O profissionalismo em educação física
Por José Geraldo de Freitas Drumond (Autor).
Parte de A Ética e a Bioética na Preparação e na Intervenção do Profissional de Educação Física . páginas 52 - 61
Resumo
Na Grécia Antiga, entre o final do século V a.C. e a primeira metade do século IV a.C., época em que Sócrates e Platão se destacaram, os cientistas passaram a se interessar mais pelo estudo do comportamento humano e suas causas do que pelos fenômenos naturais. A medicina grega que, já vinha sendo incorporada à Paidéia helênica desde a era pré-socrática, onde prevalecia a concepção da physis, agora experimenta o seu florescimento, justamente a partir do seu encontro com a filosofia, que passou a se constituir na sua matriz ideológica, pelo menos até o estoicismo, como acentua Mainetti 1 . Os gregos antigos dispunham, então, de dois especialistas para cuidar do homem: o filósofo (psicagogo) e o médico (somatogogo). Ao médico, detentor do conhecimento e da arte do cuidado corporal, cabia cuidar da cultura da forma sadia (anatômica e funcional) do varão virtuoso, quer por meio de exercícios físicos, quer através do regime ou dieta. A missão do médico hipocrático era a de trabalhar em prol dos ideais do modelo aristocrático grego, daquilo que era considerado belo e bom para a polis grega. Foi de acordo com o pensamento grego que o modelo hipocrático passou a adotar uma linguagem que abarca os ramos da filosofia: a física, a lógica e a ética. Assim, a Medicina estuda a natureza em geral e a natureza humana em particular, gerando os conceitos de saúde e doença (o que é natural e antinatural), ou seja, a idéia teleológica e normatizadora universal da physis. O método clínico foi considerado por Aristóteles como o arquétipo do saber técnico, pois estabelece um elo entre a empiria e a epistem e, entre o caso individual e o conceito universal, entre o conhecimento sensível e o inteligível. Aristóteles, em Ética a Nicômaco, ao assinalar a lógica do raciocínio prático, exemplifica-a com a técnica médica (téchné iatriké) 2 . Desde então, a arte médica desenvolveu um senso comum que se resume em um critério de verdade, que é a percepção do corpo – regra áurea do método hipocrático - e uma consciência da falibilidade do juízo diagnóstico como teoria semiológica baseada nos sinais e sintomas. A prática médica hipocrática tornou-se, assim, paradigma material e formal da ética grega. Primeiro, pelos benefícios da medicina e da moral dentro do naturalismo grego, no qual saúde era sinônimo de beleza e bondade e, segundo, pela conjunção médico-filosófica traduzida na racionalidade “prática”, “científica”, “casuística” e “prudencial”, que transformou a ética numa disciplina. 1 FERRAS, Osvaldo L. et alli. Pedagogia do movimento humano: pesquisa do ensino e da preparação profissional. Revista Paulista de Educação Física. São Paulo, v. 18, ago/2004, p. 111. 2 Ibidem, p. 113. A Ética e a Bioética na Preparação e na Intervenção do Profissional de Educação Física 51 Daí porque na Grécia Antiga, como parte integrante da Paidéia, a Medicina se destacou mais do que os seus os seus primeiros artífices, ainda que estes pudessem ostentar um certo prestígio intelectual e social, pois eram considerados representantes da mais refinada ética profissional. Esta situação está bem comprovada no conjunto de escritos deontológicos, que teriam se originado a partir desta época e que foram reunidos no chamado “Corpus Hippocraticum”. A análise destes documentos, no entanto, não demonstra uma doutrina homogênea e codificada de deontologia médica, mas sim uma reunião de escritos de diferentes autores, em épocas distintas 3 . É possível perceber nos textos do “Corpus Hippocraticum” duas modalidades de moral: a ética e a etiqueta. A primeira modalidade se refere à “ética da filantropia” (do grego: “philos”: amigo; “anthropós”: homem, humanidade), caracterizada por uma moral altruísta de amor à humanidade, centrada no benefício do doente e que exige do médico a prática de virtudes humanitárias como a compaixão, o respeito e a honestidade. Já a etiqueta diz respeito à “ética da filotecnia”, explicitada por uma moral egoísta e que se caracteriza por uma preocupação para com os interesses profissionais, cujo cerne é a preservação da reputação do médico através da construção de uma imagem decorosa ou de boa aparência, sobrelevando-se o caráter e a conduta profissional. A ética hipocrática primitiva, que parece ter sido desenvolvida no século V a.C., se mostrava completamente alheia aos ideais do humanismo médico tradicional: não era uma ética de atenção ou do cuidado do paciente, mas uma ética de resultados ou êxitos técnicos, onde o amor ao homem é conseqüência do amor à arte, ou seja, uma filantropia como conseqüência da filotecnia, corroborada pelo aforismo: “Onde existe amor ao homem, há amor à arte”. Nesta época, as regras de conduta do médico se ajustavam à moral da eficácia profissional, proporcionando-lhe tanto prestígio que, à semelhança dos demais artesãos gregos, o médico somente poderia ser julgado pela população, em razão de sua perícia ou competência. A segunda fase da evolução do ethos hipocrático ocorreu no período compreendido entre os séculos III e II a.C., com a transformação da prática médica em empreendimento científico e cultural, tendo a medicina se convertido, de fato, numa profissão, de acordo com o sentido etimológico e sacerdotal do vocábulo (latim: “professio”: professar, confessar), e promovida a mais filantrópica das artes gregas: o médico não será mais apenas um virtuoso técnico, mas, também, um técnico virtuoso.