Integra

1- O professor como intelectual

No desenvolvimento de qualquer atividade profissional, uma atividade intelectual está sendo desempenhada. Uma importante função como é a docência, pressupõe uma atividade intelectual ocorrendo em conjunto com um conjunto de crenças, valores, atitudes e projetos, que aqui chamaremos de concepção de mundo ou ideologia. Do ato de praticar tal concepção, contribuímos tanto para a manutenção quanto para novas formas de pensamento e valores vigentes. Giroux (1992, 1997) considera importante a definição de intelectual como sendo contemplativo das qualidades mentais, com posições informativas de conhecimento do mundo, que qualquer pessoa possui e operacionaliza - examinando, criticando e teorizando, em diferentes graus. Mas, além de considerar tais qualidades de investigação intelectual nas pessoas, cabe analisar a função social do trabalho que estas pessoas desempenham.

Dependendo da identificação do trabalho profissional desenvolvido com as ideologias e valores do poder dominante, o intelectual orgânico de Gramsci, segundo Giroux (1992), pode ser compreendido como desenvolvendo papel na sociedade de intelectual orgânico conservador ou orgânico radical. Cabe esclarecer que Giroux (1992, 1997), a partir do conceito de intelectual orgânico de Gramsci procura inseri-lo na questão da educação. Para isso atribui outro termo ao intelectual orgânico, ratificando o conceito gramsciano na relação dialética entre o termo conservador (mais ligado às classes dominantes) e radical (mais ligado às classes subalternas). Nesses termos, a função social do trabalho que o professor intelectual desenvolve pode corresponder tanto a mudanças/transformações como a manutenção/reprodução da sociedade dominante.

Dessa forma, a categoria de intelectual pode ser associada ao professor e, especificamente, ao professor de Educação Física (EF), pelo fato de que, no exercício da atividade docente, como em qualquer outra atividade humana, está ocorrendo à integração do pensamento e prática, exigindo o funcionamento da inteligência. Por outro lado, deve ser considerada também a natureza política do trabalho que este professor de EF desenvolve. A partir dessa visão do professor de EF como intelectual, pode passar a ser considerado, por exemplo, o seu importante papel de interventor nas condições e objetivos do processo de escolarização, em vez de, simplesmente, considerá-lo executor no domínio de ordens técnicas pedagógicas estabelecidas.

Além disso, a visão do professor de EF como intelectual possibilita um resgate de identificação do seu papel crítico, reflexivo e criativo na atividade docente, bem como da natureza ideológica e econômica em que se localiza essa atividade. Cabe, portanto, encarar e identificar a função do professor como intelectual de acordo com o papel assumido "nos diferentes níveis do sistema escolar, em termos de sua política, da natureza de seus discursos e das funções pedagógicas que desempenham" (Giroux. 1992, p. 31).

Para compreender a função social exercida pelos educadores como intelectuais Giroux (1992) elege quatro categorias de análise, indicativas de prática social e ideológica. Elas são definidas como categorias de intelectuais críticos, de intelectuais adaptados, de intelectuais hegemônicos e de intelectuais transformadores. Giroux (1992), entretanto, compreende com certa flexibilização tais categorizações, até porque os professores não podem ser representados somente pelas posições ideológicas que assumem ou que servem.

1.1 - As categorias de intelectuais

O intelectual crítico pode ser caracterizado como aquele professor que expressa um pensamento crítico às injustiças e desigualdades sociais, mas é incapaz de deixar de se preocupar com suas particularidades de ordem pessoal para uma ação de ordem coletiva.

Desempenha, em geral, uma função crítica a-política, de não envolvimento com movimentos sociais, nos quais correria o risco de ser considerado parcial na concepção de mundo retratada. O seu posicionamento crítico se justifica somente pelo status ou obrigação profissional enquanto intelectual. Cabe acrescentar nesse sentido o seguinte: a idéia de que o intelectual deve recusar-se ser comprometido com concepções de mundo, desenvolvendo trabalho descontextualizado, objetivo e apolítico.

O professor intelectual adaptado, por sua vez, é o que produz posicionamentos ideológicos e materiais que ratificam a manutenção da sociedade de classes. Isto nem sempre ocorre de maneira consciente, embora suas idéias sustentem tal sociedade. Podem protestar sobre questões políticas, mas sem o engajamento necessário, ou esnobar a política em função da objetividade da ciência a partir do seu profissionalismo.
Já os professores intelectuais hegemônicos, são àqueles que dão consistência às classes dominantes. São os ideólogos desta classe.

Tais professores desenvolvem de forma consciente a função de manutenção da ordem existente, subordinando a natureza do trabalho realizado aos interesses de grupos e classe dominante.

E, finalmente, professores do tipo intelectuais transformadores estão voltados para uma formação, na qual, os estudantes sejam preparados para atuarem de forma crítica e comprometida na realidade social em que se inserem. Desse modo, diante das injustiças sociais existentes, os intelectuais transformadores combinam ação e reflexão visando o desenvolvimento de um mundo livre de opressão e exploração do homem pelo homem.

No presente trabalho, defendemos a tese de que a função do professor de EF deve ser aproximada a do intelectual transformador e, portanto, o conceito de professor intelectual transformador de Giroux (1992, 1997) pode ser aplicado na prática escolar. Cabe ressaltar, no entanto, que tal opção de base teórica na prática docente em EF depende da preparação e engajamento dos professores para atuarem na perspectiva proposta. São eles que fazem o currículo prescrito.

A fundamentação referente ao conceito de intelectual transformador na prática curricular em EF pode contribuir para o processo de um fazer pedagógico onde o conhecimento técnico-biológico não seja predominante e privilegie a competência técnica. É necessário considerar igualmente valoroso o caráter de construção do fazer crítico, político e pedagógico do professor. Nesse caso, é considerar a competência técnica com fundamentação política.

2- O professor de ef como um intelectual transformador

O professor intelectual transformador se caracteriza por desempenhar um papel atuante no desenvolvimento de condições emancipatórias de vida, irrestritamente ao interior das esferas públicas alternativas, como a instituição escolar. Ao emergir de um grupo social qualquer, o professor de EF ao atuar como um intelectual transformador pode desenvolver seu trabalho com diferentes grupos, no qual a classe trabalhadora pode ou não estar incluída. Este professor, ao empregar o discurso da auto-crítica para compreensão de fundamentos de uma pedagogia crítica-progressista, paralelamente enfatiza a importância da abordagem crítica tanto para os estudantes quanto para a sociedade em geral.

É necessário, centralmente, ao professor de EF como um intelectual transformador, tornar o seu fazer pedagógico mais político, bem como tornar este fazer político mais pedagógico.

Tornar o fazer pedagógico mais político corresponde compreender que a educação está inserida na esfera política e, por conseguinte, que conhecimento e poder caminham juntos. Aqueles que vivenciam o espaço escolar se apresentam individualmente ou em grupos, com específicas e limitadas circunstâncias históricas e estruturais, além de manifestarem formas de cultura e ideologia, fundamentos básicos para o desenvolvimento de contradições e lutas. Assim sendo, para estimular os alunos a desencadear mudanças em si mesmo e estabelecer a confiança no combate às injustiças, cabe compreender as precondições necessárias. A escolarização junto com a reflexão crítica e ação prática são fundamentais no desenvolvimento desse processo. (Giroux, 1997)

Por isso, ao mesmo tempo em que o fazer pedagógico no processo de escolarização se torna mais político com a compreensão da educação inserida na esfera política, esta ação política deve se tornar mais pedagógica através de propostas pedagógicas utilizadas.

Estas propostas pedagógicas se caracterizam pela utilização do diálogo, onde os alunos são considerados agentes críticos, e também por problematizar e dar significado crítico ao conhecimento para que seja emancipatório. Nesse sentido, para tornar os alunos agentes críticos, tendo o diálogo como base, é necessário dar a eles voz ativa na aprendizagem vivenciada, relacionando sua vida cotidiana com as experiências pedagógicas estabelecidas em sala de aula.

No cenário escolar os alunos são atores coletivos que se apresentam com questões e expectativas particulares, bem como, com características ideológicas e materiais da sociedade, representadas por diferentes formas culturais relacionadas à classe, raça, sexo; demonstrando o poder dominante vigente. Conhecimento e poder caminham juntos no cenário escolar. Aos professores de EF como intelectuais transformadores cabem o enfrentamento às condições ideológicas e materiais que separam conhecimento e poder. Tais condições são geradas pela sociedade dominante que se apóia no papel hegemônico assumido pelas instituições escolares em geral, em todos os níveis de ensino. Dessa forma, lutar para essas instituições escolares se tornarem esferas democráticas é necessário compreender, inicialmente, que o professor de EF que assume o lugar de intelectual transformador a ser desempenhado, é paradoxal. O educador radical assume um discurso crítico à cultura dominante que é produzida e veiculada no mesmo local onde ganha a vida. Assim, o sistema educacional, com base no critério da responsabilidade, por vezes pressiona o professor de EF a produzir e veicular o conhecimento legitimado pela cultura dominante.

Por isso, torna-se fundamental ao professor de EF buscar subsídios teóricos para dar significado ao seu lugar de intelectual transformador. Na medida em que tais professores apresentam indicativos para novas formas possíveis de visão de mundo com práticas culturais e sociais alternativas, a linguagem da crítica está sendo considerada em conjunto com a da possibilidade. Nesse sentido, o professor de EF está buscando condições para que os alunos atuem como agentes críticos e transformadores na sociedade, para que acreditem e façam valer no futuro uma autêntica democracia.

O discurso da crítica e da possibilidade é um ponto de partida para se definir o lugar de intelectual transformador e pode desvelar formas de poder existentes, bem como a função que este poder desempenha, juntamente com a linguagem, nas instituições de ensino.

"Os intelectuais transformadores precisam desenvolver um discurso que una a linguagem da crítica e da possibilidade, de forma que os educadores sociais reconheçam que podem promover mudanças. Desta maneira, eles devem se manifestar contra as injustiças econômicas, políticas e sociais dentro e fora das escolas. Ao mesmo tempo, eles devem trabalhar para criar as condições que dêem aos estudantes a oportunidade para lutar a fim de que o desespero não seja convincente e a esperança seja viável. Apesar de ser uma tarefa difícil para os educadores, esta é uma luta que vale a pena travar." (Giroux, 1997,p. 163)

Para resgatar o discurso da crítica e desvelar as formas de poder, o professor de EF deve mostrar que o conhecimento é seletivo, organizado a partir de um processo curricular estabelecido por ênfases e exclusões. Esta análise pode ser realizada nas respostas dadas às seguintes questões:

"O que é considerado conhecimento escolar? Como tal conhecimento é selecionado e organizado? Quais são os interesses subjacentes que estruturam a forma e conteúdo do conhecimento escolar? Como é transmitido aquilo que é considerado conhecimento escolar? Como é determinado o acesso a esse conhecimento? Quais os valores e formações culturais legitimadas pelas formas dominantes de saber escolar? Quais formações culturais são desorganizadas e tornadas ilegítimas pelas formas dominantes de saber escolar" (Giroux, 1992, p. 42)

Já para verificar o papel do poder e da linguagem, com base no discurso da crítica, é necessário ao professor de EF analisar criticamente nas práticas lingüísticas, o poder e a autoridade que trazem incorporados, privilegiando determinados grupos. Nas práticas de linguagem, legitimadas institucionalmente, constituem-se relações sociais nas quais grupos diferenciados lutam pela forma como deve ser compreendida, reproduzida e contestada a realidade, introduzindo modos de vida específicos para professores e alunos. Daí a necessidade de professores e alunos desenvolverem práticas lingüísticas de apoio à pedagogia crítica, bem como desvelar os significados e silêncios que cultivam. Além disso, necessitam compreender que o poder se manifesta através da dominação do psiquismo e do corpo, produzindo diferentes formas de aprendizagem. Nessa vertente, inconscientemente, professores de EF e alunos são resistentes ao engajamento a novas formas de visão de mundo. Ou seja, um dado conhecimento fica sem sentido se explicado para alguém que tem internalizado, em seus hábitos e na estrutura de seu psiquismo, este mesmo conhecimento concebido de outra forma.

De acordo com o discurso da possibilidade, tal conhecimento novo tem que ser vivido através de práticas sociais em salas de aula, para que seja analisado e reconstruído em busca de condições emancipatórias de vida. É fundamental desvelar e conhecer como funcionam as formas de ideologia dominante, que impedem formas críticas de apresentar o processo ensino-aprendizagem, especialmente às veiculadas no currículo oculto.

Um segundo ponto a ser considerado, para definir o lugar do professor de EF como um intelectual transformador, são as formas dominantes de escolarização e sua relação com a cultura popular. Giroux (1983) destaca, com base na análise da cultura da escola de Frankfurt, que o poder dominante em vez de utilizar a força do exército e de polícia para manter-se, passou a utilizar uma forma hegemônica ideológica, através de outras esferas culturais. Assim, as instituições escolares, entre outras, como meios de comunicação, igreja e a própria família, são utilizadas para mediar às regras consensuais de manutenção da ordem dominante. Nessa perspectiva, a cultura não pode ser encarada como sendo somente o acúmulo, o armazenamento de conhecimentos, de formas, valores e práticas sociais transmitidos aos alunos.

"... a cultura é uma esfera de luta e de contradições e deve ser vista como inacabada, como parte de uma luta continuada de indivíduos e grupos para definir e afirmar suas histórias e espaços de vida (...) se manifesta em formas e práticas culturais, as quais podem servir tanto a interesses dominantes como a anseios emancipatórios" (Giroux,1992, p. 47)

Desta forma, é necessário defender, trabalhar e investigar como são constituídas as especificidades sociais e históricas trazidas pelo estudante em sala de aula, para confirmar o capital cultural que dá significado às suas vidas. A partir de determinadas condições pedagógicas propiciadas com e sobre as experiências do educando, vozes, por muitas vezes silenciadas, são ouvidas e outras formas de conhecimento crítico são desencadeadas com objetivo de contribuir na formação cultural de cidadãos críticos, participativos e éticos.

3- Considerações finais

Um ponto de partida para que o professor de EF atue como um intelectual transformador nos espaços escolares pode ocorrer na sua formação. No processo histórico da formação de professores em EF, é decorrente, no entanto: (a) a utilização de pedagogias que seguem uma ordem tecnocrática, distinguindo teoria e prática, ignorando a capacidade criativa e de discernimento do futuro professor; e, (b) a predominância de teorias e de modelo de organização do ensino que impossibilitam aos docentes o controle sobre a natureza do trabalho desenvolvido.

De um modo geral, o trabalho desempenhado pelo professor de EF que atua na formação de docentes em instituições de ensino reduz-se ao treinamento de habilidades técnicas. O curso de graduação em EF no decorrer de sua história no Brasil retrata caracterizadamente, através de sua concepção curricular, esse modelo de formação no qual a atuação docente se reduz ao treinamento de habilidades técnicas do futuro professor (Azevedo, 1999).

A formação de professores de EF como intelectuais transformadores, transcenderia o treinamento de habilidades técnicas, tendo em vista que se trata da formação de uma categoria de profissionais intelectuais imprescindíveis na construção de uma sociedade democrática (Azevedo, 2004).

Como vimos, o significado do professor de EF como um intelectual transformador se define quando é politizado o conceito de escolarização e é desvelada a natureza ideológica da teoria educacional na sua ação prática. Nesse sentido, é necessário conceber a teoria educacional em geral como forma de teoria social. Como forma de teoria social, em vez do discurso se voltar para objetivos e aplicação de conhecimentos científicos no processo de escolarização, ele se apresenta como um discurso político que emerge e se caracteriza de ... ."uma forma de luta a respeito de tipos de autoridade, ordens de representação, modelos de controle moral e versões quanto ao passado e ao futuro que devem ser legitimadas, transmitidas e debatidas em espaços pedagógicos específicos."(Giroux, 1992, p. 24)

Assim, as teorias educacionais utilizadas, e as ações práticas conseqüentemente desencadeadas, devem estar voltadas para o compromisso de se compreender a escola como esfera pública democrática e para o fortalecimento individual e social de alunos e professores de EF. A instituição escolar é uma esfera pública onde se traduz um espaço de luta contra práticas materiais e ideológicas que correspondem em atender aos interesses da classe dominante. Isto posto, é necessário que o trabalho do docente em EF esteja comprometido em privilegiar a predominância de conhecimentos e habilidades ministrados aos alunos a fim de tornarem-se professores capazes de exercerem um papel transformador, em vez de serem meros reprodutores de técnicas pré-estabelecidas.

Obs. Os autores prof Dr. Ângela Celeste Barreto de Azevedo (angelaestagio@yahoo.com.br) é da Universidade Estácio de Sá e o prof. Dr. André Malina (andremalina@uol.com.br) é da Uiversidade Presidente Antônio Carlos - MG (UNIPAC) e do Instituto Superior de Educação do Rio de Janeiro (ISERJ)

Referências bibliográficas

  • Azevedo, Ângela Celeste Barreto de. Fundamentos teóricos curriculares para elaboração do projeto pedagógico do curso de Educação Física. (Tese de Doutorado). Rio de Janeiro: UGF, 2004.
  • ¬¬¬__________. Novas Abordagens sobre o Currículo de Formação Superior em Educação Física no Brasil: memória e documentos (Dissertação de Mestrado). Rio de Janeiro: UGF, 1999.
  • Giroux, H. Escola Crítica e Política Cultural. São Paulo: Cortez/Autores Associados, 1992.
  • ¬¬¬__________. Os Professores como Intelectuais. Rumo a uma Pedagogia Crítica da Aprendizagem. Porto Alegre: Artes Médicas, 1997.