ao discutir historicamente as relações de gênero e suas implicações na educação física brasileira, apresenta as restrições feitas às mulheres, particularmente às relativas ao futebol. Segundo Moema Toscano (1990), esse desporto que é "o símbolo da brasilidade [...} é reservado, com exclusividade, para os homens" (p.34). A citação do futebol pelas meninas pode estar indicando alterações positivas na sua participação ativas em atividades de jogos, brinquedos, brincadeiras e desportos, antes exclusivamente direcionadas aos meninos.
Tal suposição também pode ser feita a partir dessa pesquisa, uma vez que algumas atividades consideradas socialmente como ‘brincadeiras de meninos’ apareceram, em menor escala, nas respostas das meninas. São elas: queda de braço; totó; cabo de guerra; carrinho; bola de gude; e futebol de botão.
Ainda neste sentido, os estereótipos apontados na literatura da área para a mulher/menina (dependente, sensível, frágil) parecem não corresponder à realidade, uma vez que no relato das meninas aparecem atividades, tais como a denominada ‘menina pega menino’, que demonstram características de força, ação e iniciativa.

Essas demonstrações de resistências e combates à discriminação e à opressão da mulher/menina no que se refere à sua participação nas atividades de jogos, brinquedos, brincadeiras e desportos podem refletir uma situação particular do grupo analisado. Venho atuando como professor de educação física dessas crianças há dois anos, utilizando como denomina H. Hérnandez (1989), uma ‘pedagogia culturalmente responsável’, que tem como meta principal considerar e enfrentar as necessidades e os problemas dos grupos minoritários nas escolas. Assim, além de desconstruir juntamente com as crianças os preconceitos e as discriminações relativos à classe social e à raça, talvez esteja alcançando bons resultados com as relações de gênero.

Finalmente, gostaria de ressaltar que este trabalho utiliza prioritariamente o jogo e a brincadeira, conteúdos privilegiados pelo referencial da cultura corporal que possibilitam à criança operar "com o significado das suas ações, o que a faz desenvolver sua vontade e ao mesmo tempo tornar-se consciente das suas escolhas e decisões" (Coletivo de Autores, op.cit., p.66). Através da provocação e da exposição de conflitos relativos à classe social, raça e gênero venho tentando alcançar resultados significativos no desenvolvimento da consciência e do entendimento das diferenças entre ricos/pobres, negros/brancos/amarelos, homens/mulheres, assim como no engajamento dos(as) alunos(as) na luta pela reversão das desigualdades estabelecidas socialmente entre estes grupos.

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