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Ainda que praticado por seres humanos há momentos em que o esporte parece se constituir como um fenômeno único, regido por uma moralidade própria. Suas regras o fazem ser considerado como uma linguagem universal, passível de ser praticado por mulheres e homens de todo o planeta, independentemente de cultura ou credo religioso.
Em tese isso parece maravilhoso. Uma atividade que remete a agonística, organizada por uma instituição autônoma, capaz de conter em si mesma a magia do gesto e a transcendência de pessoas fora de série. Entretanto, como tudo que é da ordem do humano o esporte pode ser interpretado e manipulado por quem detém o poder de sua organização. E não sejamos ingênuos: isso acontece com uma frequência mais de indesejada. Afinal, mesmo existindo com leis próprias, as instituições esportivas estão sujeitas aos movimentos do momento histórico e do lugar nos quais elas estão situadas. Tudo o que acontece no esporte é demasiadamente humano.
Na última semana Carol Solberg foi julgada e punida com advertência por ter bradado “Fora Bolsonaro” durante uma entrevista ao final de um torneio de vôlei de praia. Essa punição a impede de se pronunciar a partir daquele momento. Amordaçada pela justiça desportiva, transformada em uma jogadora desprovida de voz, porém não de intenção, Carol é um exemplo ideal da concepção relativa da liberdade dentro do esporte.
Livre para usar sua habilidade motora em favor da equipe em que atua, e do país que representa, não desfruta da mesma autonomia para exercer sua potência intelectual como mulher e cidadã. Cindida de seu desejo é impedida de manifestar o que pensa e sente. Fica nítida a intensão dos que julgam: é fundamental esvaziar a potência da voz dessa atleta que desfoca a atenção da competição, um de seus papéis sociais, e remete à sua condição de cidadã que não deixa de entrar em quadra no momento de seu exercício profissional. Ainda que 2 dos 5 juízes tenham sido contrários à punição, parece mesmo que a justiça desportiva interpreta o que é o esporte e a liberdade de expressão sem considerar os princípios básicos que regem o Olimpismo.
Nunca é demais lembrar que o Princípio Fundamental nº 2 da carta olímpica entende o Olimpismo como uma filosofia de vida que exalta e combina em equilíbrio as qualidades do corpo, do espírito e da mente, combinando esporte com cultura e educação. Quero com isso afirmar a impossibilidade de ter uma atleta hábil na quadra, porém desprovida de pensamento e voz.
O caso de Carol remete à história do filósofo Spinosa que aos 24 anos foi julgado e banido da comunidade judaica de Amsterdã. Sua heresia foi pensar e falar em defesa da liberdade de pensamento e de expressão. Anos mais tarde foi também julgado e condenado pelo sínodo calvinista por sua obra Tratado Teológico-Político. Afirmava o filósofo que os afetos originados das paixões alegres têm potência transformadora.
Carol celebrava a medalha de bronze no momento de sua manifestação. Virtuosa provava a integração de um corpo habilidoso com uma mente também ágil e habilidosa. Afirmava assim tanto um princípio olímpico como humano.
Porém, como na Amsterdã do século XV, um tribunal a julgou culpada e a fez calar. Espero que sua heresia, assim como a de Spinosa prove que a liberdade é a proximidade plena de si consigo mesma. E que o silêncio imposto não cale sua capacidade de pensar para se expressar tão logo sua liberdade seja restituída.