Integra

“Adoro cortinas que se abrem. Adoro o silêncio antes do grito. Adoro o infinito de um momento rápido”. Para que tanta teoria se a poesia pode explicar aquilo que aflige a alma. Essa letra de Zélia Duncan talvez responda às minhas inquietações recentes sobre a brevidade de uma existência. Há algumas semanas tenho dedicado meu tempo e esforço a organizar as histórias de vida para escrever a Enciclopédia Olímpica Brasileira. Nesses quase 15 anos de pesquisa já são mais de 1.200 entrevistas com atletas vivos e familiares, conhecidos, amigos e técnicos de atletas falecidos. Histórias que não acabam mais porque trazem não apenas informações, mas também porque se cruzam de diferentes maneiras formando uma trama complexa, como é complexo o próprio ser humano.

É curioso ver nisso tudo a mão do criador e das criaturas, no sentido do empoderamento do sujeito diante de sua própria história. Ligar a câmera e pedir ao atleta que conte sua história é um momento mágico circundado de vários aspectos que vão da empatia do narrador comigo, ou outro pesquisador do grupo, até a capacidade de lembrar e narrar os próprios feitos, os sonhos desfeitos, os afetos percebidos, os desmandos incontroláveis, as alegrias sem fim dos encontros, vitórias, descobertas, o fim, enfim, nem só coisas boas, nem tampouco apenas desgraças, assim como são feitas as vidas e histórias de cada um de nós. Estamos em um momento da pesquisa em que restando pouco mais de duas centenas de entrevistas para fechar os protagonistas nos deparamos com os atletas mais difíceis de achar, menos afeitos a falar – por diferentes motivos – ou, simplesmente, porque sumiram, sem deixar marcas, rastros ou sinais de uma existência pós-esportiva tão comum a tantos mortais de uma era em que as redes sociais preservavam a intimidade daqueles que não desejavam exposição. E é sobre esse grupo que me detenho mais atentamente nesse momento. Os sumidos, desaparecidos dos informativos sejam eles esportivos ou não. E então me deparo com o simulacro da notícia e a recriação de fantasias que passam a constituir aquilo que se sacramentou denominar de história ou fato.

Há apenas poucas décadas atrás a principal fonte de contato que existia para se chegar a alguém era via lista telefônica. Elas eram entregues nas casas em que havia um telefone, objeto quase de luxo, que chegou a equivaler ao preço de um carro. Ter um telefone em casa era sinônimo de distinção social e no início de cada ano o assinante (detentor daquele raro objeto de desejo, que também lhe dava direitos sobre uma cota de ações da empresa de telefonia) recebia dois robustos exemplares de papel fininho que continham todos os nomes de outros distintos proprietários juntamente com os números dos seus respectivos telefones. Havia famílias que pagavam anos a fio por planos de expansão de linhas que depois de pagas ainda precisavam ser esperadas como que magicamente pela materialização de um número que colocaria o usuário em contato com o mundo inventado por Graham Bell. Muito bem essas listas eram verdadeiras fontes de informação sobre o paradeiro de alguém, porque nelas também constavam os endereços onde as linhas estavam instaladas. Ou seja, o telefone era algo concreto, presente em um lugar físico, que caso o proprietário desejasse podia solicitar à companhia que o endereço fosse excluído para que sua privacidade fosse preservada. Achar alguém requeria, às vezes, o auxílio de profissionais gabaritados, que feitos cães farejadores, buscavam alguma pista, sabe-se lá de onde, e passavam a persegui-la até se chegar ao objetivo desejado.

Às pessoas mais célebres restava ainda os meios de comunicação impressos, em formato de jornal e revista. Falo do produto de Johannes Gutemberg porque embora o rádio tenha sido um dos grandes veículos de comunicação do século XX demorou muito até que o gravador fosse inventado para que já não se perdesse no ar aquilo que o radialista dizia, afirmava, analisava ou interpretava. Jornal e jornalismo publicavam, ou seja, tornavam público, aquilo que de alguma forma interessava ao grupo que podia ter em suas mãos um pedaço de celulose transformado e repleto de tinta cujo texto trazia algum significado. Era possível tornar-se notícia em função de algum destaque, um feito glorioso ou alguma bobagem fora do padrão, afinal notícias policiais sempre foram um prato cheio em qualquer momento histórico. Sei também que um pouco mais antigamente, a forma de encontrar os mais antigos era visitando as igrejas ou os cemitérios, locais onde a vida de quase todos os seres que vivem em sociedade, começa e acaba, seja pelo batismo e pela morte, seja pela linearidade familiar que não se pode negar. Nascemos de alguéns, isso é fato! E independentemente da fé que professamos a vida em sociedade passou, por muito tempo, por dentro das congregações religiosas fosse qual fosse o deus que elas pregavam.

Mas, nesse breve século XX que começou em 1901 e teoricamente se tornou XXI em 2001 essa lógica sofreu uma brusca inversão. Não vou gastar esse espaço a discutir os meios digitais e o computador já tão bem teorizado por Jameson que propõe que essa coisinha tenha marcado uma ruptura levando a uma nova periodização da História com aga maiúsculo. O que me impressiona realmente, voltando à discussão inicial, é como a notícia ou os chamados fatos, sofreram alterações a partir dessa nova forma de comunicação. Penso isso em função da busca que faço sobre os desaparecidos olímpicos ou sobre os que não querem falar sobre si mesmo. Isso também é um dado da pesquisa. Há os que por diferentes motivos não querem falar de sua história ou da história do esporte que praticou, porém, a trajetória como atleta, essa figura pública que atravessou o século XX, está registrada nos periódicos de seu tempo. E diferentemente do jornal impresso do começo do século passado, hoje dou alguns comandos em meu computador e começo a “brincar” de buscar. Isso mesmo, porque buscas sérias são feitas com rigor e método e passados poucas tentativas rapidamente se descobre um texto que passa a ser replicado, multiplicado à exaustão pelos sistemas de busca que criam então uma “verdade”. Claro, pensa o senso comum, porque se todo mundo escreve a mesma coisa é porque aquilo é a verdade. Que pena afirmar que isso é uma mentira! Mentira porque, assim como no passado o papel em branco aceitava tudo, hoje a tela em branco também presta o mesmo serviço e multiplica com uma velocidade sem precedentes fatos e feitos que ocorreram ou não.

Digo isso porque em parte estou confrontando as informações obtidas diretamente da narrativa dos atletas com aquilo que está postado em diferentes portais, blogs e outras formas de comunicação. Quanto desencontro. Quanta desinformação. Mas, o mais dramático é buscar por notícias daqueles que não temos nenhuma pista e, já sem ter acesso às listas telefônicas, partimos então para o que está mais à mão: a internet. E foi aí que me dei conta que as pessoas deixaram mesmo de existir para ser apenas um fato. Uma prova conquistada, um exame de doping positivo, uma mudança de clube ou um assassinato. E a vida delas passa a ser apenas isso, um fato que gerou curiosidade suficiente para aparecer na celulose dinâmica na qual se transformou a prensa de Gutemberg. E essas pessoas então deixam de ter origem, iniciação, família, laços sociais, locais, feitos e passam a ser aquilo que era o fato que gerou a notícia sobre si. Parei para pensar nesses dias porque é que a origem e a história das pessoas não interessam ou não têm importância para essa infinidade de meios e profissionais que trabalham com informação. Confesso que pensei em várias respostas possíveis, mas ainda nenhuma que possa ser publicada porque todas elas carecem de argumentos que me convençam de alguma forma de ser razoáveis. O que fica para mim é o choque pelo desprezo à genealogia. Para que alguém chegue a ser algo foi preciso construir uma trajetória. E assim como uma folha em branco ou uma tela limpa, ali se começou a escrever um texto que são as histórias que todos nós temos, com mais ou menos emoção.

Penso que naqueles grupos sociais onde ainda se sabe de uma pessoa pelo fato dela ser filho de um determinado pai com uma certa mãe, nascida no dia em que um evento natural ocorreu e influenciou as outras gerações dá aos indivíduos uma sensação de identidade e pertencimento muito mais efetiva do que se ver em inúmeras imagens (no passado chamadas fotografias) postadas em diferentes mídias afirmando ser alguém. E uma vez mais isso me faz lembrar do Ciclope que ferido por uma flecha em seu único olho parte em busca de socorro identificando Ninguém que o feriu, e que de fato se chamava Odisseu.

10.3.2014