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Imagine passar toda a vida profissional fazendo algo que você odeia. E pior: se tornar um dos melhores do mundo na prática, famoso internacionalmente, além de arrebanhar legiões de fãs. É justamente esse o “enredo” da autobiografia do tenista Andre Agassi. Ao longo das 500 páginas de relato, o leitor conhece a história do americano, nascido em Las Vegas, no estado de Nevada, nos Estados Unidos, que se tornou um ícone do esporte pela façanha, entre outras, de vencer todos os quatro torneios do Grand Slam: Abertos da Austrália, dos Estados Unidos, Roland Garros e Wimbledon.

Para quem gosta de tênis e acompanhou a carreira do jogador, que durou, oficialmente, de 1986 a 2006, o livro acrescenta à visão que se tem do atleta uma faceta demasiadamente humana. Mas mesmo quem nunca o viu jogar e não tem muita afinidade com o esporte nutrirá simpatia pelo personagem que habita as páginas na narrativa construída pelas lembranças. São recordações reunidas graças à incrível capacidade de Agassi em reter pormenores de seu cotidiano. “Jogamos durante 28 minutos. Não sei por que atento para esses detalhes – quanto tempo dura o banho da tarde, a duração do treino com Darren, a cor da camiseta de James. Não quero prestar atenção nisso, mas presto, o tempo todo, e depois me lembro para o resto da vida. Minha memória não é como a minha sacola de tênis: não consigo controlar o que há lá dentro. Tudo entra e nada parece sair”, diz ele. É graças a essa incrível habilidade confessada pelo tenista que o leitor tem à sua frente um relato cheio de cores e minúcias.

O livro tem o trunfo de ser muito bem escrito e organizado. Se Agassi não fosse um personagem real e o livro uma autobiografia declarada, poderia muito bem ser tomado como uma narrativa ficcional. Efeito conseguido graças ao trabalho do jornalista ganhador do Pulitzer J. R. Moehringer, o ghostwriter responsável pelo texto da autobiografia. Em “Agradecimentos”, após o final do livro, Agassi dá o crédito ao escritor e relata o processo de criação do livro. O tenista escolheu Moehringer após ler a autobiografia do jornalista durante o Aberto dos Estados Unidos de 2006 e o convidou para auxiliá-lo a transformar em texto suas memórias. Foram dois anos de trabalho com entrevistas em que Agassi narrava de modo aleatório as lembranças a Moehringer, que depois eram transcritas, transformadas em texto e checadas. Mas é preciso ter sempre em mente que um relato em primeira pessoa (ainda que em segunda mão, já que escrito por Moehringer com base nos relatos de Agassi) sempre contém uma certa dose de inverdade, pois as lembranças são um terreno incerto, a memória é seletiva, guarda apenas o que interessa.

O livro começa pelo “Final”, nome do capítulo que inicia a narração. Agassi acorda no chão do quarto do hotel no qual está hospedado, uma estratégia para lidar com as dores de coluna crônicas, fruto de um problema congênito agravado pelos excessos na atividade física. É o dia do jogo contra o grego Marcos Baghdatis, na segunda rodada do Aberto dos Estados Unidos de 2006, que pode ser o último da carreira do tenista. Ao fim da partida, estirado em uma maca ao lado de seu adversário, Agassi deixa sua memória refazer o caminho que o levou até aquele momento e então a história começa a ser contada em tempo cronológico a partir do princípio.

O recurso da narração em primeira pessoa e o uso do tempo verbal no presente dá veracidade ao relato, como se fossem de fato memórias vividas em tempo real pelo tenista. Para o leitor, o efeito é particularmente eficaz nas muitas partidas de tênis que aparecem no livro (para quem não entende bem o “jargão” do tênis, com muitas palavras herdadas do inglês, há um glossário com os principais termos ao final do livro). Isso, somado ao alto poder de descrição do autor, faz com que o leitor consiga criar uma imagem muito próxima da realidade dos jogos, um filme mental que acompanha o texto.

No entanto, é como se fosse um filme gravado em nova perspectiva. A internet permite recuperar as gravações dos jogos e mesmo o emocionante vídeo da última partida no Aberto dos Estados Unidos de 2006, na qual Agassi se despede da carreira. A “câmera” criada pelo relato literário, no entanto, permite uma visão única dos bastidores do jogo, como se olhássemos o mundo e os acontecimentos pelos olhos de Agassi. É o que sugere o título do livro em inglês, “Open” (aberto), que se refere à competição americana, mas também chama a atenção para o modo como o tenista quer apresentar as próprias memórias.

A saga começa a partir da tumultuada relação com o pai, fanático pelo tênis por considerá-lo o esporte da perfeição. “Apesar de sua vida imperfeita (e talvez por causa dela), meu pai é louco por perfeição. Ele diz que a geometria e a matemática representam o máximo que o ser humano pode se aproximar da perfeição, e o tênis é, fundamentalmente, ângulos e números”, narra Agassi. O amor do pai ao tênis, que resulta em uma fixação por ter um filho tenista profissional, é o que define o destino do caçula da família. Antes dele, o pai já havia tentado treinar os outros três irmãos, mas sem sucesso.

Para ensinar tênis ao filho, Mike Agassi recorreu a diversos recursos, desde os primeiros meses da criança: prendia raquetes de pingue-pongue às mãozinhas do bebê para que ele batesse em um móbile feito com bolas de tênis; quando o filho tinha três anos, deu a ele uma raquete em miniatura e permitia que batesse em tudo o que existia na casa; e, por fim, quando tinha idade suficiente para jogar, por volta dos quatro anos, começou a extenuante rotina de treinos. Aos seis, Agassi era obrigado diariamente a rebater 2500 bolas arremessadas pela máquina lançadora de bolas reconstruída por seu pai, à qual o menino chamava de dragão, tamanho o medo que lhe causava.

Do pai, que havia sido lutador, ele diz ter herdado a agressividade no jogo: “Meu pai conta que, quando lutava boxe, sempre queria pegar o melhor soco do oponente. Na quadra de tênis, um dia ele me diz: ‘Quando você sabe que acabou de pegar o melhor golpe do outro cara, e ainda está em pé, e o cara sabe disso, você vai acabar com a raça dele. No tênis é a mesma coisa’, ele garante. ‘Ataque o que o outro tem de melhor’. (...) Virei um boxeador que joga com uma raquete de tênis”, explica.

Além do tema do esporte na infância, do treinamento para se tornar um atleta profissional e de como muitos pais projetam nos filhos os próprios sonhos não realizados, Agassi revela no livro outras facetas nada glamourosas do esporte: as da solidão e da dor. Em vários momentos do relato, ele aponta o tênis como o esporte mais solitário que existe. Pelas regras do jogo, o tenista não pode conversar com ninguém durante a partida, nem com o próprio técnico. “No tênis, o jogador está ilhado. De todos os jogos praticados pela humanidade, o tênis é o que mais se parece com o confinamento numa solitária, o que inevitavelmente provoca o recurso de falar sozinho”. A única companhia que passou a ser constante para o jogador dentro das quadras era a da dor, principalmente nas costas, que o levou a tomar injeções de cortisona para ser capaz de jogar no final da carreira.

O livro chega a ter um tom confessional, com a revelação do uso de drogas e a mentira em um teste antidoping, a narração da relação de Agassi com o preparador físico Gil Reyes, a quem considerava uma figura paterna, e detalhes íntimos dos casamentos com a atriz Brooke Shields e com a tenista Stefanie Graf, esta última sua atual esposa, com quem teve dois filhos. Também há espaço para que o autor apresente com orgulho seus projetos sociais voltados para a educação, uma forma de se redimir com a falta de empenho em sua própria formação escolar.

Há, ainda, momentos hilários, nos quais Agassi conta as travessuras de adolescente e jovem adulto nos anos 1980 e a atitude rebelde que o fez adotar visuais que deram o que falar: roupas fora dos padrões para as quadras, maquiagem, brincos, cortes de cabelo como o moicano cor-de-rosa e depois o mullet (que foi substituído por uma peruca quando ele começou a ficar calvo). São anedotas que resultam em boas risadas como neste trecho: “Aí, acontece a catástrofe. Na noite da véspera da final, estou tomando uma chuveirada e sinto a peruca que Philly tinha me comprado subitamente se desmanchar nas minhas mãos. Devo ter usado o tipo errado de condicionador. A trama está se desfazendo – o raio da coisa está se desmontando”.

O livro mostra, sobretudo, uma ânsia de Agassi por se fazer entender. Além da narração de cada partida, é possível encontrar a reconstituição de cada entrevista, mas dessa vez com uma nova versão de Agassi que não foi dita na oportunidade. Ele sentia que sempre dizia o que as pessoas queriam ouvir e nunca era sincero em suas declarações. Assim também se sentia em relação ao público. Apesar de os fãs copiarem seu visual, no seu ponto de vista ninguém entendia quem ele era de verdade, nem mesmo ele próprio.

Mas foi movido pelo encorajamento do público, pelos aplausos e, principalmente, pelo prazer das vitórias que Agassi se manteve no jogo. Desafiou o ódio pelo esporte e o próprio corpo para jogar até os 36 anos, enquanto todos os seus contemporâneos já haviam se aposentado. No jogo que o mantinha dentro das quadras, estavam duas forças, que ele descreve bem ao longo do livro, uma que o aproximava da linha de chegada e outra que o repelia. Forças que aproximam o tênis da vida. “Acredito que não seja por acaso que no tênis se usa a linguagem da vida. Vantagem, serviço, dupla falta, break e love, os elementos básicos do tênis são os que fazem parte da vida diária, porque cada partida é como uma vida em miniatura”, diz ele.

Em 2008, um estudo publicado por pesquisadores da University College London mostrou que as áreas do cérebro ativadas ao se deparar com o objeto de ódio ou de amor eram similares. Uma comprovação, talvez, do dito popular que apregoa que amor e ódio andam de mãos dadas. Assim parece ser a relação de Agassi com o tênis. “A vida é um jogo de tênis entre opostos polares. Vencer e perder, amar e detestar, abrir e fechar. É útil reconhecer esse fato doloroso desde cedo. Depois, reconheça os opostos polares em seu íntimo e, se não conseguir acolher os dois lados, ou reconciliá-los, pelo menos aceite-os e siga em frente. A única coisa que você não pode fazer é ignorar a existência deles”.

Agassi: autobiografia (Título original em inglês: Open – an autobiography)

Autor: Andre Agassi

Editora: Globo

Ano: 2010

503 p.

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