Integra

Todo final de Jogos Olímpicos é a mesma coisa... da euforia de 19 dias de celebrações esportivas que nos retiram do cotidiano para nos jogar diante daquilo que parece impossível que é o limite do corpo humano. E como celebração coletiva temos as trocas com pessoas ou grupos que vibram e sofrem com os resultados, com o olhar atento e muitas vezes com a insatisfação de quem se prende às minúcias de algo grandioso (que me faz pensar no resultado de um teste de Rorschach) e aos sinais que indicam a transformação de um fenômeno secular.

Como era de se esperar, o Grupo de Estudos Olímpicos da USP viveu intensamente esses dias... e sofreu na mesma proporção. Acordar as 3h00 da manhã para ver e já resenhar os acontecimentos era o de se esperar. Ter várias pessoas acordadas a essa hora parece inusitado, mas, para além dos confrontos emocionantes, nos interessava fazer coletivamente a leitura do que estava manifesto, associando o que era visto a seus elementos latentes e peculiares. Atentar para os detalhes técnicos do que ocorria nas quadras, piscinas, ginásios, pistas, tatames, mares e rios era o esperado para os profissionais do esporte, fossem eles dos meios de comunicação ou não. Para nós, o desafio era retirar das entrelinhas de cada imagem aquilo que é nosso objeto de estudo, sem nunca retirar os atletas do lugar que lhes é de direito, ou seja, do centro da competição olímpica. Assim caminhamos como expectadores apaixonados, ao longo dos dias, acumulando elementos para nossas próximas produções.

Paris 2024 nos reservou uma esperada quebra na tradição olímpica. Digo esperada porque assim como no romance de Gabriel Garcia Marques “Crônica de uma morte anunciada” todos na cidade já sabiam o que ia acontecer. Eu diria que ali nascia o spoiler. Como trazer o título do livro o que vai acontecer no final? Que ousadia!! Sim, todos sabiam o que lá ia acontecer, mas o que fazemos, nós leitores atentos, é ver o desenrolar do enredo, a trama que cerca um final sabido por todos. E ali reside o talento do artista... e do pesquisador!

É digno de nota que as observações do GEO-USP são polissêmicas e não multidisciplinar, senão indisciplinar. E é daí a nossa capacidade de perceber, ver o ouvir. Daí a dica da psicóloga que vai além do esporte, Ligia Silveira Frascareli, que muito bem lembrou do aforismo 4, de Nietzsche, em A Gaia Ciência, durante nossas reflexões: "O novo, em todas as circunstâncias, é o mal, pois é aquilo que deseja conquistar, derrubar os marcos fronteiriços, abater as antigas crenças; somente o antigo é o bem! Os homens de bem em todas as épocas são aqueles que implantam profundamente as velhas ideias para lhes dar fruto, são os cultivadores do espírito. Mas todo o terreno acaba por se esgotar, é preciso que o arado do mal volte! – Ora, é contra esta moral dos antigos que nós estamos voltados, meus irmãos, somos homens de uma palavra diferente e de uma vontade diferente! A nova palavra, a nova vontade, ela se torna senhora de todas as coisas e faz do vento uma ponte, da queda uma escada, do acaso um curso; assim como se submete às antigas leis e se apropria das virtudes dos antigos: não porque nós não precisemos mais delas, mas porque nos apropriamos delas, como degraus para as nossas coisas, como elementos e preâmbulos do nosso eu, como uma prelibação do nosso espírito, como forças e alavancas para as nossas novas coisas”. 

No livro intitulado “Do pós ao neo olimpismo: esporte e Movimento Olímpico no século XXI” o GEO-USP já apontava para as questões óbvias do esgotamento da fase de profissionalismo. Nessa obra, diferentes pesquisadores apontaram para um modelo implantado no final dos anos 1980 que visava a comercialização dos Jogos Olímpicos, bem como da marca olímpica, e o consequente impacto dessa nova condição na realização dois Jogos. Com olhar apurado sobre as consequências desse modelo, e da transformação da sociedade e dos meios de comunicação, percebemos que, diferentemente de outros momentos históricos, o início do Século XXI exigia celeridade do Movimento Olímpico, que historicamente nunca teve muita pressa em tomar decisões. Isso mesmo, o tempo do presente século é o das redes e do tempo real. A chamada global para a criação da Agenda 20+20 mostrava que eram necessários ajustes na Carta Olímpica, sem que isso pudesse ser dito com todas as letras. Afinal, um documento norteador para algo tão grandioso precisava ser preservado, assim como a imagem do seu criador e fundados do movimento.

Com um olho nos ovos e outro na raposa avançamos pela década de 2010 assistindo ao final de uma Era nos Jogos do Rio em 2016. O esgotamento de um modelo que determinava responsabilidades e ônus para o anfitrião, sem as garantias dos bônus sabia-se que os Jogos de 2016 seriam o prelúdio para a tarde de um movimento que antevia o beco sem saída em que se via, mas não vislumbrava as soluções possíveis.

Rejuvenescer foi a palavra de ordem encontrada.

Afinal, seria demasiado subversivo apostar no conceito de mudança, mesmo diante de toda a demanda por transformação de um modelo que se mostrava quase senil.

E o movimento teve início pela razão de ser do esporte: os atletas. Finalmente, depois de um século de uso da imagem dos protagonistas para afirmar o maior símbolo dos Jogos Olímpicos, abriu-se a possibilidade de inclusão dos atletas dentro da estrutura que define os rumos do Movimento Olímpico. A participação nas centenas de comissões do COI, dos Comitês Olímpicos Nacionais, das Federações e Confederações, seguindo a mesma estrutura piramidal que organiza o esporte em nível planetário, levou os atletas a iniciarem um processo de protagonismo inimaginado no século passado. Eu afirmaria que aqui começa um processo de quebra de tradição, pouco percebido a quem se atém ao cotidiano.

Diante da falta de interesse de cidades de países democráticos para sediar as futuras edições olímpicas, foram escolhidas de uma única vez duas concorrentes para duas futuras edições olímpicas, a saber, Paris e Los Angeles. E assim, foi dado aos dirigentes tempo para respirar, pensar no futuro e tomar as decisões dignas do adjetivo olímpico. O futuro dos Jogos estava garantido, mas era preciso agir para que os dirigentes pudessem dormir sossegados. E mais uma tradição caía por terra.

A palavra de ordem rejuvenescer soava acima dos 100 decibéis nos ouvidos dos mandatários. O desinteresse pelas competições também se refletia no declínio da prática esportiva presencial em detrimento dos esportes eletrônicos. Era inegável que o fenômeno produzido nas telas, ativado pela virtualidade de um mundo pandêmico, causava um profundo mal-estar àqueles que compreendiam o esporte como um fenômeno físico, presencial e controlado pelas instituições já existentes. Durante alguns anos, e não muitos, debateu-se se isso podia ou não ser chamado de esporte e se o praticante poderia ser anunciado como atleta. E em menos de uma década, para uma instituição secular, não apenas admitiu-se que sim, era esporte, como rapidamente anunciou-se que haverá competições com o tão defendido adjetivo olímpico, e mais, em meia olímpiada, ou seja, de dois em dois anos. Caía por terra mais uma tradição levando consigo alguns princípios basilares do olimpismo.

Tóquio que deveria ser 2020, mas foi em 2021, algo que representou de forma absoluta a quebra de uma tradição que remontava a Antiguidade: cumprir um calendário quadrienal. Sim, o mundo vivia uma pandemia que provocou milhões de mortes ao redor do planeta. Atletas foram afetados em seus treinamentos. O público não podia se deslocar para chegar ao local dos Jogos, mas ainda assim, cumpriu-se o contrato de sua realização. Em 2020, falamos e escrevemos muito sobre isso. O que representava a quebra de uma tradição que era um dos maiores, senão o maior símbolo olímpico. Os acordos comerciais falaram mais alto. As competições foram realizadas sem público. Os atletas cumpriram com seu papel, performando sem as condições ideias, mas os contratos foram mantidos. Alguma dúvida sobre quebra de tradição?

E então chegou Paris 2024. E a capital da França fez aquilo que imaginávamos que aconteceria: veio para provar que um novo momento do Movimento Olímpico era iniciado. E as competições tomaram a cidade, conforme preconizado na Carta Olímpica. Com sol ou com chuva as ruas, praças e rios foram tomados pelas manifestações esportivas, para alento de uns e desespero de outros. A cerimônia de abertura causou um verdadeiro escândalo ao mostrar ao mundo o que a França pensa de si, do mundo e do olimpismo moderno. Reverenciou com considerou a razão de ser de tudo isso, numa franca afronta à tão consagrada “tradição”. Prestigiou a transformação que acontece na sociedade e situou o olimpismo como uma parte dela e não como o todo. Trouxe para o centro da cena Atletas, e não apenas os atletas franceses. Reverenciou ícones de Jogos do passado, franceses ou não, numa quebra evidente do bairrismo de aberturas anteriores, sem deixar de prestigiar os seus no melhor momento que foi ao acender uma Pira, pós-moderna, cuja energia não vem do fogo, mas da luz.

Sim, a tradição não foi quebrada, ela foi jogada no lixo, lixo da história que pede a adequação de atitudes e pensamentos do momento em que vivemos.

Não sei o que os dirigentes ou o marketing, a saber os novos dirigentes, do Movimento Olímpico, pensaram de tudo isso, mas quando os “likes” foram contados nas imagens produzidas pelos organizadores a resposta imediata foi, “claro que sim”! Viramos a página de um período determinado por isso, aquilo, e aquele outro e agora o que nos espera é algo “renovado, dinâmico, inclusivo” e blá, blá, blá.

Qual o poder da tradição sobre isso? Fica a pergunta àqueles que mais do que preocupados com as origens ou tradições (que como bem lembra Eric Hobsbawn, um dia foi inventada) olham para o passado com o saudosismo típico de quem teme o novo, o que se espera de um evento de caráter global e comercial como o que assistimos.

Ainda parafraseando Nietzsche “Nós, novos, sem nome, difíceis de entender, nós, prematuros de um futuro ainda indecifrável, nós, os primeiros de um milênio futuro, nós necessitamos, para a nova meta, também de um novo meio, a saber, de uma nova saúde, mais forte, mais temerária, mais duradoura, mais ousada e mais alegre que todas as saudades e todas as espiritualidades passadas. Quem de nós se admira ainda com os antigos, nos novos estados de força, como se por uma janela, no firmamento do futuro! Porventura o futuro, um domínio desconhecido, não é mais belo do que todos os conhecidos, ainda que seja o nosso grande medo? E o grande medo, a grande resistência – não nos devem elas preparar para grandes coisas?"

Não há dúvidas que o futuro dirá. Principalmente, se se olhar para as variantes dos Jogos de Verão. Os brotos gerados podem ainda se tornar mais fortes do que a planta original.

São Paulo, em um fim de inverno quente e pleno de esperança