Integra

Costumava dizer meu falecido pai, Seo Hilário, que um dos maiores males da humanidade é a vaidade. Batia ele nessa tecla desde que eu era muito criança e me fazia ouvir sobre a importância da humildade para o verdadeiro reconhecimento de algo que é bom. Insistia o velho Larião na necessidade da espera e da reflexão antes da afirmação sobre questões que diziam respeito a si próprio. E mais do que um discurso pedagógico essa prática doméstica, quase irritante, era seguida a risca pela família.

Quando iniciei minha vida acadêmica passei a observar que faltou Seo Hilário em muitos espaços nesse meio que se arvora de produtor do conhecimento. Que entre os apreciadores de futebol essa atitude humilde não faça muita falta, afinal todos os times são os melhores do mundo desde que sejam o meu time, é difícil conceber que essa soberba seja tão desmesurada entre os nobres e doutos pensadores. Nesses muitos anos de livre pensar já vi de tudo: do mais elevado poder criativo ao plágio deslavado, com ou sem protesto.

Os congressos costumam ser um locus privilegiado para esse farfalhar de penas que costuma colocar pavões em depressão. Afinal, nesses momentos que deveriam ser destinados a se apresentar o que há de mais novo, produtivo e criativo na atualidade têm se mostrado um festival de control c, control v sem nem mesmo se ter o trabalho de se mudar o pano de fundo do slide… e assim caminha a ciência…

Gastei boa parte dos meus últimos 25 anos de vida me dedicando a uma das coisas que mais gosto de fazer: pesquisar. Mais do que uma obrigação ou força do ofício faço pesquisa porque sou curiosa, inquieta, descontente com a mesmice, enfim, sou uma novidadeira, como diria minha Vó Maria. Não gosto de rotina. Faço meus caminhos diários sempre buscando alternativas, mesmo quando o transito está bom. Presto atenção às coisas cotidianas como se fosse a primeira vez que as encaro. Lembro-me de um colega, do tempo em que eu trabalhava como redatora em uma agência de propaganda, que me dizia que eu só seria feliz quando eu encontrasse uma atividade profissional cuja rotina fosse nova a cada dia. Na época achei que ele tivesse querendo me mandar embora ou fazendo piada comigo, mas hoje percebo que Ferrari tinha toda razão.

Por que pesquiso?

Porque quero respostas menos óbvias para questões que parecem resolvidas ou insolúveis. Fácil assim. Como comer ovo frito com pão. Por causa disso sou uma psicóloga que adora a psicologia em suas multi dimensões, com sua diversidade de correntes teóricas e epistemológicas. Cada vez que me deparo com um texto clássico fico imaginando o que levou o autor daquela preciosidade a pensar aquilo daquele jeito. Me encanta pensar que por trás de um pensamento há um encadeamento de outros pensamentos em determinados momentos históricos que levam o autor a uma síntese capaz de responder, de alguma maneira, a uma questão pulsante de sua época. E depois dele outros tantos serão estimulados, seja pelo altruísmo ou pela inveja, a pensar sobre aquilo e produzir as suas próprias reflexões. É assim que vejo a produção do conhecimento: uma brincadeira de gente séria, que gasta seu tempo buscando saídas para jogos que nem sempre têm solução.

E claro que para isso as referências são fundamentais. Ninguém nasceu sabendo ou foi capaz de inventar algo absolutamente novo, inusitado ou inédito sem ter partido de algum ponto onde alguém antes já tivesse chegado. Foi assim com todas as grandes invenções, ou seja, o conhecimento é cumulativo e por isso ler, estudar, buscar é tão fundamental.

Fico gelada até a medula quando algum incrédulo neófito me escreve pedindo referência bibliográfica para algum trabalho e em algum lugar da sua mensagem vem a fatídica frase “é que eu já busquei no google e vi que há muito pouco publicado na área”…. ui! Que medo! Mas, como deus perdoa e protege bêbados e crianças cabe aos professores por vocação perdoar, para depois educar, esses personagens desejosos de conhecimento. E assim ofereço o que sei e aponto livros e artigos (não só meus!) para que mais um aventureiro se ponha no caminho do conhecimento.

E vou mais além. Outro dia, participando de uma palestra do Prof. Jorge Bento ouvi sua indignação sobre a falta de cultura dos jovens doutores, de maneira geral. Dizia meu querido professor Bento achar uma temeridade que alguém gozando dos privilégios de um “de erre” na frente do nome nunca ter lido Tolstoi, Thomas Mann, James Joyce ou mais especificamente Fernando Pessoa, José Saramago ou Machado de Assis, para não esquecermos os autores de língua portuguesa. Efetivamente aquilo soou como um belo sino de bronze nos meus ouvidos. A questão “que doutores estamos formando” ficou tilintando na minha cabeça a ponto de me fazer mudar a estratégia das reuniões semanais do grupo de estudos para o segundo semestre. Não ficaremos mais nos clássicos que embasam nossa pesquisa como Paul Ricoeur, Marc Bloch, Eric Hobsbawm, Ecléa Bosi, Sérgio Buarque de Holanda ou Gilberto Freire. É chegado o momento de colocar em nossa pauta a humanidade traduzida em prosa e verso pelos grandes para que assim cada um de nós tenha a dimensão um pouco mais precisa do que é ser grande, e não pseudomédio.

Espero com isso colaborar de alguma forma para a superação dessa crise moral e ética que parece persistir na produção acadêmica que é o egoísmo egocêntrico de cada um querer ser o pai (ou mãe) de uma ideia, como se a concepção fosse um gesto individual, único e intransferível. Tenho muita dificuldade de entender o que leva um pesquisador a ocultar de seu trabalho a genealogia de seu pensamento. Entendo que apresentar os caminhos trilhados para se chegar a uma síntese mais do que necessário é pedagógico, é nobre, é desejado por parte de pesquisadores, principalmente, daqueles que são professores e também formadores de mestres e doutores.

Uma boa dissertação ou tese não se mede com o número de citações feitas ao longo do trabalho, mas na conexão que se faz entre todas essas produções. Isso quer dizer que a literatura não serve para me escudar daquilo que eu penso, pelo contrário, ela aponta para o caminho percorrido até se chegar a uma ideia nova, original, mesmo que modesta, pequena, franzina. Nenhuma grande ideia nasce grande num primeiro instante. Ela vai sendo construída, nutrida, reforçada e talvez seja esse o meu grande estímulo. Foram inúmeras as vezes que comecei uma pesquisa sabendo como ela teria início, mas sem qualquer noção de onde ela poderia chegar. E a cada nova entrevista, a cada nova narrativa muitos caminhos se abriram desaguando em novas frentes ou se fechando logo adiante. E nesse percurso leituras, músicas, filmes, documentários foram me ajudando a escrever isso tudo que eu penso. Talvez por isso minha pesquisa mais pareça romance do que ciência, mas também isso não me importa.

É justamente essa forma de lidar com o conhecimento, com meu “objeto” de pesquisa e com o produto de tudo isso que me faz contar sempre sobre o processo, sem qualquer pudor de me referir às fontes. Esse elogio ao processo me faz muito bem porque me leva a ter a noção exata de que faço parte de um grande grupo que fervilha, e cada um, a sua maneira e com seus recursos, contribui de forma distinta deixando no todo a sua contribuição.

E claro, diante do tema aqui exposto, eu não poderia concluir essa reflexão sem citar um trecho de Canto de Ossanha, de Vinicius de Moraes e Baden Powell em que se diz:

O homem que diz “sou”
Não é!
Porque quem é mesmo “é”
Não sou!

Por katiarubio
em 27-06-2012, às 19:11

2 comentários. Deixe o seu.

Comentários

Perde a voz e acha mais palavras.

Delicioso o texto professora, devorei como alguns dos clássicos que citou.

Uma ótima noite.

Por Thiago
em 27-06-2012, às 21:25.

Nunca tive condições de fazer um mestrado, um doutorado. As exigências eram muitas (inglês fluente, por exemplo) e o tempo de dedicação quase que integral. Assim, segui meu caminho primeiramente como professor de natação, basquete, handebol, futsal e futebol, como a grande maioria dos iniciantes. Sou um “inconformado” também, e sempre busquei um pouco de luz para as minhas dúvidas em textos, artigos, cursos e palestras. E sabe de uma coisa? Raro foram às vezes em que encontrei uma nova idéia, um bom ponto de vista.
Entendo quando fala sobre os pseudos-pesquisadores, é o que mais tem por aí.
Então, o jeito foi trabalhar esse inconformismo da maneira que dá, tornadondo-se um autodidata, utilizando como ninguém o bom senso, a sensibilidade, a observação aguçada e um bom conhecimento sobre o ser humano.

Por Edison Yamazaki
em 3-07-2012, às 21:11.

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