Integra

A partir de inúmeras ações corporais dentro de uma natureza exuberante com rochas, pedras, árvores, cipós, matos e lagos se configura um "pique" no espaço de uma cachoeira em que crianças e jovens se enfrentam em uma brincadeira atípica de um ou dois contra todos e todos contra um ou dois. Um "pique" lúdico num espaço selvagem, num campo perigoso e imprevisível que exige dos atores desse jogo um combate para com o "pique" e com a natureza em volta. O cenário é a Cachoeira do Arqueduto na Vila do Abraão, Ilha Grande, Angra dos Reis, Estado do Rio de Janeiro. Uma vila turística, ecológica e paradisíaca como dizem os moradores do lugar.

Uma cidadezinha que já foi lugar de presídios e de lazarentos, fica de costas para muitos morros verdejantes e na beira de formosas praias. Uma das cachoeiras da região deu lugar para um estranho "pique" e somente os moradores do Abraão brincam deste "pique" nos seus momentos de lazer.

Este estranho "pique" parte das ações motrizes de sujeitos brincantes em interações com a cachoeira e a natureza em volta dela. A cada situação motriz em que eles se inserem e da qual participam, notamos que seus atos motrizes são, a um mesmo tempo, diversificados e criativos. E é justamente essa situação caótica que queremos descrever e explicar. Se a exuberância motriz dos sujeitos e o caos supercial não puderem ser desvendados, como compreender tal variabilidade motora entre os atores de uma comunidade ecológica? Como eles se entendem no jogo? Como eles dialogam com um espaço perigoso? Como eles se comunicam e se contra-comunicam entre eles?

Analisar, sistematizar e explicar as variadas ações corporais usadas por uma comunidade, em uma mesma situação motriz serão nossos principais objetivos neste trabalho. A metodologia de análise a ser desenvolvida neste trabalho é a teoria praxiológica. Parte de uma teoria - metodológica que investiga cientificamente a "superfície caótica" de uma prática social. O seu objetivo de estudo é o sujeito que se move em uma situação motriz. Essa teoria centra seu estudo na sintaxe do jogo, ou seja, na gramática da situação constituída.

A gramática deste jogo, se dá a partir de algumas regras estabelecidas no contrato lúdico entre os participantes do "pique", as quais geram um número infinito de ações motrizes. O modelo que essa "gramática gerativa" compreende é de uma essência abstrata no sistema de regras que gera uma superfície concreta onde se encontram as ações existentes do jogo. Assim, podemos sair do plano de meros espectadores e classificadores de dados para explicar cientificamente uma situação.

As ações motrizes dos sujeitos em movimento são infinitas e esse infinito dá ao jogo uma compreensão de algo aberto, criativo e dinâmico. Porém, a criação e a recriação de ações motrizes no jogo dependem das regras profundamente arraigadas no jogo. O jogo não é conceituado só pelas ações apresentadas, mas também por outras possibilidades motrizes. Todas as ações possíveis que os sujeitos podem criar a partir das regras. Os sujeitos do movimento já conhecem o sistema de regras que os tornam competentes a produzir ações diferentes das conhecidas pelo grupo. São ações (re) criadas e podem ser desconhecidas até pelo grupo mas que são possíveis no jogo. O objetivo do praxeólogo é explicar essa competência do sujeito em movimento, é descrever sua gramática.

Desse modo o sujeito deve ser compreendido pelos seus comportamentos observáveis, unidos a um contexto objetivo;

comportamentos que se desenvolvem sobre um conjunto amplo dos fatos subjetivos (emoções, relações, antecipações, decisões, etc.). A praxiologia delimita a atuação do sujeito em uma determinada situação. Este dado é central para o entendimento praxiológico de fenômenos corporais. Assim a teoria parlebaniana nos apresentará os seus universais ludomotrizes.

Uma situação motriz como o "Pique da Cachoeira" não é só um emaranhado de extravagâncias corporais dentro de um espaço perigoso. É antes de tudo um corpo de regras, e esse corpo de regras vai impor sua regra nas ações corporais dos atores que participam do jogo. "A nossa tarefa é fugir do "pique". A do "pique" é de perseguir quem não é "pique". Isso faz com que a gente corra, nade, mergulhe e se esconda. Quando o "pique" pega um de nós o que foi pego vira "pique". Alexandre Neto

Parlebas (1988) atribui à interação motriz a raiz do conceito de comunicação, freqüentemente considerada a unidade mínima de análise que se produz quando, na realização de uma determinada tarefa motriz, o comportamento motor de um participante influencia de maneira observável o comportamento motor de um ou vários outros praticantes. Podemos identificar, portanto, uma indiscutível originalidade na proposta de Parlebas, que somente na interação motriz se desenvolve: a manifestação de dois caminhos opostos em jogo - a comunicação e a contracomunicação motriz.

A semiomotricidade tem respaldo na obra de Parlebas para o deciframento de códigos motrizes realizados no transcurso das condutas dos sujeitos participantes de um jogo. Esta perspectiva concebe o sujeito como um ser que se comunica em todas as suas ações, emite sinais e decodifica situações práxicas.

As condutas motrizes produzem um grande número de comunicações não-verbais consideradas por Parlebas como gestemas e praxemas que favorecem as interpretações dos comportamentos dos sujeitos em situação de jogo. Este sistema de signos impõe a cada jogador decifrar códigos corporais como: pré-ações, antecipações, os sinais dos companheiros e adversários, e também os imprevistos, os índices e obstáculos que o meio físico oferece.

Os gestemas são gestos corporais que trasmitem uma mensagem intencional e que tomam parte no jogo; um jogador, para estabelecer interações diretas, pode utilizar-se da linguagem gestual. Os gestemas são atos especificamente motrizes. O gesto de levantar uma das mãos durante uma situação de jogo pode indicar um gesto para sair do jogo, pode designar algumas ações desejadas pelos jogadores.

Os praxemas estão representados pelos comportamentos estratégicos dos participantes em jogo. Segundo Parlebas (1981), todas as condutas motrizes dos jogadores podem ser interpretadas como signos ou índices: o significante é o comportamento motor observável e o significado é o efeito da estratégia correspondente. Durante todas as suas ações motrizes, o jogador promove índices observáveis pelos demais jogadores: a posição relativa no espaço, a velocidade dos seus deslocamentos, os seus dribles no fundo do poço da cachoeira, de certa forma seqüenciados no jogo. Tal constatação é de certa forma sinalizada através das condutas motrizes que são decodificadas por quem observa.

Entre espaços estandardizados e/ou selvagens, o espaço selvagem está como o mais indicado que observamos, pois, o meio selvagem da cachoeira envolve as práticas que conduzem os jogadores a ações com surpresas, espontâneas, com constantes improvisações. Esse meio dá às ações motrizes das praticantes total abertura para audácias no jogo, tendo que recorrer a informações incertas de um meio não-estandardizado: " O Pique da Cachoeira’ é um pique perigoso. Todos se machucam. Não tem um que eu conheça que nunca tenha sofrido pelo menos arranhões. Não tenho medo. Tenho respeito pelo ambiente". Alexandre Neto

Entender o sistema de pontuação como a representação da contabilização dos pontos obtidos pelos jogadores em confrontação é compreender este sistema segundo o conjunto de redes de comunicações e os mecanismos para levar a cabo os seus resultados, sempre ajustados aos pontos adquiridos pelos praticantes, que usam o jogo como um acordo explicitamente entendido: "Aqui não tem vencedores nem perdedores. O jogo acaba quando chega a hora de ir embora. Quando já estamos cansados. Um pode gritar: ‘Mixou na lata’. Todo mundo corre para encostar na lata da brigada. Os últimos vão levando bordoadas até chegar na lata. Os últimos sempre apanham mais". Adriano dos Santos

A rede de interação de marca, representa as comunicações ou contracomunicações motrizes. Determina o sucesso ou o fracasso dos participantes de um jogo. Verificamos que no "Pique da Cachoeira", em toda a sua ocorrência, vincula-se uma rede de interação de marca estritamente antagônica: "O nosso pique é um contra todos e todos contra um. Não tem como ajudar um colega. É cada um por si." Eminson Campos

Na rede de papéis, a predominância é das ações motrizes do sujeito, ou seja, das formas de conhecimento do papel de cada ator no jogo. Isto se define nas ações motrizes, nunca nos sujeitos concretos que atuam. De acordo com Parlebas (1981): "É o status traduzido em atos, e o status dinamizado que toma corpo. O papel encontra sua pertinência em três grandes setores da ação, caracterizando o estatuto ao qual ele se refere: a interação motriz com o outro, as relações com o espaço e as relações com os objetivos mediadores. Este conceito não define os indivíduos, senão o tipo de ação motriz (...)". (p.202)

Para o autor, existe uma clara descrição do papel pela lógica interna imposta pelo jogo. Tal lógica é que vai determinar as relações do jogador que assume um papel.

Nesse sentido, o "Pique da Cachoeira", como uma prática de oposição, apresenta dois papéis diferenciados explicitamente de acordo com as funções que o regulamento determina: os jogadores perseguidos e o "pique" ou perseguidor. Estes papéis são definidos pelo código do jogo e estabelecem normas de atuação distintas entre os papéis representados.


 Perspectivas e mudanças:

Confirmamos que a teoria praxiológica pode revitalizar o ensino da Educação Física, fazendo dela, de fato, um espaço para a pesquisa, onde o próprio professor investiga a produção das condutas motrizes dos seus alunos geradas em uma determinada situação motriz. A este respeito, Parlebas (1981) propõe:

"É desejável analisar com serenidade as grandes classes de situações motrizes, podendo pôr a descoberto a própria lógica interna de seu funcionamento e ir descobrindo a influência que exerce sobre as condutas motrizes dos participantes". (p.54)

Esta teoria ajuda a compreender um processo pedagógico que aproxima as ações motrizes do cotidiano dos alunos da escola, aproxima do cotidiano do aluno uma teoria científica praxiológica caracteriza-se principalmente por uma proposta significativa para o estudo das relações: corporeidade / realidade do aluno, professor / aluno e aluno / aluno.

A ciência da ação motriz ou Praxiologia não se estabeleceu pela via unilateral de mais uma forma de conhecer jogos, mas por uma abordagem científica que analisa as ações motrizes dos atores em jogo, transformando o ator-praticante, sujeito em suas situações motrizes.

Constatamos na situação motriz investigada - o jogo "Pique da Cachoeira" - que as relações professor / aluno podem ser melhor compreendidas, levando-se em conta o saber praxiológico. O aluno busca descobrir táticas, estratégias, contratos e se apropria de novas ações a partir das que já possui; e o professor procura desvendar a lógica interna do jogo, as suas redes de comunicações, os papéis mais importantes no jogo, a rede de códigos semiomotrizes, e propõe situações pedagógicas em que o aluno se sinta desafiado a aprender. Sugerimos, então, aos professores de Educação Física, que implementem ações pedagógicas, construída a partir da abrangência praxiológica oferecida na análise dos jogos.

As aulas de Educação Física, como um ambiente propício de aplicação dos conhecimentos praxiológicos, garantem que as condutas motrizes manifestem as dimensões fundamentais dos sujeitos: a cognição, a afetividade, as relações e suas expressões correspondentes. Ainda que a relação entre jogo e Educação Física pareça evidente como um tema para o processo de aprendizagem, as teorias conservadoras sobre jogos insistiram na legitimação da instrumentalização do jogo mediada pela Educação Física através de um enfoque distante da realidade do aluno.


 Obs. Os autores, professores José Ricardo da Silva Ramos, Fellipe Venturino da Silva, Luciana Souza Chagas e Walfredo Cantalice da T. Neto são do Centro de Estudos Praxiológicos e de Investigações Desportivas das Faculdades Integradas Maria Thereza
E mail: lucchagas @ ig.com.br


 Referências bibliográficas

  •  Coletivo de autores. Metodologia do ensino de educação física. São Paulo: Editora Cortez, 1993
  • Lovisolo, Hugo. Educação Física como arte da mediação. In: Contexto & Educação. . Revista de Educación em america Latina y el Caribe. Ed. Unijuí, RS, 1993.
  • Parlebas, Pierre. Contribition a um lexique commenté em Science de l’action motrice. Paris: INSEP Publications, 1981.
  • __________. Perspectivas para uma Educación Moderna. Andalucía, Junta Andalucíca, Dirección General de desportes, 1987.
  • __________. Elementos de Sociogía del Deporte. Mágala: Colección Uniesport, 1988.