O lugar das interações lúdicas na escola
Por Maria Cristina Soto Muniz (Autor).
Em IV EnFEFE - Encontro Fluminense de Educação Física Escolar
Integra
Brinquedotecas são espaços que valorizam a cultura lúdica, através do brincar. Brincar entendido aqui como linguagem, mediada pela imaginação. O impulso lúdico dá à espécie e ao indivíduo evidente vantagem no processo de seleção natural, ensina Bousquet (1987). Quem tem o hábito de explorar ao acaso seu ambiente, diz ela, encontrará mais oportunidades de se instruir e, consequentemente, estará mais bem preparado para enfrentar situações imprevistas.
Seguindo este raciocínio, não seria a seriedade, mas a brincadeira, a curiosidade e a exploração gratuita fatores que paradoxalmente constituiriam o fundamento dos mitos, dos ritos da vida em sociedade e da própria ciência, reiterando assim nossa crença na importância de uma proposta à qual está ligado um grau de escolha e a possibilidade de usar de forma não convencional o tempo, o espaço, os objetos ou as idéias.
As brinquedotecas (ou ludotecas, como são chamadas na Europa), que adotam este conceito, funcionam como um atelier de arte que, sem conotação com aprendizagem obrigatória, preparam a criança por exemplo para a utilização do tempo livre: não de forma rotineira, mas do tempo livre enquanto possibilidade e liberdade de escolha e crítica, um contraponto à criança observadora, proprietária e consumidora. Oferecem assim uma modalidade diversa de apoio à criança, onde ela decide do que brincar, como organizar as regras, constituindo-se numa atividade metafórica à própria vida.
Este trabalho busca refletir acerca da atuação da brinquedoteca na escola e é fruto da pesquisa realizada a partir da dissertação de mestrado "A brinquedoteca no contexto escolar" (Muniz,1997), inserida na linha de pesquisa do Imaginário e das Representações Sociais da Educação Física, Esporte e Lazer. A metodologia da pesquisa teve caráter qualitativo, seguindo o modelo conjectural definido por Ginzburg (1980) , as pistas que nos orientaram são oriundas das entrevistas semi-estruturadas elaboradas a partir de três questões ( o que é brincar; que diferenças você percebe entre o espaço da sala de aula e da brinquedoteca; e se você fosse organizar uma brinquedoteca como ela seria?) e das observações de campo e trabalhamos este material apoiados nos pressupostos da análise do discurso de Eni Orlandi.
"Desempacotando a brinquedoteca" percebemos que o problema que se colocava na ocasião, como ainda hoje, tem a ver com as representações e imagens acerca da instituição escolar, forjadas por séculos de tradição racionalista, sinalizando que o choque de concepções entre o espaço lúdico e o espaço escolar continua nosso grande desafio. E isto apesar de numerosos pesquisadores na área da Educação Infantil procurarem nas últimas décadas relacionar a atividade lúdica com o desenvolvimento global da criança, deixando que o jogo ganhe assim uma dimensão própria.
Estas pesquisas procuram demonstrar que o jogo tem influência no desenvolvimento global da criança e que esta influência é particularmente importante no desenvolvimento da capacidades cognitivas no caso de crianças de contextos desfavorecidos.
Desde então tem sido propostas experiências pedagógicas com inserção de atividades lúdicas, como a brinqueteca, procurando proporcionar situações de sucesso, mas o que se percebe é que este Homo felix, festus ou ludens, esse homem que brinca, que joga, que simula, e que faz tudo isso enquanto vive, trabalha, produz, não se faz presente ainda hoje nos projetos políticos pedagógicos de nossas escolas.
Fui desenvolvendo a idéia da brinquedoteca na escola quando, em 1987, comecei a dar aulas de dança e psicomotricidade para crianças entre 3 e 5 anos.
Comecei a trabalhar com alguns brinquedos e a usar a própria mobília, a fim de provocar a comunicação mediada pelos objetos. O critério de escolha dos primeiros brinquedos foi de que fossem o menos estruturados possível. Estes materiais (panos, caixas, jornal...), podendo assumir diferentes identidades, dão maior plasticidade ao jogo imaginativo da criança, abrindo novas possibilidades de comunicação.
Desta forma, primeiro como suporte do jogo, o brinquedo ia facilitando às crianças criarem ali "um mundo do tamanho de sua compreensão" (Andrade, 1994), propiciando o encontro e gerando projetos de ação coletiva.
Assim, ia interagindo com os grupos que se formavam em torno de algum brinquedo, incentivando, enriquecendo as brincadeiras que eles inventavam ou observando, "mais para compreender do que para transformar" (Andrade, op.cit).
No decorrer deste trabalho passei a observar o quanto os conteúdos da dança e da psicomotricidade estavam presentes nas ações espontâneas das crianças. O corpo em suas diversas possibilidades de movimento, a organização do tempo e do espaço, o trabalho com o outro. Aos poucos percebia que além da presença destes elementos havia muito mais em jogo naquele jogo de brincar. Haviam expressões de desejos, medos, descobertas... aprendíamos coisas!
É importante ressaltar que a experiência do Brinquedoteca do Saci foi iniciada no âmbito da Secretaria de Cultura do Município do Rio de Janeiro e hoje integra-se à Secretaria de Educação. Por isto, refletir sobre esta experiência escolar é pensar também na relação entre cultura e educação. Penso que muitas das resistências que encontrei por parte dos professores na implantação do projeto giraram em torno da questão da quase ausência de dimensão cultural em nossa formação profissional de base tecnicista. Reforçada, no caso da escola pública, pelo imaginário da privação cultural dessas crianças.
Estas observações corroboravam a presença dos elementos constitutivos do lúdico, como a liberdade de ação daquele que brinca; uma organização espaço - temporal própria e a presença da imaginação criadora de idéias expressas em seus projetos de brincar. Nestes, observamos que a imaginação tem um valor prático justamente no fato de que ela é base para toda atividade criadora. Para a criança da idade pré-escolar, ela surge em forma de jogo, que é a imaginação em ação.
Ao término da pesquisa, sua análise nos levou a considerar que o sentido de "estar livre" na brinquedoteca, nos seus dois aspectos apontados pelas professoras - "espaço onde é tudo livre e espaço para criar" - choca-se de toda maneira com o espaço da ordem e da disciplina da sala de aula - "espaço que prende" - quando esta aprisiona corpos e mentes nas malhas da circularidade de seu discurso autoritário.
Quando este espaço aparece no discurso das professoras como da espontaneidade, é o lugar do não sério, pois a brincadeira é vista como não tendo conteúdo e portanto como estando fora do que se considera escola. Quando é espaço da imaginação, permite que se instale o diálogo, ajudando a criança a expressar sua criatividade, e o professor a percebe-la "por detrás do aluno".
Para que a idéia da brinquedoteca permeie o projeto pedagógico da Educação Infantil parece ser necessário deslocar seu eixo enquanto espaço do espontâneo, e trabalhar com os professores o sentido de brincar /criar; da brincadeira como linguagem infantil, meio para perguntar e explicar próprios da natureza da criança.
E mais, romper a circularidade do discurso autoritário presente na sala de aula, permitindo que a criança seja sujeito de sua aprendizagem, admitindo a criatividade enquanto um valor fundamental para que se instaure um novo paradigma, "um novo sistema de aprender a aprender". Um primeiro caminho apontado pelas professoras parece ser o exercício da observação atenta, onde, observando o brincar da criança, observa-se também suas idéias, possibilitando um outro sentido para o instituído que vê o professor como uma figura "chata", que interfere o tempo todo, e para a brincadeira, como ausente de conteúdo.
A livre circulação dos corpos tem a ver com a livre circulação de idéias. Restringindo-se o espaço restringe-se também o tempo, que passa a ser um tempo homogêneo, onde todos aprendem ao mesmo tempo a mesma coisa. Uma redefinição da temporalidade humana a que nos referimos quando buscamos novos sentidos para a educação, para a educação aliada à cultura, é uma tentativa de romper com esse tempo homogêneo. É assim uma perspectiva de libertar-nos de um tempo mecânico que tem a ver com o sempre, o que não muda, recuperando a unidade da dimensão humana que o projeto de modernidade desautorizou quando instaurou a fragmentação entre o racional e o sensível.
Visto que o conhecimento resulta das perguntas que são feitas ao real nos perguntamos como é possível reverter esta fragmentação? Como reverter o quadro de repetição, também de uma organização espacial, que induz a esta fragmentação que se percebe na escola? Repetição de velhos modelos onde mesas e carteiras asseguram a função a que elas deveriam servir, ou seja, serem suportes para a atividade de pesquisa, de aprender a aprender.
Nossa esperança é que quanto mais rígidas são as estruturas, mais sujeitas a rachaduras elas estão. Por suas frestas evadem-se crianças e adolescentes desinteressados , rotulados muitas vezes de incapazes; mas também podem escapar idéias que tentem modificar o que hoje o espaço da escola tradicional comunica. Nosso estudo foi uma tentativa de fazer escapar uma idéia.
Obs. a autora é docente da FAETEC/Secretaria Municipal de Educação/R.J.
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